29 dezembro, 2006

Praia

Final de semana na praia. Naturalmente, não na praia acima, que a rigor não existe. Mas aproveito a oportunidade para confessar-me fascinado pelo mar, apesar de vê-lo somente em intervalos cada vez mais distantes entre si. Esse fascínio chega a mim através de figuras como Conrad, Coleridge, Melville e Poe e permanece, insisto, intacto. Como todo sujeito sem imaginação e com um mínimo de bom senso (assim espero), não me aventuro a expor uma versão propriamente minha dessa atração. Há alguns anos, frequentei um curso de literatura chamado A Sea of Words, onde se lia desde Coleridge até... não lembro o nome, mas o que importa é que é péssimo. Muito já foi dito sobre as armadilhas, para o escritor, da narrativa erótica. Um pequeno descuido e já passamos para campo do ridículo. Troquem a mulher (ou o que quer que sirva nos dias que correm) pelo mar e adentramos uma seara não menos perigosa, da qual, aliás, já foram vítimas o nosso Carpeaux (que obviamente não era nenhum mestre do estilo mas que nada obstante não era dado a escorregões), Stephen Crane e, em alguns raros momentos, o próprio Conrad. Faço o favor de partir para algo que nada tem que ver com descuidos, a saber, um trecho da Rime of the Ancient Mariner, do Coleridge, em que o Albatroz dá início a sua singela vingança (a íntegra pode ser encontrada com facilidade na web):

And the Albatross begins to be avenged.

Water, water, every where,
And all the boards did shrink;
Water, water, every where,
Nor any drop to drink.

The very deep did rot: O Christ!
That ever this should be!
Yea, slimy things did crawl with legs
Upon the slimy sea.

About, about, in reel and rout
The death-fires danced at night;
The water, like a witch's oils,
Burnt green, and blue and white.

(...)

And some in dreams assuréd were
Of the Spirit that plagued us so;
Nine fathom deep he had followed us
From the land of mist and snow.

And every tongue, through utter drought,
Was withered at the root;
We could not speak, no more than if
We had been choked with soot.

(...)

Ah! well a-day! what evil looks
Had I from old and young!
Instead of the cross, the Albatross
About my neck was hung.

21 dezembro, 2006

Civilização e Barbárie

Se decidimos adotar a representação esquemática sugerida por A. C. Bradley - em seu Shakespearean Tragedy (1904) - para o herói das tragédias de Shakespeare, encontraremos em Otelo um representente típico. Primeiro temos a apresentação, o delineamento do caráter do herói: no caso do mouro de Veneza, conhecemos um combatente de coragem e de compleição moral impecável. Mesmo quando sugerem que teria empregado algum tipo de feitiçaria (em cujos efeitos mágicos o mouro, como sabemos, acreditava) para conquistar os amores de Desdêmona, Otelo mantém-se circunspecto e prova sua inocência sem maiores dificuldades. Sua suposta firmeza de caráter (tida como breathtaking por um crítico) dá o tom do primeiro ato, passado ainda em Veneza.

O segundo estágio apontado por Bradley é, evidentemente, o conflito central, the heart of the matter. É nesse estágio que o herói costuma experimentar uma antítese de si mesmo: Otelo, inicialmente sereno e dono de si, dá vazão a um comportamento irascível e destrambelhado; chega a ter um ataque epiléptico na frente de Iago e a esbofetear a mulher em público. Maynard Mack, no ensaio The Jacobean Shakespeare, lembra que esse expediente é recorrente na tragédia shakespeareana. Assim Lear, de início a própria imagem da autoridade e da resiliência, perde completamente a compostura (e boa parte da sanidade), mais tarde, por ter de enfrentar, praticamente sozinho, uma tempestade. Assim também Hamlet, apresentado como dono de the courtier's, soldier's, scholar's, eye, tongue, sword, terá sua posição sensivelmente comprometida até o final da peça. Essa transição se dá paralelamente a um deslocamento geográfico (que, segundo lembra Mack, também é comum em outras tragédias): da cidade-modelo Veneza para a virulenta Chipre, acoçada, e é por isso que Otelo vai para lá, por um ataque turco. Mack comenta:
Furthermore, though it would be foolish to assign to any of the journeys in Shakespeare's tragedies a precise symbolic meaning, several of them have vaguely symbolic overtones - serving as surrogates either for what can never be exhibited on the stage, as the mysterious processes, leading to psychic change, which cannot be articulated into speech, even soliloquy, without losing their formless instinctive character; or for the processes of self-discovery, the learning processes - a function journeys fulfill in many of the world's best known stories (the Aeneid, the Divine Comedy, Tom Jones, etc.)
A grande verdade é que a crítica shakespeareana chegou ao ponto de querer encontrar uma correspondência simbólica até para o mais inexpressivo clown. Nada mais natural. Convém, então, escolher as que mais nos interessam (evidências textuais, é sempre bom lembrar, não atrapalham). Em se tratanto de Othello, a oposição Veneza/Chipre ou, se quisermos extrapolá-la, de vez que Chipre está sendo atacada mas ainda se encontra sob controle, Veneza/Império turco parece carregar mais que um simples vague symbolic overtone. Dá-nos impressão disso a Veneza tal como descrita nos inícios da peça. Brabantio, pai de Desdêmona, ao receber a notícia (uma das artimanhas do Iago) de que estava a ser assaltado, demorou, com razão, a acreditar:
What tell'st thou me of robbing? This is Venice;
My house is not a grange [isolated house].
Mais característica ainda é a descrição que Otelo dá, também no primeiro ato, de suas peripécias mundo afora. São tão variadas e amedrontadoras que, além de chamar a atenção de Desdêmona para as bravuras do mouro, fazem-nos o favor de descrever bem como é a vida fora de "Veneza":
Wherein I spoke of most disastrous chances,
Of moving accidents by flood and field,
Of hairbreadth scapes i' th' imminent deadly breach,
Or being taken by the insolent foe
And sold to slavery, of my redemption thence
And portance [manner of acting] in my travel's history,
Wherein of anters [caves] vast and deserts idle,
Rough quarries, rocks, and hills whose heads touch heaven,
It was my hint to speak. Such was my process.
And of the Cannibals that each other eat,
The Anthropophagi, and men whose heads
Grew beneath their shoulders. (...)
A ida de Otelo para Chipre, corresponde, então, ao início do segundo estágio apontado por Bradley. É claro que a mudança geográfica faz-se acompanhar por uma mudança 'psicológica' no mouro. Enquanto Iago e Desdêmona permanecem fiéis ao modelo apresentado no início da peça (o primeiro com suas tramas diabólicas e a segunda com sua bondade), Otelo gradativamente sucumbe às maquinações de seu ancient. O desfecho é nosso velho conhecido e, quando Otelo ensaia adentrar o terceiro estágio descrito por Bradley, Desdêmona já está morta. Esse terceiro estágio se configura como uma tentativa de regresso ao modelo inicial, ainda que ele custe, como é o caso em questão, a vida de três ou cinco inocentes. Ao reconhecer seu erro, Otelo se compara aos bárbaros por ele combatidos há não muito:
(...) Then you must speak
Of one that loved not wisely, but too well;
Of one not easily jealous, but, being wrought,
Perplexed in the extreme; of one whose hand,
Like the base Indian, threw a pearl away
Richer than all his tribe; (...)
Eis que sua própria profecia se cumpriu (But I do love thee! And when I love thee not, / Chaos is come again): trocou a civilização pela barbárie e por isso preferiu morrer.

18 dezembro, 2006

A Sociologia da Igreja

We intend, rather, to establish whether and to what extent religious influences have in fact been partially responsible for the qualitative shaping and the quantitative expansion of that "spirit" across the world, and what concrete aspects of capitalism culture originate from them.
Essa pequena síntese já nos deixa entender que a tese central do The Protestant Ethic and the "Spirit" of Capitalism, clássico do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), nem sequer aborda a questão do surgimento do capitalismo enquanto forma de organização econômica. Weber lembra repetidas vezes que o capitalismo se estende até os recantos mais longínquos de nossa memória histórica. Egito e Babilônia já o conheciam, e seria uma tremenda estupidez negar a natureza essencialmente capitalista dos grandes centros comerciais italianos durante o período renascentista. Como se vê, o objetivo de Weber é bem mais estreito, mas nem por isso muito menos complicado: ele pretende traçar as origens do "espírito capitalista" tal como será abundantemente definido ao longo de seus ensaios. Assim como qualquer termo empregado ad hoc (segundo o próprio autor) para descrever uma realidade histórica complexa, o "espírito capitalista" não pode ser definido de maneira definitiva; trata-se de um paradigma, um "modelo ideal", que só poderá ser compreendido integralmente ao final da investigação.

Weber cita Benjamin Franklin na tentativa de ilustrar o tal "espírito". Este se refere à sistematização e a otimização de nosso trabalho, como se reconhecêssemos nele uma vocação divina. A grande novidade se refere ao fundo ético presente nessa postura: de fato, não seria muito difícil encontrar, muito antes da reforma protestante, exemplos que se encaixam perfeitamente nesse modelo, com a diferença, alas!, de que esses exemplos eram impulsionados por motivos que nem de longe correspondem a nossa área de interesse. Explica-se: o desejo desenfreado por acúmulo de dinheiro e riquezas em geral, obtido possivelmente através da disciplina no trabalho, também existe desde que o homem é homem. O surgimento de um novo estilo de vida que entende essa racionalização de esforços não como meio de suprir demandas utilitaristas (na acepção mais vil do termo), mas como uma necessidade, um norte ético e um fim em si mesmo, é, segundo argumenta Weber, a própria encarnação do "espírito capitalista" em nosso cotidiano. As implicações da implementação desse espírito na esfera econômica dispensa comentários; cumpre investigar, então, suas origens.

É mais ou menos óbvio que o capitalismo, tal como hoje se apresenta, dispensa motivos religiosos para explicar seu funcionamento. Isso não significa, claro está, que o tal "espírito" revolucionário descrito por Weber não tenha raízes religiosas. Weber enxerga no calvinismo (e nas seitas por ele influenciadas) os preceitos dogmáticos que, uma vez em contato com o mundo secularizado, teriam contribuído para o desenvolvimento do "espírito". O significado corrente da palavra alemã Beruf ("calling", "vocação", "chamado") remonta à tradução, sob a responsabilidade de Lutero, da Bíblia. Nada obstante, a teoria da predestinação (que, como veremos, tem uma relação íntima com o "espírito"), é essencialmente calvinista. Segundo nos conta Calvino, Deus, do alto de sua glória, decide de antemão quem são os "escolhidos" e quem são os "danados". Seria de uma puerilidade tipicamente humana supor que nossos atos nesse mundo poderiam influenciar a decisão divina, que, precisamente por ser divina e anterior a nossa existência, não pode de maneira alguma ser alterada, ainda que paremos de fumar e salvemos um mico-leão dourado por dia. A mente contemporânea provavelmente reagiria a esse terrível determinismo com um to hell with it, mas, numa época em que a salvação da alma tinha uma importância maior que a do futebol nos dias que correm, eram poucos os que ousariam ser tão relaxados a respeito.

Que escolha resta ao calvinista extremado, que se sabe com o destino inalienavelmente selado antes mesmo de sair das fraldas? A primeira consequência parece ser um sentimento exasperante de solidão: se é verdade que ainda vale a máxima latina "não há salvação fora da igreja", sabe-se também que esse preceito adquiriu, com o calvinismo, um viés negativo: de fato, não há salvação fora da igreja, mas nada garante que dentro dela será diferente. O fiel pode, no máximo, certificar-se de que é um dos escolhidos (assim como Calvino estava certo de que o era) através de uma total submissão a sua "vocação". Todos os nossos esforços aqui na Terra não seriam suficientes para demover Deus de sua posição original (sabemos que a mera sugestão é absurda), mas é de se esperar que os escolhidos ajam como tais, isto é, que façam de suas vidas o melhor proveito possível. Do ponto de vista econômico, isso significa sucesso contínuo e inquebrantável, sem pausas para a fruição mundana (altamente condenável) das vantagens conquistadas. Agora entendemos bem por que o rufião antigo ou o usurário medieval nada têm que ver com o "espírito" na acepção dada por Weber.

Weber evita qualquer juízo de valor referente ao corpus dogmático por ele analisado; restringe-se apenas às implicações concretas, para o comportamento humano, do surgimento desse novíssimo "espírito". Ainda assim, saúda-nos com o julgamento proferido por John Milton acerca do Deus calvinista: May I go to hell, but such a God will never compel my respect. O leitor mandrião pode respirar aliviado: ainda que vá para o inferno, certamente irá com numerosa companhia.

Resta comentar o conceito de innerworldly asceticism (em oposição ao otherworldly asceticism), constantemente empregado por Weber para descrever o "novo" capitalista. Ele observa que
If one should wish to apply these concepts, however, then apart from the observations already made, a number of others, which readily present themselves, could even suggest that the supposed antithesis between "unworldliness", "asceticism", and religious piety, on the one hand, and participation in capitalist commerce, on the other hand, might in fact amount to an inner affinity.
É precisamente esse o paradoxo desenvolvido pelo dogma calvinista: o mesmo asceticismo que com os monges católicos servia de mote para uma abstração do mundo material é, agora, transplantado para o mundo secularizado na forma de uma meticulosidade inarredável no cumprimento do "destino" ou "vocação" de cada um. É o que Weber chama de asceticismo protestante. A necessidade de "testar-se a si mesmo" através do trabalho duro e disciplinado que a reforma protestante (liderada pelo calvinismo) incutiu em seus seguidores representa, conclui Weber, fator determinante (mas não único, e esse é um ponto enfatizado à exaustão) para o desenvolvimento do estilo de vida responsável pela propulsão econômica de regiões como a atual Holanda, Inglaterra, sul da França e, last but not least, Estados Unidos. David Landes, numa tentativa crua mas não inexata de resumir a contribuição de Weber para a sociologia da religião, afirma que Max Weber was right. If we learn anything from the history of economic development, it is that culture makes almost all the difference.

14 dezembro, 2006

Fanny

"Fanny," Baltimore Saturday Visiter, May 18, 1833


The dying swan by northern lakes
Sing's [Sings] its wild death song, sweet and clear,
And as the solemn music breaks
O'er hill and glen dissolves in air;
Thus musical thy soft voice came,
Thus trembled on thy tongue my name.

Like sunburst through the ebon cloud,
Which veils the solemn midnight sky,
Piercing cold evening's sable shroud,
Thus came the first glance of that eye;
But like the adamantine rock,
My spirit met and braved the shock.

Let memory the boy recall
Who laid his heart upon thy shrine,
When far away his footsteps fall,
Think that he deem'd thy charms divine;
A victim on love's alter [altar] slain,
By witching eyes which looked disdain.

Tamerlane

11 dezembro, 2006

Algum Cinema

1. Scoop, Woody Allen

Sabe-se de antemão que vale a pena ver o filme por dous motivos: participam dele o próprio Woody Allen e sua mais nova protégée Scarlett Johansson. Allen continua engraçado e Johansson continua... nós todos sabemos o quê. Afora isso, o filme certamente não é dos mais marcantes, e os conselheiros Acácio de plantão estranharão, não sem boa dose de legitimidade, algumas saídas mais excêntricas do roteiro. Exemplos: um milionário que não estranha (pelo contrário, acha divertidíssimo) o fato de sua namorada ser uma impostora que lhe espiona a vida e que, bem mais tarde, ao tentar afogá-la (por outros motivos, claro), não espera para certificar-se de que ela, bem, se afoga. It's all in good fun, diriam os mais relaxados.

2. A Good Year, Ridley Scott

Mais um para os relaxados, ou pelo menos para os que gostariam de relaxar numa vinícola no interior da França. Max Skinner (Russell Crowe) é um banker de sucesso forçado a fazer uma visitinha a terras francesas para dar cabo dos bens de seu recém-falecido tio. O frenesi da vida de um capitalista quase inescrupuloso dá lugar, gradativamente, ao sossego do campo, do vinho e (não exatamente sossego, mas vá lá) das francesas. Destaque para o nome da musa do filme: Fanny Chenal (Marion Cotillard). Lembram-se da Fanny de Edgar Poe?

3. El Laberinto del Fauno, Guillermo del Toro

O filme de del Toro tem recebido elogios entusiásticos graças à força imagética das alusões bíblicas e das referências mitológicas e ao aspecto gráfico em geral. Como lição de história, porém, não vale nem o tempo que gastamos ao discuti-lo. Paralelamente à aventura da garota Sofia, acompanhamos os esforços de um capitão fascista (padrasto da menina) que se esforça para exterminar os últimos resquícios de resistência comunista num vilarejo espanhol, em 1944. O procedimento é nosso velho conhecido: algumas demonstrações de crueldade gratuita por parte do capitão para já ir atiçando nossos ânimos; algumas declarações racistas para certificarmo-nos de que se trata de um verdadeiro canalha (grande novidade!). A partir daí já estamos preparadíssimos para ver com bons olhos a idílica resistência comunista, apesar de ela ser irresponsavelmente suicida. Tanto melhor que seja suicida: esse tipo de heroísmo sem pé nem cabeça tende a fascinar bravos e covardes alike. Temos aqui mais uma bela ilustração da máxima, escrita por não sei quem, segundo a qual algumas verdades parciais são mais obscurantistas que a mais completa escuridão. É desagradável ter de repetir isso tantas vezes, mas um filme assume uma responsabilidade tremenda ao nos mostrar apenas um dos lados (além de entrar para o hall dos filmes politicamente delinquentes). O tratamento que geralmente se dá à guerra civil espanhola é sintomático desse mal.

Férias e a Volúpia da Ociosidade (Reprise)

De volta ao conforto (e ao calor) do lar, de férias. Pretendo continuar contribuindo para a manutenção da paz mundial permanecendo calado quando não me pedem a opinião.

18 novembro, 2006

A Primeira Barca

O Auto da Barca do Inferno (1516?) é a primeira das Barcas do português Gil Vicente (1465-1536), precedendo a Barca do Purgatório (1518) e a Barca da Glória (1519). Aqui, acompanhamos as desventuras de um Fidalgo, de um Onzeneiro, de um Parvo, de um Sapateiro, de um Frade, de uma Alcoviteira, de um Judeu, de um Procurador, de um Corregedor e de um Enforcado, sendo todos eles, à exceção do Parvo e do Judeu (que nem pelo Diabo foi aceito), condenados a remar as águas infernais com o Capeta.

Curioso que boa parte deles, malgrado a não pequena patifaria que fizeram em vida, chegam ao "profundo braço de mar, onde estão dous batéis: um deles passa pera a glória, o outro pera o inferno" em que se passam os três autos com a convicção de que seguirão serenamente para o Paraíso. Seja pelo status social (como é o caso do Fidalgo), pelas vantagens financeiras (Onzeneiro), pela autoridade perante a lei (Procurador e Corregedor), pela importância eclesiástica (Frade) ou pelo castigo recebido em vida (Enforcado), entre outros motivos, todos se acreditam merecedores de uma estadia bem confortável no além. Em tempo, todos adentram o batel do Diabo, conformados.

Vão abaixo alguns trechos.

1) Conforma-se o Fidalgo

Fidalgo
Ao inferno toda via,
Inferno há hi [aí] pera mi?
ó triste que em quanto vivi
nunca cri que o hi havia,
tive que era fantesia,
folgava ser adorado,
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.

Venha esta prancha e veremos
esta barca de tristura. (...)

2) O Sapateiro tenta se safar

Sapateiro
Como poderá isso ser
confessado e comungado?

Diabo
E tu morreste excomungado
e não nos quiseste dizer,
esperavas de viver,
calaste dez mil enganos,
tu roubates bem trinta anos
o povo com teu mister.

Embarca eramá pera ti
que há já muito que te espero

Sapateiro
Digo-te que re-não quero.

Diabo
Digo-te que si re-si.

Sapateiro
Quantas missas eu ouvi
não m'hão elas de prestar?

Diabo
Ouvir missa, então roubar
é caminho pera aqui.

3) Discurso de quatro cavaleiros da ordem de Cristo, mortos na África.

Cavaleiros
À barca, à barca segura
guardar da barca perdida
à barca, à barca da vida.

Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória por Deus memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca mortais
porém na vida perdida
se perde a barca da vida.

11 novembro, 2006

A Idéia Fixa em Spengler (2)

O leitor mais incauto inferirá do último post que não gostei do livro de Spengler. Nada poderia estar mais longe da realidade. Um ou outro professor de ciências humanas poderá inchar o peito para declarar, como que de cima dum pedestal, que as idéias estruturais de Spengler estão 'superadas'. É realmente prodigiosa a capacidade que certas pessoas têm de prever o passado; um passado de, digamos, 88 anos atrás. Mais precisamente: 1918, quando Max Weber declarava que Spengler era a very ingenious and learned dilletant. Depreende-se dessa frase duas coisas: Weber não ligava a mínima importância para a teoria dos ciclos de Spengler, e foi só a muito custo que foi convencido pelos seus estudantes a participar de um debate formal com ele, no inverno de 1919-1920, em Munique. E também que, a despeito desse desprezo, tinha uma admiração nada pequena pelo Declínio. A postura pomposamente dogmática de Spengler ao anunciar sua filosofia da História pode até se tornar algo divertido se lembramos que Spengler era, ora bolas, alemão. Assim como Henrik Ibsen (que não era alemão), talvez ele fizesse questão de anunciar com grande solenidade que "semana que vem tomarei o trem para Munique!".

Além do estilo propriamente dito, o que há nesse livro que justifique a alcunha de romance da decadência? Como dito anteriormente, o passeio pela História empreendido por Spengler pode até não provar suas teorias - de fato, pode provar até seu contrário ou não provar coisa alguma -, mas continua válido porque não foi distorcido, como seria de se esperar de uma mente ensimesmada com uma idéia fixa. Mesmo que suas conclusões venham a ser consideradas, por consenso, erradas, não há absolutamente nada que impeça que o estudo que o levou a essas conclusões retenha seu valor. Não como evidências de uma tese que já não é mais levada a sério, mas como as observações de alguém que, mesmo se equivocado, é bem mais perspicaz que a média dos filósofos pertencentes à ordem do dia.

O que mais chama a atenção na análise de Spengler são os modelos criados para descrever o estado de espírito do homem em diferentes períodos civilizacionais. A oposição mais explorada é entre o homem atual (Faustian soul), civilização 'ocidental', e o homem antigo (Apollinian soul), civilização greco-romana e além. Não à toa: é quando Spengler se sente mais à vontade precisamente porque sabe mais sobre elas. Sua análise da Rússia se resume a breves comentários sobre Dostoievski e Tolstoi. Quanto à já referida oposição, são analisados principalmente os seguintes aspectos: ciência (matemática e física), artes plásticas e música. Assim, enquanto a matemática dos antigos se limitava ao número inteiro (ou mesmo natural), ao finito e ao palpável, a análise (cálculo) dos modernos avançou para o infinito e para o espaço multidimensional. Enquanto a física de Arquimedes lidava com o estático e com o visível, a de Newton tratou da dinâmica, do conceito de força e da novíssima idéia de atuação à distância. Onde estarão os pontos em comum, ou, melhor dizendo, o caráter periódico de paradigmas tão distintos? Pelo menos no que se refere à decadência, Spengler observa que
The sympton of the decline in creative power is the fact that to produce something round and complete the artist now requires to be emancipated from form and proportion. Its most obvious, though not its most significant, manifestation is the taste for the gigantic. Here size is not, as in the Gothic and the Pyramid styles, the expression of inward greatness, but the dissimulation of its absense. This swaggering in specious dimensions is common to all nascent Civilizations - we find it in the Zeus altar of Pergamum, the Helios of Chares called the "Colossus of Rhodes", the architecture of the Roman Imperial Age, the New Empire work in Egypt, the American skyscraper of today.
Com a ressalva de que civilização, para Spengler, significa o fim do desenvolvimento de uma cultura. Seria, digamos assim, uma cultura petrificada, incapaz de avanços que não passem de um arremedo do que foi produzido durante seu respectivo auge criativo. Assim sendo, e se lembramos que o século 19 foi o século em que cada ramo da cultura procurou extrapolar seus limites naturais (a música de Wagner não pretende ser só música; o marxismo de Marx é quase uma religião, e o darwinismo acaba sendo alçado à posição de uma nova 'teologia'), fica claro por que Spengler interpreta nossos tempos como tempos de declínio. Na cidade, a manifestação dessa grandiosidade esvaziada de significado se dá através dos arranha-céus e das estradas intermináveis, observação essa que seria repetida por Lewis Mumford anos mais tarde.

Mais interessante ainda é a sugestão de que qualquer forma de pensamento tem seu fundo religioso. Se os antigos se atêm à geometria euclidiana e ao que é distintamente visível, não admira que seus deuses nos apareçam como estátuas; não como entes etéreos e ubíquos, mas como gravuras num livro ou como peças num museu. A idéia que formamos do Deus cristão é diametralmente oposta: não são poucas as querelas sobre a natureza ontológica da divindade 'faustiana'. Como consequência natural, as estátuas dos antigos, tão certas e tão inquebrantáveis, se dissolvem na pintura a óleo de Rembrandt, na polifonia de Bach, na análise complexa de Cauchy e na relatividade de Einstein. O paralelo é dos mais audaciosos, e não se pode querer transcrever nem sequer um esboço de sua 'demonstração' num texto tão curto. O máximo que podemos fazer, a essa altura, é sucumbir ao informalíssimo "faz muito sentido":
The belief in knowledge that needs no postulates is merely a mark of the immense naiveté of rationalist periods. A theory of natural science is nothing but a historically older dogma in another shape. And the only profit from it is that which life obtains, in the shape of a successful technique, to which theory has provided the key.
Dessa maneira, até algo que nos parece a princípio trivial e intuitivo, como o conceito newtoneano de força, surge como consequência de uma predisposição intelectual bem mais ampla e envolvente. Que houve com os antigos que não a definiram antes, de vez que é algo tão presente e palpável? "Sentimo-la na pele!", diriam os inconformados. Pois é: depois que ela foi devidamente inventada, passamos a senti-la...

Finalizo com a transcrição de um dos trechos derradeiros, que pretende descrever o esgotamento da aventura cultural ocidental (em termos spenglerianos, o surgimento da civilização ocidental). Apesar de traduzido do alemão para o inglês, mantém uma força expressiva rara mesmo em livros da mais alta literatura. O Romance da Decadência termina mais ou menos assim:
With the formed state having finished its course, high history lays itself down weary to sleep. Man becomes a plant again, adhering to the soil, dumb and enduring. The timeless village and the "eternal" peasant reappear, begetting children and burying seed in Mother Earth - a busy, easily contented swarm, over which the tempest of soldier-emperors passingly blows. In the midst of the land lie the old world-cities, empty receptacles of an extinguished soul, in which a historyless mankind slowly nests itself. Men live from hand to mouth, with petty thrifts and petty fortunes, and endure. Masses are trampled on in the conflicts of the conquerors who contend for the power and the spoil of this world, but the survivors fill up the gaps with a primitive fertility and suffer on. And while in high places there is eternal alternance of victory and defeat, those in the depths pray, pray with that mighty piety of the Second Religiousness that has overcome all doubts forever. There, in the souls, world-peace, the peace of God, the bliss of grey-haired monks and hermits, is become actual - and there alone. It has awakened that depth in the endurance of suffering which the historical man in the thousand years of his development has never known. Only with the end of grand History does holy, still Being reappear. It is a drama noble in its aimlessness, noble and aimless as the course of the stars, the rotation of the earth, and alternance of land and sea, of ice and virgin forest upon its face. We may marvel at it or we may lament it - but so it is.

07 novembro, 2006

Ode ao Vento

Reparem na pretensão do jovem Shelley, que, aos vinte e sete anos de idade (morreria aos trinta), já se queria prophet of mankind. É o paradigma do intelectual secular, surgido no século 18, na tentativa de reformar a realidade com o auxílio (somente) de seu talento enquanto poeta lírico.


Ode to the West Wind (1819)

I

O wild West Wind, thou breath of Autumn's being,
Thou, from whose unseen presence the leaves dead
Are driven, like ghosts from an enchanter fleeing,

Yellow, and black, and pale, and hectic red,
Pestilence-stricken multitudes: O thou,
Who chariotest to their dark wintry bed

The wingéd seeds, where they lie cold and low,
Each like a corpse within its grave, until
Thine azure sister of the Spring shall blow

Her clarion o'er the dreaming earth, and fill
(Driving sweet buds like flocks to feed in air)
With living hues and odors plain and hill:

Wild Spirit, which art moving everywhere;
Destroyer and preserver; hear, oh, hear!

II

Thou on whose stream, 'mid the steep sky's commotion,
Loose clouds like earth's decaying leaves are shed,
Shook from the tangled boughs of Heaven and Ocean,

Angels of rain and lightning: there are spread
On the blue surface of thine aery surge,
Like the bright hair uplifted from the head

Of some fierce Maenad, even from the dim verge
Of the horizon to the zenith's height,
The locks of the approaching storm. Thou dirge

Of the dying year, to which this closing night
Will be the dome of a vast sepulchre,
Vaulted with all thy congregated might

Of vapors, from whose solid atmosphere
Black rain, and fire, and hail will burst: oh, hear!

III

Thou who didst waken from his summer dreams
The blue Mediterranean, where he lay,
Lulled by the coil of his crystalline streams,

Beside a pumice isle in Baiae's bay,
And saw in sleep old palaces and towers
Quivering within the wave's intenser day,

All overgrown with azure moss and flowers
So sweet, the sense faints picturing them! Thou
For whose path the Atlantic's level powers

Cleave themselves into chasms, while far below
The sea-blooms and the oozy woods which wear
The sapless foliage of the ocean, know

Thy voice, and suddenly grow gray with fear,
And tremble and despoil themselves: oh, hear!

IV

If I were a dead leaf thou mightest bear;
If I were a swift cloud to fly with thee;
A wave to pant beneath thy power, and share

The impulse of thy strength, only less free
Than thou, O uncontrollable! If even
I were as in my boyhood, and could be

The comrade of thy wanderings over Heaven,
As then, when to outstrip thy skiey speed
Scarce seemed a vision; I would ne'er have striven

As thus with thee in prayer in my sore need.
Oh, lift me as a wave, a leaf, a cloud!
I fall upon the thorns of life! I bleed!

A heavy weight of hours has chained and bowed
One too like thee: tameless, and swift, and proud.

V

Make me thy lyre, even as the forest is:
What if my leaves are falling like its own!
The tumult of thy mighty harmonies

Will take from both a deep, autumnal tone,
Sweet though in sadness. Be thou, Spirit fierce,
My spirit! Be thou me, impetuous one!

Drive my dead thoughts over the universe
Like withered leaves to quicken a new birth!
And, by the incantation of this verse,

Scatter, as from an unextinguished hearth
Ashes and sparks, my words among mankind!
Be through my lips to unawakened earth

The trumpet of a prophecy! O Wind,
If Winter comes, can Spring be far behind?

Percy Bysshe Shelley (1792-1822)

05 novembro, 2006

A Idéia Fixa em Spengler (1)

Não são poucos os que já nos advertiram quanto aos perigos (para nossa saúde física e mental) de uma autêntica idée fixe. Nos casos em que essa obsessão vem acompanhada de uma compleição moralmente enfraquecida, ou mesmo de uma sem muito apreço pela verdade, há invariavelmente consequências desastrosas. A pesquisa da realidade passa a ser pautada por um resultado que é previamente conhecido, seja por intuição ou por epifania: aquilo da realidade que não servir para ratificá-lo será ignorado. É assim, pois, que Marx e Engels, antevendo o colapso da civilização ocidental enquanto capitalista, lançam mão dos meios mais desonestos (deturpação de fontes de pesquisa, utilização de dados desatualizados, mentira pura e simples etc.) para prová-lo na teoria. Evidências conflitantes perdem toda e qualquer credibilidade precisamente por serem conflitantes: toma-se como verdade irrefutável aquilo mesmo que se quer provar.

Oswald Spengler (1880-1936), em seu O Declínio do Ocidente, vê como verdade inexpugnável que a História é cíclica. Não só isso: estaríamos em período de declínio. A demonstração de semelhante proposição, como já era de se esperar, não é das mais simples: exige nada menos que um conhecimento aprofundado da História de todas as civilizações em todos os tempos. Um conhecimento que, de resto, Spengler não tem, nada obstante sua enorme erudição. Felizmente para quem lê, a 'demonstração' de Spengler envolve uma análise de tal sorte interessante (apesar de não necessariamente mostrar o que ele gostaria que mostrasse), que a postura mais aconselhável para apreciar seu principal livro é a de não lê-lo literalmente, ou, em outras palavras, ignorar a mania dos ciclos e aproveitar o que há de pontualmente válido. En passant: não é pouca coisa. Assim como Schopenhauer é principalmente admirado por poetas e romancistas, a saga spengleriana já é interpretada por alguns como o grande romance do declínio e do pessimismo.

Se insistimos em lê-lo literalmente, sua tarefa torna-se ainda mais difícil porque, usando suas palavras,
It is this that is lacking to the Western thinker, the very thinker in whom we might have expected to find it - insight into the historically relative character of his data, which are expressions of one specific existence and one only; knowledge of the necessary limits of their validity; the conviction that his "unshakable" truths and "eternal" views are simply true for him and eternal for his world-view; the duty of looking beyond them to find out what the men of other Cultures have with equal certainty evolved out of themselves. That and nothing else will impart completeness to the philosophy of the future, and only through an understanding of the living world shall we understand the symbolism of history. Here there is nothing constant, nothing universal. We must cease to speak of the forms "Thought", the principles of "Tragedy", the mission of the "the State". Universal validity involves always the fallacy of arguing from particular to particular.
A exemplo de J. S. Mill, que reconheceu o caráter idiossincrático da idéia de felicidade, Spengler, ao nos alertar para a falácia de querer que nosso senso-comum seja idêntico ao do resto da humanidade, dificulta tremendamente seu próprio trabalho de síntese histórica - o que não deixa de ser uma demonstração de honestidade. Spengler parte da perspectiva de Goethe: the world becoming, not the world become. Tudo é movimento, força, dinamismo, transformação, em oposição ao estático e ao universal. Spengler admite total liberdade e transformações aparentemente caóticas para logo após tolhê-las na camisa-de-força da história cíclica. Cada civilização (ou cada ser humano) pode, individualmente, representar um mosaico infinito e dinâmico de perspectivas, posturas, crenças etc. mas, a partir do momento em que erguemos nossa mirada para a figura geral, esses mosaicos se congelam e se dispõem num arranjo que corresponde perfeitamente ao ciclo inexorável que toda civilização deve, por força, percorrer.

O lado positivo da idée fixe de Spengler vai num próximo post.

03 novembro, 2006

Ainda a Rebelião

Há mais alguns trechos que merecem ser citados (em realidade há vários outros, mas enfim...) do livro de Ortega. Limito-me àqueles que impressionam pelo caráter atemporal que, de resto, caracteriza boa parte do livro. O fato de a tese central do 'ensaio' lidar com uma realidade histórica bem específica só aumenta nosso assombro.

1) Revolução e continuidade
Las revoluciones, tan incontinentes en su prisa, hipócritamente generosa, de proclamar derechos, han violado siempre, hollado y roto, el derecho fundamental del hombre, tan fundamental que es la definición misma de su sustancia: el derecho a la continuidad.
Do Prólogo para franceses
2) Razão cartesiana
Tres siglos de experiencia "racionalista" nos obligan a recapacitar sobre el esplendor y los límites de aquella prodigiosa raison cartesiana. Esa raison es sólo matemática, física, biológica. Sus fabulosos triunfos sobre la naturaleza, superiores a cuanto pudiera soñarse, subrayan tanto más su fracaso ante los asuntos propiamente humanos e invitan a integrarla en otra razón más radical, que es la "razón histórica".
Do Prólogo para franceses
3) Decadência
La decadencia es, claro está, un concepto comparativo. Se decae de un estado superior hasta un estado inferior. Ahora bien: esta comparación puede hacerse desde los puntos de vista más diferentes y varios que quepa imaginar. Para un fabricante de boquillas de ámbar, el mundo está en decadencia porque ya no se fuma apenas con boquillas de ámbar. Otros puntos de vista serán más respetables que éste, pero, en rigor, no dejan de ser parciales, arbitrarios y externos a la vida misma cuyos quilates se trata precisamente de evaluar. No hay más que un punto de vista justificado y natural: instalarse en esa vida, contemplarla desde dentro y ver si ella se siente a si misma decaída, es decir, menguada, debilitada y insípida.
Do La altura de los tiempos
4) Obliteração intelectual
Pues aunque resultase en definitiva errónea mi opinión, siempre quedaría el hecho de que muchos de esos lectores discrepantes no han pensado cinco minutos sobre tan compleja materia. ¿Cómo van a pensar lo mismo que yo? Pero al creese com derecho a tener una opinión sobre el asunto sin previo esfuerzo para forjárselo, manifestan su ejemplar pertenencia al modo absurdo de ser hombre que he llamado "masa rebelde". Eso es precisamente tener obliterada, hermética, el alma. En este caso se trataría de hermetismo intelectual. La persona se encuentra con un repertorio de ideas dentro de sí. Decide contentarse con ellas y considerarse intelectualmente completa. Al no echar de menos nada fuera de sí, se instala definitivamente en aquel repertorio. He ahí el mecanismo de la obliteración.
Do Por qué las masas intervienen en todo y por qué sólo intervienen violentamente
5) Cultura e norma
Lo que digo es que no hay cultura donde no hay normas a que nuestros prójimos puedan recurrir. No hay cultura donde no hay principios de lagalidad civil a que apelar. No hay cultura donde no hay acatamiento de ciertas últimas posiciones intelectuales a que referirse en la disputa. No hay cultura cuando no preside a las relaciones económicas un régimen de tráfico bajo el cual ampararse. No hay cultura donde las polémicas estéticas no reconocen la necesidad de justificar la obra de arte. Cuando faltan todas esas cosas, no hay cultura; hay, en el sentido más estricto de la palavra, barbarie. (...) El viajero que llega a un país bárbaro sabe que en aquel territorio no rigen principios a que quepa recurrir. No hay normas bárbaras propriamente. La barbarie es ausencia de normas y de posible apelación.
Do Por qué las masas intervienen en todo y por qué sólo intervienen violentamente

02 novembro, 2006

Escala em Nova York

Agora que o desastre da Gol, que matou 154 passageiros, já foi esclarecido (v. reportagem de Eliane Cantanhêde na Folha aqui) resta-nos apenas aconselhar os passageiros mais assíduos a fazer uma pequena escala em Nova York quando forem viajar pelo Brasil. Gasta-se mais tempo mas a probabilidade de sairmos com vida é bem maior.

22 outubro, 2006

Rousseau ou A Criança Mimada

O volume Intellectuals do historiador, jornalista, ex-pintor etc. britânico Paul Johnson reúne esboços biográficos das figuras pivotais da intelectualidade ocidental a partir do século 18. O livro tem por objetivo investigar o lado mais íntimo desses que se arvoraram à posição de líderes espirituais e de reformadores da ética e da moral. Johnson observa que, com o declínio generalizado das instituições religiosas no século 18, surge a figura do intelectual secular: aquele que supõe encontrar em si mesmo todos os pressupostos necessários para servir de mentor da humanidade. Essa liderança extravasa os limites do meramente intelectual; envereda também pelos caminhos tortuosos do comportamento íntimo. Cumpre saber, então, se esses novos gurus têm credibilidade para tanto.

O primeiro capítulo é dedicado a ninguém menos que Jean-Jacques Rousseau, o queridinho oficial do Iluminismo europeu. A sequência de depoimentos perturbadores acerca de Rousseau é tão massiva que o leitor não pode deixar de se perguntar por que diabos ainda se discute seus escritos políticos (todos eles tingidos de um proto-socialismo que hoje em dia não ilude nem pastores de ovelhas), quando seria bem mais interessante e recompensador ater-se a seu comportamento privado.

Rousseau acreditava ser a própria encarnação da generosidade, da ética e das boas maneiras. Sendo isso uma verdade que todos deveriam forçosamente aceitar, algo conhecido a priori, ele se sentia à vontade para afirmar que I have things in my heart which absolve me from being good-mannered. Essa petulância toda não poderia ter outro desfecho que não querelas intermináveis com quem quer que lhe disputasse a posição de guardião da verdade. Johnson observa que
He quarreled, ferociously and usually permanently, with virtually everyone with whom he had close dealings, and especially those who befriended him; and it is impossible to study the painful and repetitive tale of these rows without reaching the conclusion that he was a mentally sick man.
A sugestão de um desequilíbrio mental causa certo estranhamento a princípio, mas só a princípio. Todas as características de uma mente perturbada vão sendo cuidadosamente reveladas, incluída entre elas a velha mania de perseguição. Acompanhemos o que dizia Rousseau sobre seus supostos perseguidores (uma trama internacional na qual qualquer um poderia estar envolvido):
They will build me an impenetrable edifice of darkness. They will bury me alive in a coffin... If I travel, everything will be prearranged to control me wherever I go. The word will be given to passengers, coachmen, innkeepers... Such horror of me will be spread on my road that at each step I take, at everything I see, my heart will be lacerated.
Da mesma maneira podemos interpretar sua obsessão com a própria saúde que, de resto, era bem melhor do que fazia crer. Rousseau via a si mesmo como um órfão indefeso (é certo que perdeu a mãe muito cedo, mas suas relações com o pai não eram das mais amistosas), enviado ao mundo para nos livrar da influência putrefata do dinheiro e da ganância, e que por isso mesmo não deveria nem poderia ser contrariado. Esse alto ideal só poderia ser atingido com uma submissão completa do homem frente ao Estado, que cuidaria de nossos interesses mais 'sórdidos'. Esses laivos autoritários (e totalitários) não são menos pronunciados em seu discurso pessoal. Ao tentar se esquivar das muitas acusasões que lhe eram imputadas, teve tranqulidade suficiente para dizer que
I have said the truth. If anyone knows facts contrary to what I have just said, even if they were proved a thousand times, they are lies and impostures... [whoever] examines with his own eyes my nature, my character, morals, inclinations, pleasures, habits, and can believe me to be a dishonest man, is himself a man who deserves to be strangled.
Semelhante imprecação nos força a entrever o que esse homem seria capaz de aprontar na eventualidade de ser alçado ao poder por um regime revolucionário. Esse comportamento tipicamente infantil, infelizmente, não era só palavrório. Sua incapacidade de manter compromissos e de assumir qualquer tipo de responsabilidade o levou a abandonar todos os seus cinco filhos num orfanato cujo índice de mortandade era sabidamente (inclusive por ele mesmo) altíssimo.

O egoísmo e a mania de grandeza que lhe eram característicos poderiam ter sido fatais se não fosse seu talento como orador, polemista e escritor popular. Esses traços tão detestáveis de seu caráter, que de ordinário serviriam para decretar seu fracasso enquanto figura pública, acabaram sendo ratificados e exacerbados pelos aduladores de plantão e pelos endinheirados que, envergonhados com sua própria superioridade financeira, sentiam a necessidade de apadrinhar o primeiro 'intelectual' que lhes aparecesse. Daí que Jean-Jacques Rousseau, que não mereceria ser mentor intelectual nem da lavanderia lá de casa, tenha se transformado nessa figura monstruosamente influente e hipnótica.

14 outubro, 2006

The Second Coming


Turning and turning in the widening gyre
The falcon cannot hear the falconer;
Things fall apart; the centre cannot hold;
Mere anarchy is loosed upon the world,
The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere
The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.

Surely some revelation is at hand;
Surely the Second Coming is at hand.
The Second Coming! Hardly are those words out
When a vast image out of Spiritus Mundi
Troubles my sight: somewhere in sands of the desert
A shape with lion body and the head of a man,
A gaze blank and pitiless as the sun,
Is moving its slow thighs, while all about it
Reel shadows of the indignant desert birds.
The darkness drops again; but now I know
That twenty centuries of stony sleep
Were vexed to nightmare by a rocking cradle,
And what rough beast, its hour come round at last,
Slouches towards Bethlehem to be born?

- William Butler Yeats (1865-1939)

13 outubro, 2006

A Memória de Ortega y Gasset

El verdadero tesoro del hombre es el tesoro de sus errores, la larga experiencia vital decantada gota a gota en milenios. Por eso Nietzsche define al hombre superior como el ser de "la más larga memoria".
A definição dada por Ortega y Gasset, em seu La Rebelión de las Masas, ao termo massa ou, mais especificamente, ao homem-massa, sempre foi tema de muita discussão. Como se já não bastasse a novidade do fenômeno propriamente dito (a rebelião das ditas massas), há sempre uma certa dificuldade em precisar se este ou aquele indivíduo é também um homem-massa. Pergunta que caberia ao leitor: "serei eu, também, um homem-massa?"

O trecho epigrafado, retirado do Prólogo para franceses, parece permitir uma decisão mais rápida. O homem-massa de Ortega é o oposto do homem superior de Nietzshe; não se trata, pois, de uma distinção calcada em classes sociais, mas sim numa violenta falta de memória. O homem-massa pode ser motorisa de ônibus, torneiro mecânico, cardiologista ou físico de plasmas. Ele pode contribuir para o avanço mesmo do que há de mais abstruso e inacessível na tecnologia de ponta. Em que consiste, então, o cientista desmemoriado?

Antes mesmo de saber precisamente o que essa 'amnésia' significa, cabe notar que a definição de homem-massa, tal como vista até aqui, já impede que se fale em decadência assim como queria Spengler. O homem-massa de Ortega chega à civilização em que está inserido como o bebê chega ao mundo: nos primeiros momentos, o menor detalhe já é motivo para alumbramento; quando não lhe satisfazem as exigências, põe-se a chorar freneticamente; quando decide agir, fá-lo atabalhoadamente e com violência, sem evitar perigos conhecedíssimos e outros tantos que poderiam ser inferidos. Daí a propensão natural do homem-massa à revolução, à rebelião. Quem desconhece o que lhe antecedeu não tem por que ser escrupuloso no ato de destruí-lo.

Fica claro daí que o que se propõe não é um declínio, processo esse que, por mais degenerativo e incaracterístico que seja, mantém-se sempre ligado, como num contínuo, a tudo quanto veio antes, incluído aí o auge mesmo da cultura ou civilização em questão. O homem-massa, por outro lado, promove uma ruptura radical e irremediável; ele está só no mundo como um primitivo, alheio a qualquer tipo de tradição.

Se a perspectiva de uma sociedade dominada pelas tais massas deve necessariamente incluir um total desapreço pelas culturas anteriores, no âmbito individual esse desprezo pelo passado se transforma num desprezo pelo vizinho. Note-se que o homem-massa, tendo relegado o que lhe antecedeu a um plano de menor importância, interpretará o prestígio que porventura lhe for concedido como uma autorização para extravasar sua autoridade específica (a esta altura bastante limitada) e invadir arrogantemente a dos outros. A resposta que o homem-massa encontra em si mesmo já é mais que suficiente; não se lhe afigura necessário consultar quem quer que seja: fazê-lo seria sinal de subserviência, de uma muito detestada servidão. É exatamente o contrário do que se encontra na noção que Ortega tem de nobreza:
No le sabe su vida si no la hace consistir en servicio a algo trascendente. Por eso no estima como una opresión la necesidad de servir. Cuando esta, por azar, le falta, siente desasosiego y inventa nuevas normas más difíciles, más exigentes, que le opriman. Esto es la vida como disciplina - la vida noble. La nobleza se define por la exigencia, por las obligaciones, no por los derechos.
Reparem que só citei definições negativas do homem-massa - o que ele não é. Por mais extensiva que seja a descrição que Ortega faz do homem-massa, essa parece ser a maneira mais fácil de identificá-lo num texto curto: opondo a sua memória à do Ortega, opondo ele mesmo ao homem superior de Nietzsche, opondo sua 'liberdade' à 'servidão' dos nobres.

01 outubro, 2006

Adendo

Estava eu lendo o The Decline of the West, do Oswald Spengler (de que falarei num dos próximos posts), quando encontrei a seguinte passagem, que serve de adendo ou confirmação ao que se disse no post sobre indução:
Nature-laws are forms of the known in which an aggregate of individual cases are brought together as a unit of higher degree. Living Time is ignored - that is, it does not matter whether, when or how often the case arises, for the question is not of chronological sequence but of mathematical consequence. But in the consciousness that no power in the world can shake this calculation lies our will to command over Nature. That is Faustian. It is only from this standpoint that miracles appear as breaches of the laws of Nature. Magian man saw in them merely the exercise of a power that was not common to all, not in any way a contradiction of the laws of Nature. And Classical man, according to Protagoras, was only the measure and not the creator of things - a view that unconsciously forgoes all conquest of Nature through the discovery and application of laws.

29 setembro, 2006

O Exército do Diabo

Janer Cristaldo, articulista do Mídia sem Máscara, tem sido alertado até pelo próprio Olavo de Carvalho quanto à sandice de seus últimos textos sobre religião. Ocorre que Cristaldo ainda está entusiasmado por ter, lá pelos confins de sua puberdade, rompido com a religiosidade que o circundava. Esbravejou um corajoso não às freirinhas do colégio. Esse conflito tipicamente juvenil está longe de ser incomum e já serviu de mote para alguns bons romances, com a ressalva de que todos eles retrataram-no quando de sua origem. O Portrait of the Artist as a Young Man já se revela pelo título: que ridículo não seria se, em vez do rapazote Dedalus, surgisse a figura de um ancião rememorando e exaltando as rebeldias de um passado longínquo? Certas verdades só servem para quem as descobriu.

Em um de seus últimos delírios, Cristaldo pretende mostrar que comunistas não são ateus. Argumenta que apenas trocaram o deus cristão pela História, pelo marxismo ou por qualquer outra baboseira análoga. Aí está, recém-saída do forno, fruto de uma ligeira e quase imperceptível troca, uma nova religião: formalmente comparável à cristã, apesar de sua gênese não passar de um exercício de terminologia. Cristaldo cita Camus e Kazantzakis como prova cabal de que o que houve na União Soviética foi realmente culto religioso. O que realmente surpreende, tanto nos comunistas como em Cristaldo, é a facilidade com que se desvencilham desse estorvo chamado cristianismo, como se fosse um par de sapatos passível de troca a depender da conveniência.

Numa tentativa meio desesperada de livrar a cara dos ateus, Cristaldo acaba fazendo pior: transfere boa parte da culpa aos cristãos. Sigamos sua lógica: se os comunistas, logo eles, engendraram um modelo de adoração perfeitamente semelhante ao cristão, algo de podre e condenável deve haver nesse modelo. E vai além:
Par contre, pergunte-se a qualquer um dos políticos que se beneficiaram de mensalões, propinas, esquema de sanguessugas, caixa 2, nepotismo, tráfico de influência ou tráfico de drogas, se ele acredita em Deus. Todos eles dirão que sim, pois não há no Brasil político que não acredite em Deus.
Seria o caso de perguntar: e daí? Na esperança de mostrar que nem todo ateu é moralmente desleixado, chega à obviedade, conhecida por qualquer torneiro mecânico, de que nem todo cristão é exatamente o supra-sumo da moralidade. Aprendemos do trecho abaixo, do conto a Igreja do Diabo de Machado de Assis, que há muitos modos de afirmar; a negação, porém, seja ela direta ou através da divinização de um embuste, é única:
Vá, pois, uma igreja, concluiu ele [o Diabo]. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim, nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.
Leiam o texto do Cristaldo aqui.

27 setembro, 2006

O Problema da Indução

O Princípio da Indução Finita (PIF) é um artifício comumente empregado quando se quer demonstrar um resultado previamente conhecido. É um procedimento que, mesmo restrito à matemática, causa certa estranheza aos não-iniciados. Prova-se uma propriedade por indução quando essa propriedade é válida para o caso inicial (n = 1) e quando a suposição de que é também válida para um caso genérico (n = k) nos leva à validade do caso seguinte (n = k + 1). Se k = 1, a validade do primeiro caso (que é verificável ou dado) nos leva à validade do segundo. A partir do segundo chegamos ao terceiro, e assim por diante. Exemplo: quer-se mostrar por indução a seguinte identidade: ln(an) = n . ln(a).

(i) A identidade é verdadeira para n = 1 pois está claro que ln(a1) = ln(a) = 1 . ln(a).

(ii) Suponhamos que ela é verdadeira para n = k, isto é: ln(ak) = k . ln(a).

(iii) Vejamos o que acontece com o caso seguinte, partindo do lado esquerdo da igualdade: ln(ak+1) = ln(ak . a) = ln(ak) + ln(a) = k . ln(a) + 1 . ln(a) = (k + 1) . ln(a).

Usamos apenas a propriedade do produto de logaritmandos [ ln(a . b) = ln(a) + ln(b) ] e a suposição enunciada em (ii). Chega-se, assim, à conclusão de que a identidade é válida para qualquer n. Até aqui, tudo muito simples e intuitivo. Começam a surgir problemas quando se quer estender essa noção indutiva à filosofia. A conexão parece óbvia: se a força gravitacional funcionou hoje, ontem e sempre, funcionará também amanhã. Ocorre que esse raciocínio não resiste nem à análise puramente matemática da coisa. Provemos, por indução, que a gravidade funcionará amanhã. O caso inicial é verdadeiro, já que percebo claramente que ela está a funcionar hoje. Suponhamos o mesmo para um dia genérico k. O que me permite concluir que ela estará intacta no dia k + 1? Nada. Quando muito, a probabilidade, mas nesse caso já teríamos deixado há muito o campo rigoroso da demonstração analítica.

O tratamento que Karl Popper dá à idéia de ciência reflete exatamente essa rejeição ao inducionismo. Só poderá ser ciência aquilo que admitir sua própria falibilidade. Não deixa de ser curioso que a mente científica, indissoluvelmente associada à busca da verdade, seja assim pautada pela possibilidade mesma da ausência de verdade; pelo engano, pela 'mentira'. Nesse sentido, a física corpuscular de Newton é genuinamente científica porque resguardou a possibilidade de sua própria 'destuição': enunciou arbitrariamente coisas que mais tarde se revelariam falsas ou apenas parcialmente verdadeiras. A contribuição de Einstein não é menos científica: parte do pressuposto, questionabilíssimo, de que a velocidade da luz independe do referencial tomado, além de valer, no máximo, aproximadamente 3.108 m/s. Toda a Relatividade está construída em cima disso.

Essa confusão entre inducionismo e ciência pode levar a erros constrangedores. O comentário que Gustavo Corção faz sobre uma tese de Euryalo Cannabrava é bem ilustrativo:
Um curioso exemplo da falta de precisão científica em que incide certa espécie de filosofia cientificista, pode ser colhido na página setenta e quatro da tese que o Sr. Euryalo Cannabrava apresentou no seu concurso. Depois de muitas considerações tortuosas sobre a diferença que existe entre a linguagem científica e a linguagem poética, diz ele o seguinte:

"Cabe aqui perguntar se a frase "L'Amore que muove il sole e l'altre stelle" poderá ser considerada uma proposição. A fim de responder a essa pergunta, é necessário resolver preliminarmente se o seu enunciado será falso ou verdadeiro. Sob o ponto de vista da linguagem científica "L'Amore que muove il sole e l'altre stelle" se considera falso. o que move o sol e as estrelas não é o amor, mas o que está expresso na lei de Kepler, de acordo com a qual os astros descrevem, na sua órbita, uma elipse de que o sol ocupa um dos focos."

Diz o autor que não é o amor que move o sol e as estrelas, é o que está expresso na lei de Kepler. Ora, essa proposição, apesar das aparência, é muito menos científica do que o verso de Dante. Essa proposição é falsa. As leis de Kepler exprimem apenas como se movem os astros e não o que os move. Quando o grande astrônomo enuncia que os planetas descrevem elipses em que os quadrados dos tempos de revolução são proporcionais aos cubos dos eixos maiores, a causa eficiente, aquilo que move, não entra de modo algum em seu enunciado. E basta esse pequeno detalhe para me autorizar a dizer que a frase "o que move o sol e as estrelas é o que está expresso na lei de Kepler..." seria admissível na boca de um desprevenido bombeiro hidráulico que acabasse de ler o último número de Seleções, mas é imperdoável na tese de um candidato à cátedra de filosofia. Essa frase revela um irrecuperável escript de lourdeur, uma absoluta ausência de precisão cientifica, e sobretudo uma total incapacidade filosófica.

Se o autor daquela frase tivesse dito "leis de Newton" em lugar de leis de Kepler, o erro de sua proposição seria menos aparente, porque aquelas leis, embora ainda sejam expressões de modalidade, incluem uma referência à causa próxima da interação dos corpos celestes. Os corpos se atraem na proporção direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias. Cinqüenta anos depois do grande Kepler, o imenso Newton virá dar maior unidade à mecânica celeste. Mas ainda não se pode dizer com propriedade que o que move o sol e as estrelas é o que está expresso na equação de Newton. A gravitação universal é um fato físico, e a lei de Newton descreve como agem os corpos dentro dessa realidade física que em si mesma é distinta dos símbolos matemáticos. A realidade das causas mais profundas que movem os astros escapa ao tratamento matemático e pertence ao domínio propriamente filosófico pelo qual o Sr. Cannabrava nutre tamanha aversão. Posso convir que uma pessoa seja agnóstica e que leve seu positivismo até o ponto de se desinteressar pelas causas profundas. Neste caso, porém, deve dizer: eu não sei o que é que move os astros, só sei que eles se movem assim...
As 'leis' de Kepler, louváveis como são, representam um exercício de simples inducionismo: um exercício de encontrar um modelo que esteja de acordo com as observações experimentais, ainda que não se tenha idéia da causa física por trás do modelo. A descrição de Newton vai além porque insere elementos fisicamente palpáveis (massa, distância), e é nesse sentido que se pode dizer que as leis de Newton 'demonstram' as leis de Kepler. Mas, se as leis de Kepler são realmente leis, por que precisam de demonstração? O termo é evidentemente inadequado para o caso de Kepler, mas não é tão simples perceber que tampouco serve para o de Newton. Culpem o inducionismo.

24 setembro, 2006

Bola na Vidraça ou Comfortably Numb

Quem já leu Turma da Mônica lembrará as várias ocasiões em que Cascão & colegas, jogando futebol, quebraram a vidraça de alguém. Lembrarão também um particular que hoje se nos afigura chocante: ficavam todos aterrorizados com a espera de um castigo que certamente viria. A Turma da Mônica é o último baluarte da moralidade no Brasil: os culpados costumam ser punidos. Quando o Franjinha bola um plano mirabolante para conquistar a Marina, invariavelmente é descoberto. Quando o Cebolinha leva adiante algum plano infalível para derrotar a Mônica, inevitavelmente apanha. Lá tudo funciona. É a Elfland de Chesterton em quadrinhos.

Já o brasileiro comum teve sua capacidade de sentir medo ou indignação embotada. Quebram nossas vidraças, entram sem pedir licença para pegar a bola de volta e nem nos ocorre pedir alguma explicação. Se me pedissem para divisar um critério que, sozinho, fosse capaz de medir o nível de civilização de um país, seria esse: a inclinação que o cidadão médio tem para pedir licença. Quem não pede licença confessa um desdém inveterado pela propriedade privada. É por isso que o americano pede licença sempre que invade uma área contida num raio de 2 metros de distância de qualquer pessoa.

As exigências de ordem moral do brasileiro foram de tal maneira mitigadas que já se pode falar num estado de letargia permanente. O brasileiro, nada obstante a energia e a vivacidade aparentes, é um sonâmbulo, é um "homem cordial" sem educação. Pouco importa que o mundo desabe ao seu lado; o sonâmbulo desperta da modorra por alguns instantes apenas para murmurar algumas reclamações ininteligíveis e voltar ao confortável sono dos que não se importam.

23 setembro, 2006

Alckmin?


Chegamos a um ponto em que votar em Alckmin já se tornou um imperativo moral. Fala-se muito da clivagem relativa às camadas sociais dos eleitores nessas eleições, mas o que vemos é uma reflexão do óbvio: quando o que se precisa para repudiar um candidato é uma quantidade ínfima de informação, não votarão nele aqueles que têm essa informação. Seria o caso de estranhar por que essa clivagem não é ainda mais acentuada: por que diabos ainda há gente que, ganhando mais de 10 salários mínimos, ainda não se decidiu a votar em Alckmin?

Há, claro está, os que se beneficiarão diretamente com a eleição de um outro candidato. Não me refiro a esses. Tampouco me refiro aos que sucumbiram ao mito Lula, o torneiro mecânico (tive a oportunidade de conversar com um técnico de torno, e fui informado de que acidentes nesse tipo de equipamento são impossíveis sem uma boa dose de negligência) que ascendeu aos céus. Esses não têm mais volta. Podemos mostrar-lhes as provas mais cabais e esses fanáticos continuarão irredutíveis; quando muito, interpretarão as provas como um embuste, uma conspiração para derrubar o metalúgirco-prodígio que, dessa forma, sair-se-á com uma aura ainda mais angélica e supernatural, mesmo sendo um inveterado troglodita. Não, não me refiro a esses: é perfeitamente compreensível que votem em Lula ou em qualquer outro que não Alckmin.

Há tambem os que, lendo uma ou outra manchete de jornal, se dizem decepcionados com o PT ou com Lula, resignando-se a votar em Heloísa Helena ou nulo. Mais uma vez, é possível compreendê-los. Certamente também haverá aqueles que acreditam com sinceridade nos méritos de Cristovam Buarque. Até aí nada de grotesco. Restam, porém, aqueles que apesar de não terem sucumbido ao mito, e apesar de não poderem contar com nenhum benefício direto com a eleição de qualquer candidato, e muito embora não sejam doidivanas a ponto de acreditar que alguém como Heloísa Helena seja necessariamente menos perigosa que Lula, e conquanto não queiram desperdiçar o voto num cachorro morto como o Buarque, ainda assim não votam em Alckmin. Fora dessas já mencionadas categorias, é logicamente indefensável não votar em Alckmin.

Existe sempre a ilusão do voto nulo. Cria-se a impressão de que o voto nulo isenta o eleitor de qualquer responsabilidade, ou que lhe serve como carta de protesto contra a situação que aí está. Ocorre que quem já tem mais de 12 anos (e isso inclui, alas, todos os votantes) intui facilmente que, nessas eleições, votar nulo significa votar Lula. Como explicar essa omissão em massa? Ora, não há como explicar, a menos que apelemos para fatalismos do tipo "o brasileiro é burro mesmo." Reparem que, no post Alckmin?, nem sequer falei sobre Alckmin. E com razão: não há a menor necessidade.

09 setembro, 2006

Iniciativa e Proatividade

O que seria de nós se não existissem os com-iniciativa? Não passa um dia sem que eu interrompa, por um ou dois minutos, meus afazeres, agradecendo mentalmente e com grande reverência o trabalho vertiginoso desses virtuosos. Provavelmente não está claro o que quero dizer com 'com-iniciativa': o sujeito com-iniciativa é aquele que, quando anunciam uma festinha qualquer, se disponibiliza, arfando e aos tropeços, para ajudar na organização. Aquele que, se há uma rifa, faz de tudo pra conseguir ajudar na vendagem dos bilhetes.

É claro que a mesquinhez dos exemplos citados é intencional, mas já dá pra ter uma idéia do que quero dizer. Hoje não se pode passar uma esquina sem ouvir algum suposto especialista esbravejando aos quatro ventos: 'precisa-se de iniciativa e de proatividade. Flexibilidade também'. Quem precisa? 'O mercado de trabalho'. Sinceramente espero que essa entidade mística e flutuante, o tal mercado de trabalho, já esteja abarrotada de gente com iniciativa. Será mais fácil manter a distância. E ainda assim agradeço-lhes a existência? Pois sim.

Imagino que seria particularmente difícil sobreviver sem que eles existissem; seria necessário divisar uma maneira alternativa para encontrar os vendedores de bilhetes. Sorteio ou algo do tipo. O certo é que representa esforço hercúleo tentar substituir essa gente; eles são infatigáveis, eles não páram, e eles adoram dizer que não páram. Eles estão sempre juntos: sentem uma necessidade inadiável de se reunir, de debater, de discutir o inominável e de descrever o inefável. Seria o caso de apelar para ferramentas psicanalíticas se eu tivesse competência para tanto. Penso logo em Estragon, personagem da peça Waiting for Godot de Samuel Beckett, aquele mesmo que enchia e esvaziava garrafas sucessivamente para passar o tempo. A diferença é que Estragon sabia que era inútil continuar, apesar de nunca lhe ter passado pela cabeça não continuar.

Falava eu da mania que eles têm de se reunir. Já se transformou em verdadeiro fetiche: reúnem-se para discutir os altíssimos desígnios que lhes foram incumbidos pela iniciativa e pela proatividade. Amiúde chegam à conclusão de que o mundo é verdadeiramente mau e de que é necessário transformá-lo dum só golpe, apesar de eu nunca ter testemunhado, por parte deles, a mais modesta tentativa de compreendê-lo. Não sei que maluco resolveu convencê-los de que têm autoridade ou capacidade para tanto. O certo é que, armados até os dentes com uma filantropia tão burra quanto engraçada, promovem um estrago que requintes de artificiosa deliberação talvez não igualassem.

Já me arrependi: melhor não agradecer.

06 setembro, 2006

Cinema

Recentemente vi três filmes dignos de recomendação:

1. On the Waterfront (Elia Kazan, 1954)


Terry Malloy (Marlon Brando), depois de participar inadvertidamente de um assassinato, e com a ajuda de Father Barry (fazia tempo que eu não via um padre que não faz papel de safado), começa a se voltar contra os chefes corruptos da union de trabalhadores do porto. É claro que essa redenção também conta com a ajuda de Edie, a irmã do já referido morto. Pois bem, enquanto muitos filmes ganharam nome retratando a gradativa descida do homem aos infernos, esse mostra o caminho inverso: com a ajuda de um padre, santo Deus! Imperdível.

2. The Apartment (Billy Wilder, 1960)


É verdade o que sempre se diz a respeito desse filme: é bom como comédia, como drama, como romance; mas principalmente como comédia. Até a gripe do C. C. "Bud" Baxter (Jack Lemmon) consegue ser engraçada. Baxter costuma ceder seu apartamento para que figurões da seguradora em que trabalha possam faturar suas mistresses em paz. Em troca, claro está, de favores profissionais. Acaba se envolvendo com a ascensorista da agência, a lindíssima Fran Kubelik (Shirley MacLaine), que por sinal é amante de um de seus superiores e lhe aparece desmaiada em seu apartamento. Tagline: Movie-wise, there has never been anything like "The Apartment" - laugh-wise, love-wise, or otherwise-wise!

3. To Kill a Mockingbird (Robert Mulligan, 1962)


Não li o livro homônimo da Harper Lee (aquela mesmo, amiga do Truman Capote), apesar de tê-lo recebido como presente de Natal há uns anos. Acabei trocando. Mas é leitura obrigatória pra todo adolescente norte-americano. O livro/filme, ambientado no sul norte-americano, trata do advogado Atticus Finch (Gregory Peck) e sua malograda tentativa de inocentar o comprovadamente inocente e negro Tom Robinson (Brock Peters). Tudo isso a partir da perspectiva de Scout, filha de Finch, ainda pequena na época do julgamento. Dos três filmes aqui citados, é o mais fraco.

Borges e Emma Zunz

Emma Zunz é, juntamente com Historia del Guerrero y de la Cautiva, o único conto não-fantástico do volume El Aleph. Rendeu uma versão do The Movies, que pode ser vista abaixo. Para entender o narrador é necessário um ouvido mais ou menos acostumado ao espanhol. As vozes, é claro, são bem engraçadas.

26 agosto, 2006

El Túnel: XXXVI

Thomas Mann estava certo ao descrever o romance (ou melhor, a novela) El Túnel, do argentino Ernesto Sabato, como impressionante. Aí vai um dos capítulos mais impressionantes:
Fue una espera interminable. No sé cuánto tiempo pasó en los relojes, de ese tiempo anónimo y universal de los relojes, que es ajeno a nuestros sentimientos, a nuestros destinos, a la formación o al derrumbe de un amor, a la espera de una muerte. Pero de mi propio tiempo fue una cantidad inmensa y complicada, lleno de cosas y vueltas atrás, un río oscuro y tumultuoso a veces, y a veces extrañamente calmo y casi mar inmóvil y perpetuo donde María y yo estábamos frente a frente contemplándonos estáticamente, y otras veces volvía a ser río y nos arrastraba como en un sueño a tiempos de infancia y yo la veía correr desenfrenadamente en su caballo, con los cabellos al viento y los ojos alucinados, y yo me me veía en mi pueblo del sur, en mi pieza de enfermo, con la cara pegada al vidrio de la ventana, mirando la nieve con ojos también alucinados. Y era como si los dos hubiéramos estado viviendo pasadizos o túneles paralelos, sin saber que íbamos el uno al lado del otro, como almas semejantes en tiempos semejantes, para encontrarnos al fin de esos pasadizos, delante de una escena pintada por mí como clave destinada a ella sola, como un secreto anuncio de que ya estaba yo allí y que los pasadizos se habían por fin unido y que la hora del encuentro había llegado.

¡La hora del encuentro había llegado! Pero ¿realmente los pasadizos se habían unido y nuestras almas se habían comunicado? ¡Qué estúpida ilusión mía había sido todo esto! No, los pasadizos seguían paralelos como antes, aunque ahora el muro que los separaba fuera como un muro de vidrio y yo pudiese verla a María como una figura silenciosa e intocable... No, ni siquiera ese muro era siempre así: a veces volvía a ser piedra negra y entonces yo no sabía qué pasaba del otro lado, qué era de ella en esos intervalos anónimos, qué extraños sucesos acontecían; y hasta pensaba que en esos momentos su rostro cambiaba y que una mueca de burla lo deformaba y que quizá había risas cruzadas con otro y que toda la historia de los pasadizos era una ridícula invención o creencia mía y que en todo caso había un solo túnel, oscuro y solitario: el mío, el túnel en que había transcurrido mi infancia, mi juventud, toda mi vida. Y en uno de esos trozos transparentes del muro de piedra yo había visto a esta muchacha y había creído ingenuamente que venía por otro túnel paralelo al mío, cuando en realidad pertenecía al ancho mundo, al mundo sin límites de los que no viven en túneles; y quizá se había acercado por curiosidad a una de mis extrañas ventanas y había entrevisto el espectáculo de mi insalvable soledad, o le había intrigado el lenguaje mudo, la clave de mi quadro. Y entonces, mientras yo avanzaba siempre por mi pasadizo, ella vivía afuera, esa vida curiosa y absurda en que hay bailes y fiestas y alegría y frivolidad. Y a veces sucedía que cuando yo pasaba frente a una de mis ventanas ella estaba esperándome muda y ansiosa (¿por qué esperándome? ¿y por qué muda y ansiosa?); pero a veces sucedía que ella no llegaba a tiempo o se olvidaba de este pobre ser encajonado, y entonces yo, con la cara apretada contra el muro de vidrio, la veía a lo lejos sonreír o bailar despreocupadamente o, lo que era peor, no la veía en absoluto y la imaginaba en lugares inaccesibles o torpes. Y entonces sentía que mi destino era infinitamente más solitario que lo había imaginado.

25 agosto, 2006

Mill (2): Utilitarianism

Partindo do princípio utilitário segundo o qual a Felicidade é o objetivo ulterior de nossa existência, coube a Mill, no ensaio Utilitarianism, reformular a idéia que formamos dessa felicidade. Sua idéia difere da tradicional (lê-se da de Jeremy Bentham) em três aspectos: (1) a felicidade adquire um aspecto mais ativo; ela advém principalmente daquilo que realizamos, nosso trabalho e nossas conquistas; (2) a felicidade é idiossincrática, isto é, admitem-se peculiaridades que não necessariamente concorrem para a felicidade de um indivíduo, mas que podem concorrer para a de um outro; (3) as circunstâncias mais relevantes para a obtenção da felicidade são de ordem pessoal, o que constitui a própria tese do On Liberty.

Quem leu o post sobre Viktor Frankl lembrará que (1) é um dos meios citados através dos quais podemos chegar a um sentido. (2) é encarado pelo leitor moderno como uma obviedade, mas não custa lembrar que mesmo reconhecendo a pluralidade do fenômeno da felicidade, Mill acreditava, assim como o fazia Aristóteles, que existe uma, digamos, hierarquia dos prazeres. Mill é axiomático ao afirmar que os prazeres de caráter intelectual são superiores em relação aos demais. Não temos aqui, como talvez quisessem os mais modernosos, liberdade total e irrestrita: It is better to be a human being dissatisfied than a pig satisfied; better to be Socrates dissatisfied than a fool satisfied. Em (3) se verifica a suspeita de que, contrariamente ao que diziam muitos de seus críticos, Mill era um pensador consistente e até bastante sistemático (suspeita que ganha força quando se lê outros de seus ensaios), chegando a níveis de ambição inobserváveis em intelectuais desconexos e intempestivos.

Mill parece tentar divisar nada menos que uma Religião Universal. Sugere que a moral cristã, sem o auxílio de aquisições seculares, não é suficiente para a formação do caráter ideal. Apesar de estar disposto a preencher essa e outras lacunas, persiste a velha dificuldade que assombra todo e qualquer utilitarista: a questão da 'medição' dos prazeres. Ainda que uma classificação bastante ampla seja às vezes possível (como a dos prazeres intelectuais versus o resto, se estivermos realmente dispostos a aceitá-la), qualquer tentativa mais específica não deve esperar muito sucesso. É forçoso reconhecer que a concessão feita em (2) dificulta ainda mais a situação; se talvez chegamos a uma descrição mais fiel da realidade, simultaneamente torna-se mais difícil sua análise: algo como o equivalente do Princípio da Incerteza nas ciências sociais.

Seria conveniente desmistificar o preconceito referente ao termo utilitarismo segundo o qual esse ramo do pensamento apregoa práticas nada menos que egoístas, aliadas ao também famigerado individualismo. Nada tenho contra preconceitos, apenas advirto que esse tem origem numa simples deturpação da termionologia. Utilitarismo não é 'ser feliz' e dane-se o resto:
The utilitarian morality does recognize in human beings the power of sacrificing their own greatest good for the good of others. It only refuses to admit that the sacrifice is itself a good. A sacrifice which does not increase, or tend to increase, the sum total of happiness, it considers wasted.
Mais uma vez as palavras soam familiares: Frankl falava do sofrimento como maneira de obter a felicidade, dado que esse sofrimento tivesse um significado. A diferença é que, sem o termo utilitarismo, a idéia nos parece mais simpática.

20 agosto, 2006

Mill (1): On Liberty

The object of this Essay is to assert one very simple principle, as entitled to govern absolutely the dealings of society with the individual in the way of compulsion and control, whether the means used be physical force in the form of legal penalties, or the moral coercion of public opinion. That principle is, that the sole end for which mankind are warranted, individually or collectively, in interfering with the liberty of action of any of their number, is self-protection.
O objetivo de John Stuart Mill (1806-73) ao escrever esse que se tornou seu ensaio mais famoso, On Liberty, era estabelecer um critério que não somente regulasse as relações entre indivíduo e sociedade, mas que também fosse simples, isto é, um princípio cuja aplicação simples e direta fosse capaz de solucionar qualquer dúvida relativa à interferência do coletivo na esfera individual. Um projeto assim tão ambicioso, ainda que empreendido por uma inteligência prodigiosa como a de Mill, estava fadado a falhar.

Realmente, o que se observa é que o critério proposto por Mill nada tem de simples. Primeiro, ele supõe que cada indivíduo, quando restrito ao âmbito pessoal, aquele que não exerce influência direta sobre quem quer que seja além do próprio indivíduo, tem o direito de cultivar livremente suas idiossincrasias. Difícil precisar os limites dessa "esfera" íntima; há quem argumente que ela nem sequer existe, visto que, a menos que se trate de um recluso, qualquer ação sua pode vir a ter um impacto sobre alguém, ainda que esse impacto não seja mais que um bom ou mal exemplo.

Adiante: sabemos que a interferência do coletivo sobre o individual pode ser justificada com base no argumento de que, no caso em questão, essa interferência evitaria danos a terceiros. Acontece que a interferência pode ser ela própria mais danosa que os males supostamente evitados. É-nos facilmente concebível uma situação em que o estímulo às liberdades pessoais de alguém (por exemplo, a liberdade de abrir um negócio) tem influência marcadamente negativa sobre as interesses de outros (por exemplo, da concorrência). Isso não significa que o Estado deve intervir, suprimindo ou limitando a liberdade de mercado. Se por acaso chegamos à conclusão de que, dada uma situação qualquer, algum tipo de intervenção faz-se necessária, é porque a força das circunstâncias nos fez ver que o mal advindo desse desrespeito à individualidade é mais que contrabalançado pelo benefício final alcançado.

Percebe-se logo que a aplicação desse princípio depende diretamente de longos processos de deliberação, em que devem pesar as especificidades de cada caso, e cujo fim é sempre a escolha, não raro dificílima, do mal menor. Esse é um problema intrínseco à filosofia utilitarista, sobre a qual Mill também escreve: se o objetivo maior de nossa existência é a Felicidade, como determinar os meios mais aconselháveis para a sua obtenção?, ou, questão análoga, como comparar diferentes prazeres? Vale lembrar que Mill vê o respeito à individualidade como condição necessária para se chegar à Felicidade (um dos capítulos do ensaio é chamado Of Individuality, as One of the Elements of Well-Being), motivo mais que suficiente para conferir especial seriedade à decisão de infringi-la.

Boa parte dessas dificuldades foram previstas e até comentadas pelo próprio Mill. Suas perguntas,
What, then, is the rightful limit to the sovereignty of the individual over himself? Where does the authority of society begin? How much of human life should be assigned to individuality, and how much to society?,
feliz ou infelizmente, continuam sem resposta definitiva. Mais uma vez, o pragmático triunfa sobre o paradigmático.

13 agosto, 2006

Mosca Tsé-Tsé

Fui picado pela famosa mosca tsé-tsé. Só dormi esses dias. ZZzz.

Nossa Imparcialidade

Os antigos representavam a Justiça como uma entidade cega. Note-se: cega, não burra. A noção correta de imparcialidade é exatamente essa: a implementação rigorosa de um regulamento cujas consequências não nos são previsíveis, isto é, qualquer um pode estar certo ou errado, qualquer um pode ser inocente ou culpado. A menos, é claro, que haja motivos palpáveis para a deturpação desse equilíbrio.

Ninguém nega a diferença entre homicídio doloso e culposo; não há qualquer traço de parcialidade na iniciativa de tratar um dos casos com mais severidade. Em geral, a mídia brasileira parece pensar diferente. O esforço para parecer imparcial é tão grande que se procura igualar tudo e todos perante a análise do jornalista; qualquer juízo de valor referente ao posicionamento moral dos envolvidos é heresia das mais cabeludas. Essa imparcialidade bonachã e risonha não exclui ninguém: terroristas, assassinos, estupradores etc. Uma temeridade condená-los; é preciso ouvi-los, devem ter tido seus motivos. Na década de 80 deviam ser crianças sofridas.

Quando nos afastamos do campo do Direito, essa obsessão pela imparcialidade passa a ser nada menos que burrice, uma abdicação intelectual total e irrestrita. John Stuart Mill, no ensaio Utilitarianism:
Impartiality, however, does not seem to be regarded as a duty in itself, but rather as instrumental to some other duty; for it is admitted that favour and preference are not always censurable, and indeed the cases in which they are condemned are rather the exception than the rule. A person would be more likely to be blamed than applauded for giving his family and friends no superiority in good offices over strangers, when he could do so without violating any other duty; and no one thinks it unjust to seek one person in preference to another as a friend, connection, or companion.
Outros tempos, outra gente. Depois escrevo sobre o Mill. Ando meio adoentado.

06 agosto, 2006

A França de Burke


A França dos revolucionários é bem conhecida, assim como todos os altíssimos ideais que teriam, supostamente, posto um fim ao ancien régime e dado início a uma era de igualdade e esclarecimento político. A França de Edmund Burke já é um tanto diferente e, talvez por isso mesmo, menos conhecida, apesar de guardar com a realidade (a realidade de até então, 1790, e também a dos anos seguintes) uma similitude assombrosa. Conor Cruise O'Brien, estudioso (também irlandês) autor da introdução de 80 páginas ao volume das Reflections on the Revolution in France da Penguin, afirma que, até hoje, é erro comum entre undergraduates achar que Burke teria escrito seu livro depois de a última cabeça antipática aos ideais revolucionárias ter rolado. Muito pelo contrário, foi publicado em novembro de 1790, período relativamente calmo, quando o Terror e as deliberações facinorosas de Robespierre e congêneres ainda estavam por acontecer.

Há, em primeiro lugar, especulações quanto aos motivos da fúria de Burke: muitos vêem inconsistência no fato de ele ter sido favorável à revolução norte-americana e opositor obstinado da francesa. Outros, como Marx (em nota no seu O Capital), achavam que Burke buscava apenas defender o interesse da ordem estabelecida na Inglaterra, da qual era membro relativamente ilustre. Essa suspeita foi avivada quando passou a receber um estipêndio anual graças ao seu livro, mas O'Brien mostra, sem muita dificuldade, que essas e outras acusações são infundadas. Uma leitura mais detida mostra que o discurso (e a virulência) de Burke ataca não só as novidades francesas, mas, de certa maneira, também algumas das mais sólidas convicções britânicas, o que levou Mary Wollstonecraft a afirmar que, se tivesse nascido sob as circunstâncias convenientes, ele teria sido um modelo de revolucionário!

Há quem diga, também, que as imprecações de Burke são mais consequência de uma natureza imaginativa e exagerada que de uma real apreciação dos fatos. Ora, está claro que ele não ignorava a importância de procedimentos tipicamente panfletários; há momentos, acreditava ele, em que moderação no discurso é exatamente o que o adversário mais deseja:
The calm mode of Enquiry would be a very temperate method of our losing our Object; and a very certain mode of finding no calmness on the side of our adversary. Our being mobbish is our only chance for his being reasonable.
Tampouco seria muito sensato creditar todo o esforço de Burke a uma tática cuidadosamente planejada. Aborrecia-o principalmente os ingleses que flertavam abertamente com a idéia de importar as novas idéias do continente, concentrados em especial na Revolution Society; de tal maneira que seu Reflections é antes uma defesa da constituição inglesa que um ataque às excentricidades francesas, apesar de ambos os fins serem, muitas vezes, perseguidos simultaneamente.

Revoltava-o acima de tudo a tranquilidade com que os revolucionários se arvoraram à posição de destruir toda uma tradição política construída até então, ignorando solenemente todo e qualquer ensinamento que pudesse ser aduzido do legado de seus ancestrais (People will not look forward to posterity, who never look back to their ancesters). Parece fazer parte de nosso senso comum exigir que esse tipo de confiança venha acompanhada de nada menos que a mais brilhante inteligência - já que pretende sustentar-se exclusivamente por si mesma -, sob o risco de passar por capricho de gente presunçosa e amalucada. Burke, cujo motto, tão insistentemente lembrado, é mudar para preservar, mal pode esconder sua aversão ante a facilidade com que muitos franceses viraram as costas para o passado. Se é certo que na coroa francesa havia muito a ser corrigido, há um salto lógico que deixaria Aristóteles tonto em supor que só se poderia corrigi-la através de sua total destruição, com o agravante de querer suplantá-la com instituições igualmente ou até mais arbitrárias que as que acabaram de ser rechaçadas. Burke contrapõe esse comportamento destrambelhado à idéia que faz do governo inglês:
Our political system is placed in a just correspondence and symmetry with the order of the world, and with the mode of existence decreed to a permanent body composed of transitory parts; wherein, by the disposition of a stupendous wisdom, moulding together the great mysterious incorporation of the human race, the whole, at one time, is never old, or middle-aged, or young, but in a condition of unchangeable constancy, moves on through the varied tenour of perpetual decay, fall, renovation, and progression. Thus, by preserving the method of nature in the conduct of the state, in what we improve we are never wholly new; in what we retain we are never wholly obsolete.
Depois de fazer uma análise geral do temperamento revolucionário, Burke prossegue mostrando que, diferentemente do que se esperava (dada a arrogância com que ascenderam), os novos detentores do poder estão longe da idealidade que prometeram trazer. Seja por ignorância (para Burke, essa era a hipótese menos provável), fanatismo ou má-fé, o certo é que os procedimentos da Assembléia Nacional fizeram pouco pelo bem e muito pelo mal do povo francês: há análises detalhadas das medidas tomadas pela assembléia em áreas tão variadas como as finanças, a economia especulativa (Burke previu que a desapropriação das terras da Igreja transformaria a França num paraíso dos especuladores), a hierarquização administrativa e as forças armadas (Burke previu, dessa vez com uma precisão assombrosa, que a ausência de uma autoridade fixa levaria à ascensão de uma figura suficientemente inteligente e carismática que, aproveitando-se da fragilidade política do país, dominaria não só as forças armadas como toda a nação: Napoleão chegou ao poder dois anos depois de sua morte), e as poucas vantagens que delas admite advir lhe parecem meramente conjunturais. Está claro que, quando se destrói todo um governo, destrói-se também o que havia de ruim nele. Infelizmente, isso não é algo de que possamos nos gabar, principalmente quando, juntamente com os erros, encontramos, nos escombros do que já foi derrubado, o próprio mecanismo que possibilitaria a supressão desses erros sem que se fizesse necessária a destruição total.

É possível, aqui também, encontrar as contradições típicas de todo governo que pretende representar os interesses populares. No post sobre Chesterton (Chesterton que, aliás, deve muitas de suas tiradas em defesa ao conservadorismo a Burke), cito uma passagem que se refere rigorosamente à mesma idéia aqui tratada por Burke:
You will smile here at the consistency of those democratists, who, when they are not on their guard, treat the humbler part of the community with the greatest contempt, whilst, at the same time, they pretend to make them the depositories of all power.
E, se na época em que o livro foi publicado muitos se sentiram impelidos a achar que Burke exagerava em suas acusações, os acontecimentos dos anos seguintes desmentiram-nos com grande eloquência. É curioso observar (e isso é perceptível graças às notas explanatórias) que muitos dos primeiros defensores da revolução atacados por Burke foram mais tarde guilhotinados. Ora, se foi esse o tratamento dispensado àqueles que concordavam com o breviário insurrecional (pelo menos em sua versão mais moderada), o que dizer daqueles que foram doudos a ponto de declarar-se sumariamente avessos a ele? Burke declarou-se sumariamente avesso, mas porque havia alguns quilômetros de água entre ele e a costa francesa. Graças a essa distância, pudemos herdar, sem maiores prejuízos para o seu pescoço, o registro de seu ideal de homem político:
A disposition to preserve, and an ability to improve, taken together, would be my standard of a statesman. Every thing else is vulgar in the conception, perilous in the execution.