25 dezembro, 2007

The Oxen

Christmas Eve, and twelve of the clock.
"Now they are all on their knees,"
An elder said as we sat in a flock
By the embers in hearthside ease.

We pictured the meek mild creatures where
They dwelt in their strawy pen,
Nor did it occur to one of us there
To doubt they were kneeling then.

So fair a fancy few would weave
In these years! Yet, I feel,
If someone said on Christmas Eve,
"Come; see the oxen kneel,

"In the lonely barton by yonder coomb
Our childhood used to know,"
I should go with him in the gloom,
Hoping it might be so

Thomas Hardy (1840-1928)

Mensagem de Natal

O Jesus Cristo histórico, que completa hoje 2007 anos, deve, idealmente, ceder um pouco de espaço ao Jesus Cristo que nasce, mais uma vez, hoje mesmo (natal, do latim natális, que significa nascer, ser posto no mundo). O fato de o tempo 'divino' poder, sem perda de coerência, retroceder séculos e séculos a cada ano deveria incitar o homem a, também ele, voltar no tempo e tentar entender o que significava então (e o que significa hoje) a novidade cristã. Bem entendido, a tarefa de hoje é bem mais fácil: não precisamos mais superar o choque da novidade. Muito pelo contrário, o que era radicalmente novo é hoje lugar-comum, a ponto de ser muito indevidamente confundido com o que há de mais trivial em nossas vidas.

Pelo menos essa dificuldade, então, é nova: os incrédulos se convertem (ou melhor, já nascem convertidos) sem reconhecer a própria conversão. Um povo de memória curta deve necessariamente ser ingrato. Se é mesmo verdade que, como dizia Nietzsche, esse perfeito anticristão, o homem superior é aquele de mais longa memória, devemos resgatar a noção socrática de anamnese: lembrar para conhecer. Lembrar, claro está, o que houve nessa e em outras vidas. Feliz Natal.

14 dezembro, 2007

O Homem Cordial

Hoje acordei meio aflito, achando que crescia em mim uma idéia originalíssima e genial quando percebi que, como sempre, não passava de uma reedição de algo que eu já tinha lido. A idéia do homem cordial já é hoje bem difundida, ainda que, graças em boa medida à confusão de Cassiano Ricardo, em sua forma corrompida. Nunca ouvi falar de outra expressão mais escandalosamente deturpada que o 'homem cordial' de Sérgio Buarque de Holanda. Talvez fosse possível encontrar rivais em tipos como 'seleção natural', 'materialismo dialético' etc., mas é natural que se escreva muita besteira sobre termos tão comentados. Já o homem cordial do Sérgio Buarque só aparece aqui e ali (até porque qualquer ciência social brasileira anterior a Florestan Fernandes é matéria para arqueólogos), invariavelmente em sua forma positiva: uma variação do velha obsessão brasileira pelo ideal do povo simpático e hospitaleiro; enfim, cordial.

A leitura do Raízes do Brasil já é suficiente pra deixar claro que não se trata disso (pelo menos não principalmente). Respondendo ao comentário de Cassiano Ricardo, Sérgio Buarque se vale da etimologia da palavra pra esclarecer o sentido que ele desejava alcançar: cordial, relativo ao coração. O brasileiro, segundo Sergio Buarque, quer que seu parceiro de negócios, seu patrão, seu cliente, seu funcionário etc. seja, antes de mais, seu amigo. Conta-se uma piadinha, convida-se o sujeito à mesa pra tomar umas, pra jogar futebol, pra conversar na praia. A confraternização sem motivo e descompromissada é o fenômeno brasileiro por excelência; é a expiação do pecado da discordância e da diferença. Joãozinho é adepto do canibalismo? Está tudo muito bem, tudo faz sentido se encarado sob determinado ponto de vista. Pedrinho vê o terrorismo como alternativa? Certamente devemos respeitar sua opinião.

Não admira, então, que nada seja tão raro hoje quanto um ponto de vista expresso com convicção, a não ser que seja o ponto de vista de que não é possível haver convicção. Tudo é mais ou menos aceitável, tudo tem direito a um lugarzinho na vala comum do discutível (há exceções, é claro: hábitos verdadeiramente genocidas como fumar). A verdade é que o brasileiro tem horror a se indispor com quem quer que seja. E, quando não há como evitar indisposições, tem de fazê-lo cordialmente, isto é, violentamente. Isso se verifica com facilidade em qualquer grande aglomerado de pessoas: se você trombar com alguém, a reação, caso haja alguma, é uma de duas: sorriso amigável ou soco no nariz.

Esse salto quântico do amor ao ódio também é observável mesmo em amizades de longa data. O padrão é evitar discussões, mas, caso elas surjam, parece difícil manter o tom civilizado por muito tempo. Que seria isso senão falta de prática? O hábito de discutir calmamente sem que seja necessário arbitrar um 'vencedor' ou mesmo uma conclusão satisfatória (que segundo alguns antigos seria a melhor maneira de obter qualquer conhecimento) é alheio ao temperamento brasileiro. Para evitar discussões, não vou nem sugerir que isso seja particularmente verdadeiro entre as mulheres.

11 dezembro, 2007

O Cronista Revira o Lixo (2)

Ainda no Fantástico de domingo passado eu vi uma entrevista com Oscar Niemeyer. Segundo consta, vai completar 100 anos de idade qualquer dia desses. Como filho de arquiteto, tive a felicidade de ouvir impropérios sobre Niemeyer desde que me entendo por gente: velho maluco, comuna safado, metido a artista etc. Todo cronista, articulista e homem público tem, diria eu, a obrigação de falar mal de Niemeyer. No mundo do politicamente correto, parece que eleger figuras emblemáticas pra servir de saco de pancadas já perdeu toda sua graça. Mas boa parte do charme da crônica advém justamente daí; aliás, aqueles que ainda não sucumbiram ao impessoalismo bonachão de hoje em dia já podem exigir que seus livros sejam expostos numa estante 'crônica heróica', a ser urgentemente implementada em todas as livrarias.

Quem diria que logo eu teria motivos especiais para depreciar a figura de Niemeyer? Pois sim: o alojamento da universidade em que estudo foi projetado pelo próprio, nos idos da década de 50. Há alguns outros prédios por lá projetados por ele, mas deles eu não poderia comentar mais que a aparência externa, a parte 'artística' da coisa. Dessa parte gosta-se ou não a critério, mas tenho a ligeira impressão de que Niemeyer não daria tanta vazão aos seus arroubos arquitetônicos caso tivesse de calcular as estruturas resultantes. Ninguém precisa saber o que são diagramas de momento fletor ou módulo de elasticidade de um material pra perceber que quando apoiamos uma estrutura enorme numa coluna fininha haverá dificuldades de cálculo. 'Mas é pra isso que existem os engenheiros', responderá Niemeyer ou um oponente imaginário qualquer, provavelmente formado em arquitetura. Idealmente, o engenheiro também existiria pra rejeitar projetos que abundam em gastos supérfluos.

Até aí tudo bem: há sempre quem consiga justificar (e pagar por) excentricidades pós-modernas. Problema mesmo surge quando o conforto do lugar fica comprometido. É o que acontece no alojamento onde moro. Mostra-se abaixo uma vista lateral do corredor de apartamentos num bloco qualquer. O sujeito que quiser sair pelos fundos pra visitar outro apartamento vai ter de (i) tomar chuva ou (ii) bater a cabeça num suporte que por algum motivo misterioso faz 45 graus com o teto.

O entrevistador do Fantástico perguntou a quem Niemeyer, aos 100 anos, pediria perdão. Respondeu que pediria a si mesmo, por ter vivido uma vida de muitos enganos. Devia pedir aos estudantes que até hoje batem a cabeça no concreto em sua memória.

10 dezembro, 2007

O Cronista Revira o Lixo (1)

Dessas frasezinhas de efeito que aprendemos em manuais juvenis de esperteza (leia-se: cronistas populares, professores espertalhões, familiares metidos a sábios etc.), a que parece ter maior longevidade é aquela que diz que é necessário um gênio para enxergar o óbvio. Não faço a mínima idéia de quem disse ou sugeriu isso pela primeira vez, mas a versão moderna de que mais gosto, como já devem ter percebido, é a do óbvio ululante de Nelson Rodrigues. Às vezes me pergunto: o que teria sido de Nelson Rodrigues sem a insurgência dos idiotas que ele mesmo tanto denunciou? O grande mérito de Nelson Rodrigues foi não ter sido um idiota.

Voltando à minha frase predileta: ouvi-a pela primeira vez de um professor de física, no ensino médio. A aula era sobre convecção térmica: fluido quente, mais leve, subindo; fluido frio, mais pesado, descendo. Óbvio, não? Mas e a formulação matemática disso? Não se estuda isso no ensino médio, mas parece evidente que quanto mais frio for o fluido frio e mais quente for o fluido quente maior será o fluxo de calor resultante. Todos nós sabemos que o ser humano atinge o ápice da burrice ali pelos 15, 16 anos de idade, mas mesmo nós, alunos, então com 15 ou 16 anos, concordamos quase unanimemente que a colocação era de fato evidente. Evidente porque, enfim, já havia sido enunciada muitos anos antes por ninguém menos que Isaac Newton, nessa que ficou conhecida como a lei da convecção de Newton (pois é, ele não gostava só de mecânica).

Lembrei tudo isso porque resolvi ligar a TV ontem enquanto jantava. No Fantástico, entrevistavam um casal cujo maior atrativo é ter permanecido junto por trinta e tantos anos. Não vou nem discutir o fato, grávido de significância antropológica, de um casamento que deu certo já gerar tanto espanto nos dias que correm. Importa notar é que, como eu temia, o entrevistador levantou a bola e o casal começou a falar de sua vida sexual. É ativa, claro, saudável, sim, divertida etc. O óbvio ululante nessa circunstância em particular é o seguinte: enquanto casais jovens devem se esforçar para não fazer sexo em público, o casal ancião deve se esforçar para que o público não perceba que eles ainda fazem sexo. Por mais que pareça injusta, é a lei da degenerescência física, enunciada há muitos e muitos anos por, sei lá eu, Deus.

Nessas ocasiões temos um surto de autoritarismo e nos perguntamos, em companhia do fantasma de Auguste Comte (cito sem aspas porque é de memória): se não permitimos heresias na física ou na matemática, o que nos leva a permiti-las na teoria política? Ou na estética? Passado o impulso comtiano (não é saudável que ele apareça mais de uma vez por dia), só nos resta esperar que esses vovôs passem dos 15, 16 anos o mais depressa possível.

25 novembro, 2007

The Tuft of Flowers

I WENT to turn the grass once after one
Who mowed it in the dew before the sun.

The dew was gone that made his blade so keen
Before I came to view the leveled scene.

I looked for him behind an isle of trees;
I listened for his whetstone on the breeze.

But he had gone his way, the grass all mown,
And I must be, as he had been,—alone,

‘As all must be,’ I said within my heart,
‘Whether they work together or apart.’

But as I said it, swift there passed me by
On noiseless wing a ’wildered butterfly,

Seeking with memories grown dim o’er night
Some resting flower of yesterday’s delight.

And once I marked his flight go round and round,
As where some flower lay withering on the ground.

And then he flew as far as eye could see,
And then on tremulous wing came back to me.

I thought of questions that have no reply,
And would have turned to toss the grass to dry;

But he turned first, and led my eye to look
At a tall tuft of flowers beside a brook,

A leaping tongue of bloom the scythe had spared
Beside a reedy brook the scythe had bared.

I left my place to know them by their name,
Finding them butterfly weed when I came.

The mower in the dew had loved them thus,
By leaving them to flourish, not for us,

Nor yet to draw one thought of ours to him.
But from sheer morning gladness at the brim.

The butterfly and I had lit upon,
Nevertheless, a message from the dawn,

That made me hear the wakening birds around,
And hear his long scythe whispering to the ground,

And feel a spirit kindred to my own;
So that henceforth I worked no more alone;

But glad with him, I worked as with his aid,
And weary, sought at noon with him the shade;

And dreaming, as it were, held brotherly speech
With one whose thought I had not hoped to reach.

‘Men work together,’ I told him from the heart,
‘Whether they work together or apart.’

Robert Frost (1874-1963)

24 novembro, 2007

O Fenômeno Hemingway

É sempre grande a tentação de procurar defeitos na obra de autores com quem não nos identificamos pessoalmente. Quanto mais sabemos sobre a biografia do sujeito mais corremos esse risco, é claro. O caso de Ernest Hemingway (1899-1961) é bem ilustrativo nesse sentido: trata-se de um grande escritor cuja figura me parece detestável em todos os sentidos imagináveis. Se eu tivesse de compilar uma listinha de celebridades artísticas que eu gostaria de conhecer, Hemingway apareceria por último (OK, penúltimo, sempre há a Lispector). Por quê?

Há detalhes biográficos que por mais condenáveis ainda suscitam uma espécie de volúpia da excentricidade: um certo excesso de autoritarismo, opiniões extremadas sobre determinados assuntos, hábitos atípicos etc. Mas há outros que primam pela mesquinharia e que não poderiam nos afetar senão de maneira negativa: invejinha de escritor, ingratidão e mendacidade. Do primeiro mal Hemingway dá-nos exemplo ao se mostrar inconformado com o sucesso de F. Scott Fitzgerald, apenas alguns anos mais velho que ele, enquanto seus originais eram sucessivamente rejeitados por jornais e revistas americanos. Quanto ao segundo, temos o testemunho das quatro mulheres que tiveram a infelicidade de se casar e se dedicar a alguém tão egoísta (o enredo de Across the River and Into the Trees, penúltimo romance de Hemingway, foi inspirado por uma jovem por quem ele se apaixonou já depois de ter-se casado pela quarta vez). Quanto ao último, só podemos lembrar as muitas anedotas mentirosas que Hemingway contava sobre suas experiências de guerra (e de caça, e de pesca). De fato, Hemingway, principalmente a partir da década de 50, passa a construir uma imagem de selvagem solitário (já não tira mais a barba); participa de safáris na África, isola-se em Havana, Key West ou Idaho, onde viria a se suicidar. Mas, curiosamente, nunca consegue abandonar o estilo bon vivant parisiense, Paris que ele tornava a visitar sempre que a selva começava a aborrecê-lo.

Mas e daí? O fato é que escreveu alguns livros impressionantes (The Sun Also Rises é um dos romances mais emocionantes, no bom sentido, que eu já li na vida) e mesmo quem o odeia como escritor (não conheço muitos) não pode negar a influência avassaladora que ele impôs na prosa em inglês a partir de 1926. Todo mundo parece dever um pouco a Hemingway. Mas como pode ele ser emocionante em determinados momentos se seu estilo é conhecido pelo motivo contrário, a secura, a economia das palavras? No prefácio que Carpeaux escreveu para um livro de Hemingway (e que me motivou a escrever esse post), Vida, obra, morte e glória de Hemingway (1971), ele dá o exemplo, já citado por mim aqui antes, das últimas linhas do The Sun Also Rises. Jake Barnes sofreu um ferimento na guerra que o deixou impotente (o próprio Hemingway feriu-se nos testículos, apesar de não ter ficado impotente) e Lady Brett é sua amiga, um tanto pervertida, diga-se, que apesar da perversão não parece conseguir esquecê-lo. Vão aí as últimas palavras do livro:
"Oh, Jake," Brett said, "we could have had such a damned good time together."
"Yes," I said. "Isn't it pretty to think so?"
O diálogo é simples como todos os outros do livro, como todos os outros de todos os livros, e ainda assim temos a inescapável sensação de que o isn't it pretty to think so? remete a toda a amargura acumulada até então; o trecho final funciona como uma espécie de função recursiva que explode duma só vez a emotividade que nunca é, nem nesse final catártico, expressa explicitamente. Não é preciso dizer mais nada porque já entendemos, lembra Carpeaux. Não admira, então, que os trechos finais de vários livros de Hemingway sejam memoráveis. Temos o "e o velho sonhava com leões" de The Old Man and the Sea e o não menos impressionante desfecho de Farewell to Arms. Frederick Henry é ferido em guerra (por estilhaços de um shrapnel, assim como o autor) e acaba conhecendo Catherine Barkley no hospital, por quem se apaixona. Quando ele é chamado pra lutar novamente ela confessa que já espera um filho seu. Frederick decide dar 'adeus às armas' e fugir com Catherine. Mas há complicações no parto e Catherine morre. Ele entra no quarto do hospital para vê-la pela última vez. Últimas palavras do romance:
It was like saying good-bye to a statue. After a while I went out and left the hospital and walked back to the hotel in the rain.

20 novembro, 2007

Mestre Carpeaux

Uma das melhores maneiras de maldizer o Brasil é observar que se o austríaco Otto Karpfen (1900-1978) tivesse ido pros EUA em vez vindo pra cá, ele hoje seria uma figura nacionalmente respeitada (o artigo sobre Carpeaux na Wikipedia em inglês é maior que na em português). Apesar do ambiente pouco receptivo -- de que ele nunca reclamava, é claro, além de exaltar as boas amizades que teve oportunidade de fazer --, foi o maior crítico de literatura que o Brasil já teve ou vai ter. Carpeaux também foi um dos primeiros a escrever sobre música erudita no país: o Uma Nova História da Música foi editado pela Ediouro como O Livro de Ouro da História da Música. A monumental História da Literatura Universal, originalmente publicada em 8 volumes, está hoje fora de circulação editorial. O esforço para imprimir a obra completa de Carpeaux, empreendimento conjunto da Topbooks e da Univercidade, é louvável mas anda a passo de tartaruga: até agora só dispomos dos 2 volumes referentes à obra ensaística de Carpeaux; o primeiro reúne os ensaios publicados em livros e o segundo os publicados em periódicos. É desse segundo volume que falo agora.

O primeiro impulso (pelo menos foi o meu) de quem tem em mãos um volume tão heterogêneo é buscar aqueles ensaios sobre autores mais conhecidos e que parecem ter sido os preferidos de Carpeaux: Conrad, Kafka (ó surpresa, Carpeaux também foi o primeiro a escrever sobre Kafka no Brasil), Dante, Shakespeare, T. S. Eliot, Goethe etc. Os ensaios mais memoráveis, naturalmente, estão todos no primeiro volume (penso principalmente em O Mistério de Joseph Conrad e Visão de Graciliano Ramos), mas Carpeaux faz o que pode no curto espaço de 4 ou 5 páginas. Depois passamos aos temas brasileiros: Graciliano Ramos, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Machado de Assis. Música? Há Bach, Verdi, Wagner, Schubert, Haendel, Wolf. Artes plásticas? Há El Greco, Goya, Van Dyck.

Imagino que Carpeaux tenha irritado muita gente com tanta erudição. Não à toa é comumente lembrado, com um despeito mal disfarçado e quando é lembrado at all, pelos seus conhecimentos 'enciclopédicos'. Escrevendo sobre Hemingway, confessa mui candidamente que o volume de contos Winners Take Nothing (de que eu, aliás, nunca tinha ouvido falar) é o único livro do americano que ele 'só' leu uma única vez. Também observa que costuma reler a Comédia de Dante todos anos. Seria um snob? Outra coisa que costumava irritar seus interlocutores (irritou até o nosso Gustavo Corção) é o estilo desajeitado de quem foi aprender o português depois dos 40 anos. Paulo Francis costumava dizer que o inglês de Conrad parece uma tradução do polonês, e talvez não seja exagero dizer que o português de Carpeaux parece, sei lá eu, alemão traduzido. Momento-exercício-psicológico-barato: como pode um austríaco gago (se brincar é simpatizante fascista...) que mal aprendeu o português querer nos dar lições sobre a nossa e todas as outras literaturas? Não se sabe ao certo como, mas o fato é que Carpeaux podia.

O estilo, já em si um tanto caótico por não ser de um native-speaker, não é dos mais atraentes ao jovem leitor por outros motivos: Carpeaux propõe uma série de questões e só as retoma bem mais tarde, quando ocorre de retomá-las efetivamente. Expõe opiniões antagônicas sem que saibamos ao certo se são suas ou de algum oponente imaginário. Numa época em que o que mais se advoga é o discurso seco e direto, Carpeaux surge com um emaranhado inextricável de caminhos alternativos. Parece ser o natural de quem já leu tanto. No ensaio Meu Dante, Carpeaux enumera as diversas perspectivas com que ele mesmo já encarou a grande obra do florentino: a factual, a mística, a historicista, a sentimental, a biografista. Qual delas seria a mais correta, se é que faz sentido falar em correção? Provavelmente uma síntese 'barroca' de todas elas.

São raros, pelo menos nesses volumes de ensaios, os momentos em que Carpeaux se deixa levar por uma veia mais polêmica. Normalmente prefere calar, e a ausência de certos nomes em seus ensaios é bastante conspícua. Mas esse não é o caso de Aldous Huxley. Em A erudição de Mr. Huxley, Carpeaux sugere que ele consulte o volume XXIII da Encyclopaedia Britannica, essa que é, segundo o próprio Huxley, sua leitura predileta. Ao afirmar que um criminoso não pode ser bom poeta, Huxley confessa ignorar o verbete referente ao poeta francês (e facinoroso) François Villon (1431-1463). Seria Carpeaux um snob? É mais provável que tenha ido ao país errado.

16 novembro, 2007

Um Mundo Perturbador

Outro dia li um artigo do Paul Johnson em que ele estranhava o fato de disturbing ter-se transformado no mais alto elogio que se pode fazer a uma obra qualquer. O assunto do artigo era completamente outro, e a observação foi bem passageira, mas como é verdadeira!, pensei eu.

Costuma-se justificar a crescente complexidade (complexidade em sentido anárquico) da arte moderna com a observação de que é o mundo moderno que é complexo e anárquico. O homem se vê perdido num caos industrial, quântico, probabilístico, não-euclidiano et caterva e é apenas natural que a arte reflita essa conjuntura. Mas eis que não é o mundo, e sim nós mesmos, que já esperamos e exigimos um estado constante de choque e torpor. Queremos o horripilante, o chocante, o perturbador, o estupeficante. Vivas à exceção e ao excêntrico! Época estranha, essa.

Que dizer do artista que labuta pacientemente em seu ofício, que comete o sumo sacrilégio de ater-se ao mundo das pessoais 'normais', aos acontecimentos do dia-a-dia? Aquele que surpreende por ver um sentido inaudito por detrás do que há de mais trivial e corriqueiro em nossas vidas? Lê-se o cronista dessa estirpe com uma satisfação contida, com a certeza de que aprendemos algo indispensável mas que está logo ali, ao alcance de todos que tenham um mínimo de boa vontade. Certamente não há nada de fácil nesse trabalho. Em se tratando das artes plásticas, o próprio Johnson dá testemunho da mudança radical que o século XX testemunhou: uma mudança da habilidade custosamente adquirida para o ímpeto do artista-estrela que se quer um gênio feito aos 20 anos de idade. O velho mestre renascentista já não tem nada a ensinar; já não exigimos que o pintor seja um bom ilustrador, de traço bem pensado e escrupuloso, mas que deixe uma marca original e febril, bem ao gosto do tempo.

Pensa-se logo num ímpeto imediatista. Se não é mais possível (e nem há quem tenha paciência pra tentá-lo) atingir um êxtase artístico que demande muito esforço, só nos resta substituí-lo por outro que se ofereça rapidamente e sem reservas. A poesia, que pra Drummond se mostrava tão temperamental e esquiva, é hoje a mais libidinosa das prostitutas. Parece que a crítica que Alan Bloom, no The Closing of the American Mind (digo parece porque ainda não li o livro), dirige ao rock segue mais ou menos essa linha. E eu, mesmo como admirador do gênero, não posso deixar de concordar.

Da música pra literatura, da literatura pras artes plásticas, a coisa não muda muito. Mesmo escritores modernos como Hemingway e Graciliano Ramos (façam como as lavadeiras de Alagoas...) enfatizam o longo e penoso processo de obtenção de um estilo próprio. De todos os livros publicados nos últimos 5 anos (Rubem Fonseca incluso) que já li, a maioria parece compartilhar de um fascínio pelo estilo apressado, simultaneamente trôpego e frenético; uma espécie de ejaculação discursiva que se impõe sem pedir licença. O ideal é perturbar e chocar, antes que o pobre leitor tenha oportunidade de perceber que está sendo ludibriado. Termino o post antes que percebam.

08 novembro, 2007

Requiem

UNDER the wide and starry sky
Dig the grave and let me lie:
Glad did I live and gladly die,
And I laid me down with a will.

This be the verse you grave for me:
Here he lies where he long'd to be;
Home is the sailor, home from sea,
And the hunter home from the hill.

Robert Louis Stevenson (1850-1894)

07 novembro, 2007

A Profundidade de Ingmar Bergman

Ingmar Bergman (1918-2007) morreu há alguns meses e ninguém parece tentado a negar sua mestria enquanto filmmaker. Realmente seria difícil encontrar um cineasta capaz de criar com tanta frequência cenas memoráveis como a que é mostrada acima, d'O Sétimo Selo (1957), em que Antonius Block desafia a Morte para um jogo de xadrez, ou a sequência inicial de Morangos Silvestres (1957), em que o ancião Dr. Borg se vê sendo puxado pelo próprio cadáver, ou a rápida passagem de tanques de guerra peja janela do trem em O Silêncio (1963), ou os últimos momentos de Gritos e Sussuros (1972), quando toda a pesada melancolia que permeia o filme se dissipa com a serenidade do rosto de Agnes.

Mas e a tão alardeada 'profundidade' de Bergman, seria ela real? Que querem dizer com profundidade, afinal? Certamente se referem à temática tão recorrente em Bergman: a religião, o sentido da vida, a perspectiva privilegiada da velhice, o desencanto com a vida terrena, a incomunicabilidade das angústias modernas etc. Citam-se duas ou três figuras de renome (os preferidos são Kierkegaard e Kafka) e já temos aí todos os ingredientes para uma obra 'profunda'. A criação de atmosferas sombrias e coerentes com a temática abordada é, quem poderia negá-lo?, nada menos que genial: em O Silêncio os personagens, provavelmente fugindo da guerra, vão parar num país cuja língua é completamente desconhecida (trata-se de uma invenção do próprio Bergman). A sensação é de completa incomunicabilidade, a despeito de Ester ser, muito caracteristicamente, uma afamada tradutora de literatura. O silêncio familiar, atípico por si só, chega a um paroxismo com o afastamento do mundo exterior. Em Morangos Silvestres Dr. Isak é examinado por um inspetor que parece ter acabado de sair dum livro de Kafka: o primeiro teste consiste em ler ler uma inscrição em língua desconhecida no quadro-negro.

Se é mesmo verdade (como eu acredito que seja) que Bergman tem um talento aparentemente insuperável para a evocação imagética, resta saber o que ele tem a nos dizer sobre as questões levantadas com certa recorrência em seus filmes. Infelizmente, não muito. Isso já fica claro nesse que é considerado seu melhor filme, O Sétimo Selo. O cavaleiro medieval Antonius Block, confrontado com a Morte em pessoa, parece mais do que nunca interessado em conhecer a natureza divina, se é que ela existe. Pressiona a própria Morte, coitada, a contar seus segredos, se é que há segredos. Questiona inclusive uma menina que será queimada por alegar ter visto o diabo -- Deus existe (certamente o demônio saberá informar)? poderei vê-lo? para onde vamos? A impressão que dá é que Block seria uma pessoa completamente diferente caso lhe entregassem, mui candidamente, uma fotografia de Deus. É claro que Bergman já sabe, ou acredita saber, a resposta a todas essas perguntas. Em suas próprias palavras (The Magic Lantern - An Autobiography): ''You were born without purpose, you live without meaning... When you die, you are extinguished.''

Todo o dilema religioso da obra de Bergman (da pequena parte que eu conheço, é claro) é de uma ingenuidade tal que ele se nos afigura mais verdadeiro quando é expresso por uma criança -- o Alexander de Fanny e Alexander (1983), um garoto de 12 anos inconformado com o fato de Deus ainda não ter mandado matar seu padrasto assassino. "Se Deus existir, eu gostaria de dar-lhe um chute na bunda. Ninguém pensa!", diz o jovenzinho incrédulo. Quem nunca passou por semelhante dilema existencial durante a primeira adolescência? Esse poderia ser um dos casos mais fantásticos de ironia involuntária da história do cinema.

Mas e se Deus não é uma realidade confiável, se o máximo que conseguimos ao procurar esse tipo de segurança é frustração, o que resta? Uma infância traumatizada por uma religiosidade opressiva, é claro. Janer Cristaldo que o diga. Mais uma vez citando de sua autobiografia (retiro os trechos da hagiografia publicada por Woody Allen no NY Times por ocasião da morte de Bergman; clique aqui para ler): ''Most of our upbringing was based on such concepts as sin, confession, punishment, forgiveness and grace... This fact may well have contributed to our astonishing acceptance of Nazism.'' Quem souber conciliar confissão, perdão e graça ao nazismo que me avise, fazendo favor. Restaria algo mais? Há tambem o carpe diem, último refúgio dos ateus. Ele está presente em todos os filmes de Bergman que vi até agora: na anamnese da infância de Dr. Borg, na serena resignação de Agnes, na satisfação com que Antonius Block se delicia com morangos silvestres e leite fresco junto aos amigos e no discurso prafrentex do tio beberrão e mulherengo de Fanny e Alexander.

O vazio existencial de Bergman é provavelmente o mais atraente que já vi no cinema. Isso não significa que deva ser rejeitado com menos veemência.

31 outubro, 2007

A Força Irresistível da Lógica

Numa palestra (chamada Individualism: True and False) dada na University College de Dublin, em 17 de dezembro de 1945, F. A. Hayek, constrangido com o mal emprego do termo 'individualismo', resolveu estabelecer uma divisória definitiva entre o que ele entendia por individualismos 'verdadeiro' e 'falso'. Uma das características que facilitariam essa distinção seria o credo, por parte dos falsos individualistas, no predomínio absoluto da razão humana no processo de construção da nossa cultura política. Os verdadeiros individualistas (Hayek refere-se principalmente a Edmund Burke e Alexis de Tocqueville), por outro lado, reconhecem que muito desse processo advém de tendências fora do controle e até incompreensíveis para um indivíduo isolado num determinado período histórico. O verdadeiro individualismo, então, não é aquele que atribui ao indivíduo um conhecimento transcendental das consequências de suas próprias atitudes, mas apenas aquele que acredita ser o indivíduo o mais indicado para aproximar-se desse conhecimento, quando e se ele for possível.

A princípio pode parecer estranho (principalmente para o estudante brasileiro, intoxicado desde muito cedo com odes à Ilustração) que logo um economista se posicione contra o monopólio da razão. Não é que Hayek não goste da razão ou que prefira deixar tudo ao deus-dará; apenas gostaria de impor-lhe os limites cabíveis e, diga-se, inescapáveis. Ele argumenta que o individualismo racionalista -- de um Rousseau, por exemplo -- tende apenas a práticas socialistas já que, se existe mesmo um método racional indiscutível para organizar nossas vidas, alguém vai ter de ser 'escolhido' para divisá-lo e aplicá-lo à revelia das inevitáveis discordâncias. Nesse sentido, o racionalismo é nada mais que um convite à revolução, que parte do pressuposto de que alguém suficientemente inteligente e 'racional' seria capaz de transformar dum só golpe todas as nossas instituições.

Tendo isso em mente, não fica muito difícil entender por que o triunfo da razão humana se manifesta com clareza exemplar nos movimentos totalitários do século passado, desbancando até os tão exaltados avanços científicos e tecnológicos. Hannah Arendt (1906-1975) não cansa de enfatizá-lo em sua genealogia do totalitarismo, The Origins of Totalitarianism. É curioso que figuras como Hitler e Stalin, sobre quem tanto já foi escrito, ainda figurem no imaginário popular como ditadores intempestivos e dados a mudanças repentinas de planos; seriam mentes imprevisíveis, irracionais, tresloucadas. Parece que as picuinhas domiciliares ganharam mais atenção que os vastos e meticulosos planos de dominação, engendrados e avançados com uma coerência somente encontrável em tratados de lógica:
According to Stalin, neither the idea nor the oratory but "the irresistible force of logic thoroughly overpowered Lenin's audience." The power, which Marx thought was born when the idea seized the masses, was discovered to reside, not in the idea itself, but in its logical process which "like a mighty tentacle seizes you on all sides as in a vise and from whose grip you are powerless to tear youself away; you must either surrender or make up your mind to utter defeat."
A capacidade de criar um mundo fictício e coerente em si mesmo nada tem de irracionalismo; muito pelo contrário, a abstração necessária para compor entes lógicos sem que eles existam no mundo sensível é um exercício de razão pura; aqui não há conhecimento empírico para nos auxiliar. Triângulos perfeitos não existem nem nunca existiram, mas ninguém nega a razoabilidade das definições de ângulo interno, comprimento de lado etc. e das consequências que daí advêm. Os mais incrédulos poderiam perguntar: como justificar logicamente a necessidade que o Partido tinha de acusar e punir inocentes que muitas vezes podiam provar a própria inocência? Certamente, dirão, temos aí um exemplo de vontade de poder desenfreada, uma paranóia injustificável em termos racionais. Também é comum, pra reforçar esse argumento, citar algumas esquisitices dos últimos anos de Stalin, como mandar um bedel provar sua comida por medo de envenenamento ou achar que havia algum gás letal entrando pelas frestas de seu escritório. Ou talvez o processo seja um pouco mais calculado, como sugerido por Arendt:
We are all agreed on the premise that history is a struggle of classes and on the role of the party in its conduct. You know therefore that, historically speaking, the party is always right (in the words of Trotsky: "We can only be right with and by the party, for history has provided no other way of being in the right."). At this historical moment, that is in accordance with the law of history, certain crimes are due to be commited which the Party, knowing the law of history, must punish. For these crimes, the Party needs criminals; it may be that the party, though knowing the crimes, does not quite know the criminals; more important than to be sure about the criminals is to punish the crimes, because without such punishment, History will not be advanced but may even be hindered in its course. You, therefore, either have commited the crimes or have been called by the party to play the role of the criminal -- in either case, you have objectively become an enemy of the Party. If you don't confess, you cease to help History through the Party, and have become a real enemy.
Não chega a surpreender, então, que membros da SS mantivessem lealdade irrestrita ao Reich mesmo quando descobriam que eram, por algum motivo, inimigos do Reich. Não faria sentido -- não seria lógico -- questionar a autoridade do Partido simplesmente porque circunstâncias históricas os colocaram do lado dos adversários. O encadeamento lógico do comportamento totalitário é tão rigoroso que não se pode escapar de um mundo de finalismos: todo passo, todo gesto ou palavra tem um objetivo final grandioso, o nec plus ultra da condição humana na Terra. Todos eles são inteligíveis e seu impacto pode ser cuidadosamente aferido graças à superior inteligência do novo homem. Heinrich Himmler, chefe da SS, "quite aptly defined the SS member as the new type of man who under no circumstances will ever do 'a thing for its own sake'".

Hitler, Lenin, Stalin etc., esses prodígios da lógica, acabaram ficando conhecidos por terem um raciocínio lógico pouco desenvolvido, essa que para os racionalistas é a maior das desgraças. De qualquer maneira eles devem ser lembrados como testemunhos do que a razão humana é capaz de alcançar (ou destruir). Nesse ponto acho que estamos todos de acordo: não é pouca coisa.

25 outubro, 2007

O Óbvio Ululante

Quando Milton Friedman (1912-2006) escreveu, com o auxílio de sua mulher Rose, Capitalism and Freedom (1962), ainda havia nos EUA quem duvidasse seriamente da capacidade que o mercado privado tem de dinamizar a economia mundial. No prefácio para a edição de 1982 do livro, com Ronald Reagan eleito presidente no ano anterior, já se podia falar em uma mudança generalizada de mentalidade. No prefácio para a edição de 2002, Friedman já podia declarar sem muita falsa modéstia que suas idéias libertárias, tão violentamente combatidas em 62, tinham ascendido ao nível de teoria oficial.

Friedman costumava dizer que o colapso da URSS em particular e do bloco comunista em geral fez mais que qualquer livro seu para desiludir os adeptos da economia planificada. O fato é que, apesar de hoje a economia coletivista não merecer crédito de ninguém (à exceção de Fidel Castro, Hugo Chávez e uns outros tantos luminares da inteligência mundial), a intervenção estatal na economia dos EUA ainda chega a quase 40% (contra uns 15% antes da WWII) do PIB. Como dizia o próprio Friedman, a batalha intelectual pode até ter sido ganha, mas, na prática, o paternalismo estatal ainda é uma realidade com poucas chances de ser transformada.

O livro parte do pressuposto da escola austríaca de economia (principalmente Hayek, que é citado com frequência), repetido aqui no Brasil por Roberto Campos, de que não pode haver liberdade política sem liberdade econômica. O caminho inverso, liberdade econômica sem liberdade política, é até possível (dá-nos exemplo disso a China), apesar de que a influência da primeira tende a forçar a segunda.

É nesse sentido que Friedman vê com muita desconfiança qualquer intervenção do governo na economia. Num balanço de vantagens e desvantagens da atuação estatal num determinado setor, a primeira desvantagem, anterior a qualquer consideração mais específica, é a tendência que a concentração de poder tem de limitar a liberdade individual. Ele subscrevia e repetia com entusiasmo o saying de Lord Acton que vai ao lado, Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely. A limitação à liberdade individual não se restringe, porém, ao plano econômico, apesar de ser essa a consequência mais visível e imediata. Quando o governo determina que, digamos, o trigo só pode ser vendido a determinado preço, costuma-se considerar apenas a exclusão da possibilidade que as partes interessadas tinham de negociar o trigo a um preço que lhes fosse conveniente. Ocorre que o recrudescimento do poder estatal é cumulativo e ganha impulso com novas conquistas, além de ser de difícil reversão: basta ver a resistência que figuras adeptas do laissez-faire, como Reagan, tiveram de enfrentar para diminuir minimamente a presença estatal na economia.

Tudo o que vai acima, mesmo que muitas vezes ignorado na prática, é hoje considerado o óbvio ululante no meio acadêmico. Dados o conhecimento empírico e a perspectiva histórica hoje disponíveis, nem adolescentes têm como justificar o desconhecimento da impraticabilidade da economia planificada. Mas Friedman defende a retirada da presença estatal mesmo em situações que muitos liberais a considerariam natural, como na regulamentação de diferentes profissões (até a do médico!) e no controle das drogas.

Desde já antecipo que, mesmo como admirador, não vejo muito sentido em aceitar sem maiores cuidados a visão que Friedman tinha a respeito de questões não integralmente ligadas à economia. Digo isso porque essa costuma ser a postura diante de um ancião de 94 anos que já acertou tanto. Em 2002, na cerimônia em que Friedman recebeu a Medal of Freedom, o presidente Bush -- brincando, é claro -- observou que Rose é a única pessoa que sabemos ter ganhado uma discussão com seu marido.

Sem dúvida que há argumentos econômicos favoráveis à legalização das drogas (o principal deles é a dificuldade básica que os governos de hoje e sempre têm de fazer valer as leis), mas a questão envolve fatores morais e culturais que ultrapassam o escopo meramente econômico. Quando confrontado com duas situações que se lhe afiguram economicamente equivalentes, Friedman opta de imediato por aquela que não envolva a presença estatal. Trata-se da inegavelmente necessária política do mal menor. A intenção, nesse como em qualquer outro caso, é sem dúvida boa, mas corre o risco de enveredar pelo extremo oposto do caminho que ele mesmo denunciou em 62:
A outra ameaça é bem mais sutil. É a ameaça interna vinda de homens de boas intenções e de boa vontade que nos desejam reformar. Impacientes com a lentidão da persuasão e do exemplo para levar às grandes reformas sociais que imaginam, estão ansiosos para usar o poder do Estado a fim de alcançar seus fins e confiantes em sua capacidade de fazê-lo. Entretanto, se subirem ao poder, não conseguirão realizar seus fins imediatos e, além disso, produzirão um estado coletivo diante do qual recuarão horrorizados e do qual serão as primeiras vítimas. A concentração do poder não é tornada inofensiva pelas boas intenções de quem a estabelece.

18 outubro, 2007

O Neo-Iluminista Merquior

O entusiasmo com que se lê José Guilherme Merquior (1941-1991) pela primeira vez é bem compreensível entre nós: raramente encontramos, hoje, outros nomes que se aproximem dele em termos de honestidade intelectual, inteligência e erudição. Atualmente é lembrado como simples polemista ou como 'aquele sujeito que escrevia discursos para o Collor', como se o emprego de ghost-writers por parte de políticos fosse algo novo ou degradante.

Merquior combateu com a elegância e a paciência de sempre alguns dos maiores mitos do século 20: marxismo, freudismo e formalismo (tanto literário como filosófico), sendo este último um tema recorrente de seus derradeiros anos. Já falei aqui sobre o De Praga a Paris, de 1986, acerto de contas dele com os estruturalismos e pós-estruturalismos franceses. Como não poderia deixar de ser, foi devidamente perseguido por isso, e hoje vários de seus livros nem sequer são editados, obrigando o leitor interessado a peregrinações ao sebo mais próximo.

A evolução do pensamento de Merquior fica mais clara no volume Crítica, que reúne ensaios do período 1964-1989. Enquanto alguns ídolos da juventude são gradualmente superados (principalmente Heidegger e Lucáks), cresce, cada vez mais conspícua, uma fé um tanto ou quanto misteriosa no progresso e na primazia da razão. Merquior declara-se neo-iluminista e mal consegue disfarçar (se é que tenta disfarçar) a antipatia por poetas que, reconhecidamente grandes, nutrem uma visão pessimista da modernidade. E é assim que chega a considerar o 'reacionário' T. S. Eliot apenas um grande poeta menor.

Se me permitem alguns exercícios de psicologia barata, diria ser perfeitamente natural a crescente aversão de Merquior ao esoterismo tipicamente moderno. Além do formalismo estético, argumenta ele, esse esoterismo leva invariavelmente a uma condenação em bloco da sociedade tecno-liberal moderna. É esse modernismo que condena a priori a modernidade que irrita Merquior mais que qualquer outra coisa. Não surpreendentemente, afasta-se dos 'obscurantismos' da filosofia de Heidegger, da literatura 'abissal' de Joyce e do simbolismo de Mallarmé. Eu dizia que essa aversão é natural por Merquior ter convivido tão de perto, e por tanto tempo, com o estruturalismo francês da década de 60. Para alguém que leu tudo que há pra ler de Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard et caterva e ainda conseguiu escapar de uma congestão cerebral, é apenas lógico esperar uma extrema sensibilidade a charlatanices linguísticas e a irracionalismos cabeça-de-vento.

Ocorre que, ao denunciar mui devidamente esse irracioanlismo tresloucado, Merquior parte num átimo para uma defesa da razão iluminista como elemento restaurador. Além da palavra 'razão', 'progresso' é uma das que se repetem com mais insistência em seus ensaios. Não deixa de ser curioso que o implacável crítico do marxismo, o 'ópio dos intelectuais' nas palavras de seu professor e amigo Raymond Aron, se deixe levar por vaguidades como 'marcha da civilização' ou 'inexorável progresso histórico'. Em As Idéias e as Formas, lemos:
Esta delirante culpabilização da racionalidade científica e do progresso histórico -- que mal difere, queira ou não Adorno, dos anátemas oraculares do irracionalismo de direita, em Jung ou Heidegger, por exemplo -- aponta para uma curiosa patologia do humanismo. Entre a Renascença e a Ilustração, entre Leonardo e Goethe, o humanismo ocidental era, basicamente, inclusivo: uma ideologia que incorporava o progresso social e intelectual, a Reforma, a ciência, a revolução burguesa. Em constraste com isso, muito humanismo moderno se fez excludente: repele o mundo que o cerca, excomunga as massas e a civilização.
A acusação de humanismo excludente estaria perfeitamente justificada caso estivesse dirigida a sanguessugas da modernidade à Foucault, que se nutrem de seus mais caros pressupostos apenas para condená-la com um nojinho incontido. Merquior, porém, acaba se revelando um inveterado otimista, cético de qualquer crítica sistemática dirigida contra sua querida modernidade. O ceticismo propugnado por ele, indispensável até certo ponto, atinge um paroxismo que o impede de enxergar outra coisa senão negativismo no catolicismo (a religião positiva por excelência) de T. S. Eliot ou no 'reacionarismo' de Irving Babbitt. Aliás, qualquer consideração um pouco mais demorada sobre temas transcendentais corre o risco de receber a solene desaprovação racionalista de nosso neo-iluminista.

No fim das contas a impressão que temos é que -- apesar de ter lidado de frente, e denunciado com tanto brilhantismo, o que há de mais desprezível na intelectualidade ocidental moderna -- Merquior acreditava numa redenção iminente graças ao inevitável triunfo da razão humana. Em homenagem aos dez anos da morte de Merquior, seu amigo José Mário Pereira escreveu um emocionante depoimento (leia aqui) em que é citado um episódio que me parece emblemático da passagem de seu amigo por esse mundo:
Curiosamente, sempre que saíamos do escritório do advogado, então na Praça Pio X, Merquior pedia para irmos até a igreja da Candelária. Postava-se a admirar o interior, fazendo comentários estéticos, e nunca falava em religião ou fé.
Merquior entrou na Igreja e entendeu tudo o que lá havia para ser entendido, menos as questões relacionadas a religião ou fé. A fé dele, a fé no progresso, não permitiu que ele visse que a ameaça dos que querem destruir sua Igreja é real e premente.

14 outubro, 2007

Salmo no. 3

Eu te proclamo grande, admirável,
Não porque fizeste o sol para presidir o dia
E as estrelas para presidirem a noite;
Não porque fizeste a terra e tudo que se contém nela,
Frutos do campo, flores, cinemas e locomotivas;
Não porque fizeste o mar e tudo que se contém nele,
Seus animais, suas plantas, seus submarinos, suas sereias:
Eu te proclamo grande e admirável eternamente
Porque te fazes minúsculo na eucaristia,
Tanto assim que qualquer um, mesmo frágil, te contém.

Murilo Mendes (1901-1975)

13 outubro, 2007

Mais Cinema, Menos Hitchcock

Três outras recomendações:

1. Sunset Blvd. (Crepúsculo dos Deuses) - 1950, Dir. Billy Wilder

O roteirista Joe Gillis (William Holden) foi tentar a sorte em Hollywood e está prestes a perder o carro e o apartamento por causa das dívidas acumuladas. Fugindo de seus credores, acaba furando o pneu e entrando inadvertidamente na driveway de uma musa do cinema mudo, hoje esquecida: Norma Desmond (Gloria Swanson). Gillis descobre que a ex-estrela, além de meio maluca (e milionária), pretende voltar às telas com um roteiro de Salomé escrito e interpretado por ela mesma. O roteiro, claro está, é um desastre, mas Gillis, precisando do dinheiro, promete editá-lo e tentar a sorte em algum estúdio. Norma se apaixona por Gillis e Gillis se apaixona pelo dinheiro de Norma, situação que os mantém juntos por algum tempo. A obsessão de Norma por si mesma (há fotos dela espalhadas por toda a casa, e o novo casal assiste sempre aos mesmos filmes -- os filmes dela, é claro) a impede de enxergar que, em verdade, já foi esquecida pelos fãs desde há muito. As cartas que ainda recebia eram escritas por ninguém menos que seu fiel mordomo, o sinistro Max von Mayerling (Erich von Stroheim). Max, com seus cuidados igualmente obsessivos, é o verdadeiro responsável pela sobrevivência da ilusão de grandeza de Norma.

O crescendo obsessivo de Norma é uma das sequências mais geniais que já vi no cinema. Quando descobre que Gillis tem encontros periódicos com Betty (Nancy Olson), resolve confrontá-lo e Gillis, ciente da patifaria que anda fazendo (Betty era também comprometida), decide voltar para sua pequena cidade em Ohio. Norma, desesperada, dispara três vezes e Gillis mergulha, já morto, na piscina que sempre quis ter por mérito próprio. Na imagem que vai acima, policiais e jornalistas já chegaram à sua mansão para apurar o assassínio. Norma, com a ajuda do sempre fiel Max e das luzes e câmeras, acredita estar num estúdio outra vez, interpretando a famigerada Salomé. Desce a escadaria convicta de que a cena é real, a despeito dos muitos que estão recostados na balaustrada. Se não pôde pedir a cabeça do amante é porque ele já estava morto na piscina.

2. A Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo) - 1951, Dir. Elia Kazan

Baseado na peça homônima de Tennessee Williams, esse é um dos primeiros filmes do Marlon Brando, que aqui interpreta o embrutecido Stanley Kowalski. O filme começa com a chegada de Blanche (Vivien Leigh) -- irmã de Stella (Kim Hunter), mulher de Stanley -- à casa dos Kowalski. Desde muito cedo Stanley desconfia que há algo de estranho por trás da pose de dondoca da quase quarentona Blanche. Afetando pureza e old-fashioned ideals, descobrimos em tempo que ela era dada às mais escandalosas libertinagens em sua cidade, de onde teve de 'fugir' por já estar mal falada. Quando Stanley descobre tudo e destrói a possibilidade de Blanche casar-se com seu amigo Mitch (Karl Malden), a coitada perde de vez o juízo: acaba acreditando nas próprias mentiras e fica à espera de um milionário imaginário, antigo admirador seu, quando em realidade quem chega é a enfermeira do hospício.

Não se sabe ao certo por que Blanche tomou o caminho da vadiagem. No filme, menciona sempre a morte de um grande amor da juventude -- refere-se a ele simplesmente por the boy --, que teria se suicidado por conta de uma 'fraqueza' não explicada. Informam-que, na peça de Williams, há a sugestão de que o amorzinho de Blanche estava mais pra girl que pra boy: seria homossexual. Esse detalhe teria sido barrado do filme por conta da censura. Com ou sem censura, o fato é que a origem das perturbações de Blanche parece ser muito mais de ordem moral que afetiva.

3. The Good, The Bad & The Ugly (Três Homens em Conflito) - 1966, Dir. Sergio Leone

O que há de mais admirável em westerns (além da capacidade que todos parecem ter de acender fósforos nos locais mais inusitados, como sola do sapato, na própria mão ou em árvores) é a impressão de que, por mais longe que estejamos da 'civilização', há sempre uma espécie de lei a que se pode recorrer. Coloquemos três bandidos sanguinários -- Blondie, the Good (Clint Eastwood); Angel Eyes (Lee Van Cleef), the Bad e Tuco (Eli Wallach), the Ugly -- em busca de um tesouro enterrado -- US$ 200 mil, uma fortuna incalculável pra época da guerra civil americana -- e ainda assim podemos esperar aquele cavalheirismo de uma época em que até a morte exigia certa cortesia. As cenas finais do filme devem seu ar de solenidade precisamente a isso. Se a lei não pode chegar até eles, eles carregam consigo a lei que criaram.

12 outubro, 2007

Cine Hitchcock

Depois de assistir a três filmes do Hitchcock quase em sequência, preciso me desintoxicar um pouco falando deles:

1. Rope (Festim Diabólico) - 1948

Que eu tenha visto, esse é o único filme do Hitchcock em que se procura dar alguma justificativa ideológica ao assassinato. Os jovens Brendan e Philip (John Dall e Farley Granger), inspirados pelo velho professor Rupert Cadell (James Stewart), resolvem matar o colega David por se acreditarem intelectualmente superiores e, portanto, parte integrante do grupo seleto de luminares para quem o assassínio não é crime, mas um 'privilégio'. Pra se certificarem de sua inteligência superior, resolvem dar uma festa (os pais e a namorada de David são convidados) no apartamento onde o crime foi cometido -- o corpo se encontra no baú sobre o qual o jantar é servido. O pedantismo exultante de Brendan é de tal maneira pronunciado que Rubert começa a desconfiar, e as expressões faciais de Stewart, nesses momentos de desconfiança, são aproveitadas como de costume, numa espécie de dress rehearsal para o Rear Window de 1954. A reação de Rubert ao descobrir tudo é a do intelectual minimamente honesto que finalmente tem de enfrentar o horror de suas crias ideológicas: uma espécie de epifania que jamais aconteceria não fosse a insistência com que o mundo real interfere no mundo das idéias. É pena que, como sói acontecer, foi preciso que uma desgraça abrisse o caminho em direção à verdade.

2. Dial M For Murder (?) - 1954

Aqui já estamos de volta ao tipo de crime mais comum em Hitchcock: o passional. Como diria o Chief Inspector Hubbard (John Williams), may God protect us from the gifted amateur! Ao descobrir que sua mulher Margot (Grace Kelly) tinha encontros amorosos com Mark Halliday (Robert Cummings), Tony Wendice (Ray Milland) resolve arquitetar, com a ajuda -- forçada -- de seu ex-colega de faculdade Swann (Anthony Dawson), o 'assassinato perfeito'. Esse filme foi claramente ressuscitado no A Perfect Murder, versão moderninha com Michael Douglas e Gwyneth Paltrow. Diferentemente do personagem de Douglas, a engenhosidade de Wendice é tamanha que fica difícil não bancar o advogado do diabo, ainda que isso signifique sacrificar o pescocinho da Grace Kelly. Principalmente porque os assassinos de Hitchcock costumavam aceitar como verdadeiros gentlemen a derrota quando a percebiam inevitável: geralmente com um gole de uísque. Oferecendo um trago para os seus algozes, é claro.

3. Vertigo (Um Corpo que Cai) - 1958

Stewart (Det. 'Scottie' Ferguson) está de volta, dessa vez ao lado de Kim Novak (no papel da possuída Madeleine Elster), para interpretar um detetive com acrofobia graças a uma perseguição que acabou com um seu colega caindo de um prédio de vários andares. Scottie resolve se aposentar depois do acidente, mas um antigo conhecido (Gavin Elster, por Tom Helmore) lhe pede que siga sua esposa Madeleine em suas estranhas peregrinações. Segundo Gavin, Madeleine 'recebia' periodicamente o espírito de uma misteriosa tataravó que cometera suicídio ao ser abandonada pelo marido. Scottie, ora vejam, acaba se apaixonando por Madaleine, que em verdade não era Madaleine: Scottie se envolveu com uma moça fisicamente idêntica a ela, contratada por Gavin para que ele pudesse assassinar sua mulher e dar ao caso aparências de suicídio -- inclusive com o testemunho de Scottie, que não pôde subir a torre (de onde Madeleine teria se jogado, quando em realidade foi empurrada) em função de sua acrofobia. Após a morte de Madeleine, Scottie encontra casualmente Judy Barton, comparsa de Gavin e sósia da finada, a mulher que ele de fato tinha perseguido nos últimos dias. A temática de espelhos, já recorrente no filme, ganha um aspecto ao sinistro quando Scottie insiste em que Judy se vista exatamente como Madeleine. A obsessão de Scottie em recriar eventos chega a tal ponto que, ao descobrir tudo, força Judy a subir a mesma torre de onde Madeleine teria se jogado, apenas pra perceber, contra a própria vontade, que tudo se repetiria com perfeição: inclusive a queda. E o ciclo se fecha outra vez.

02 outubro, 2007

Vovô Smith

Se Mao, Lenin, Stalin, Fidel e Che são devidamente louvados em livros de história distribuídos pelo MEC, há também aqueles que conseguiram, nesses mesmos livros, fama de vilão. O principal deles é Adam Smith (1723-1790), ainda hoje tido como um economista frio e calculista, despreocupado com desigualdades sociais e com a ralé em geral. Não admira que seu The Theory of Moral Sentiments seja hoje pouco comentado, sendo desconhecido até de muitos leitores do seu irmão mais famoso The Wealth of Nations.

Na realidade Smith deixou bem claro que ambos os livros fazem parte de um mesmo projeto: não há possibilidade de convivência e diálogo, ou, em particular, de uma existência econômica, se não há uma moral comum para regulá-la. A notoriedade do Wealth em detrimento do Theory parece hoje bem natural; enquanto um se consagrou pela perspicácia e pelo testemunho favorável da história, os conselhos do outro já parecem obsoletos e exagerados, quando não ingenuamente benevolentes. Vejam como exemplo as primeiras linhas do livro, que tanto assustaram Theodore Dalrymple pela sua incompatibilidade com a realidade atual:
How selfish soever man may be supposed, there are evidently some principles in his nature, which interest him in the fortune of others, and render their happiness necessary to him, though he derives nothing from it, except the pleasure of seeing it.
Smith dizia isso, em suas próprias palavras, in spite of the depravity of our times. Que diria ele de nossos tempos, dois séculos e meio depois da primeira publicação de seu livro, quando essa constatação inicial parece não só improvável mas um tanto ridícula? A inversão é tediosamente previsível: o século 20, irritado com os empecilhos de uma 'moral caduca' como a de Smith, resolve responsabilizar o próprio Smith pelos desastres decorrentes da inobservância dos preceitos morais propugnados pelo, é claro, Smith. Em meios um pouco mais sofisticados, onde a obra do sujeito é ao menos conhecida, faz-se necessário um certo malabarismo retórico e dialético. No Brasil, interpreta-se a famosa 'mão invisível' como uma desculpa para a irresponsabilidade social e a coisa fica por isso mesmo.

No trecho citado acima, assim como em vários outros, fica claro que Smith se refere àqueles que, digamos, ainda não aderiram ao 'liberou geral', que ainda não têm vergonha de acreditar em coisas como a moral cristã ou simplesmente na possibilidade de uma convivência digna e respeitosa. É fato que isso já passou a representar uma excentricidade para muitos. É preciso recorrer a baluartes da reflexão moral, como o Lord Jim de Joseph Conrad, para encontrar ilustrações dignas do trecho abaixo:
The violator of the more sacred laws of justice can never reflect on the sentiments which mankind must entertain with regard to him, without feeling all the agonies of shame, and horrour, and consternation. When his passion is gratified, and he begins coolly to reflect on his past conduct, he can enter into none of the motives which influenced it. They appear now as detestable to him as they did always to other people. By sympathising with the hatred and abhorrence which other men must entertain for him, he becomes in some measure the object of his own hatred and abhorrence. The situation of the person, who suffered by his injustice, now calls upon his pity. He is grieved at the thought of it; regrets the unhappy effects of his own conduct, and feels at the same time that they have rendered him the proper object of the resentment and indignation of mankind, and of what is the natural consequence of resentment, vengeance and punishment. The thought of this perpetually haunts him, and fills him with terrour and amazement. He dares no longer look society in the face, but imagines himself, as it were, rejected, and thrown out from the affections of all mankind. He cannot hope for the consolation of sympathy in this his greatest and most dreadful distress. The remembrance of his crimes has shut out all fellow feeling with him from the hearts of his fellow creatures. The sentiments which they entertain with regard to him, are the very thing which he is most afraid of. Every thing seems hostile, and he would be glad to fly to some inhospitable desert, where he might never more behold the face of a human creature, nor read in the countenance of mankind the condemnation of his crimes. But solitude is still more dreadful than society. His own thoughts can present him with nothing but what is black, unfortunate, and disastrous, the melancholy forebodings of incomprehensible misery and ruin. The horrour of solitude drives him back into society, and he comes again into the presence of mankind, astronished to appear before them loaded with shame and distracted with fear, in order to supplicate some little protection from the countenance of those very judges, who he knows have already all unanimously condemned him. Such is the nature of that sentiment, which is properly caled remorse; of all the sentiments which can enter the human breast the most dreadful. It is made up of shame from the sense of the impropriety of past conduct; of grief for the effects of it; of pity for those who suffer by it; and of the dread and terrour of punishment from the consciousness of the justly provoked resentment of all rational creatures.
O tom é sempre o de um avô afetuoso preocupado com a formação moral de seus netos. Mas vivemos numa sociedade jovem, e os conselhos do vovô Smith parecem estar sendo deixados para uma geração um pouco mais obediente.

25 setembro, 2007

The Ship of Death

I

Now it is autumn and the falling fruit
and the long journey towards oblivion.

The apples falling like great drops of dew
to bruise themselves an exit from themselves.

And it is time to go, to bid farewell
to one's own self, and find an exit
from the fallen self.

II

Have you built your ship of death, O have you?
O build your ship of death, for you will need it.

The grim frost is at hand, when the apples will fall
thick, almost thundrous, on the hardened earth.

And death is on the air like a smell of ashes!
Ah! can't you smell it?

And in the bruised body, the frightened soul
finds itself shrinking, wincing from the cold
that blows upon it through the orifices.

III

And can a man his own quietus make
with a bare bodkin?

With daggers, bodkins, bullets, man can make
a bruise or break of exit for his life;
but is that a quietus, O tell me, is it quietus?

Surely not so! for how could murder, even self-murder
ever a quietus make?

IV

O let us talk of quiet that we know,
that we can know, the deep and lovely quiet
of a strong heart at peace!

How can we this, our own quietus, make?

V

Build then the ship of death, for you must take
the longest journey, to oblivion.

And die the death, the long and painful death
that lies between the old self and the new.

Already our bodies are fallen, bruised, badly bruised,
already our souls are oozing through the exit
of the cruel bruise.

Already the dark and endless ocean of the end
is washing in through the breaches of our wounds,
already the flood is upon us.

Oh build your ship of death, your little ark
and furnish it with food, with little cakes, and wine
for the dark flight down oblivion.

VI

Piecemeal the body dies, and the timid soul
has her footing washed away, as the dark flood rises.

We are dying, we are dying, we are all of us dying
and nothing will stay the death-flood rising within us
and soon it will rise on the world, on the outside world.

We are dying, we are dying, piecemeal our bodies are dying
and our strength leaves us,
and our soul cowers naked in the dark rain over the flood,
cowering in the last branches of the tree of our life.

VII

We are dying, we are dying, so all we can do
is now to be willing to die, and to build the ship
of death to carry the soul on the longest journey.

A little ship, with oars and food
and little dishes, and all accoutrements
fitting and ready for the departing soul.

Now launch the small ship, now as the body dies
and life departs, launch out, the fragile soul
in the fragile ship of courage, the ark of faith
with its store of food and little cooking pans
and change of clothes,
upon the flood's black waste
upon the waters of the end
upon the sea of death, where still we sail
darkly, for we cannot steer, and have no port.

There is no port, there is nowhere to go
only the deepening black darkening still
blacker upon the soundless, ungurgling flood
darkness at one with darkness, up and down
and sideways utterly dark, so there is no direction any more
and the little ship is there; yet she is gone.
She is not seen, for there is nothing to see her by.
She is gone! gone! and yet
somewhere she is there.
Nowhere!

VIII

And everything is gone, the body is gone
completely under, gone, entirely gone.
The upper darkness is heavy as the lower,
between them the little ship
is gone
she is gone.

It is the end, it is oblivion.

IX

And yet out of eternity a thread
separates itself on the blackness,
a horizontal thread
that fumes a little with pallor upon the dark.

Is it illusion? or does the pallor fume
A little higher?
Ah wait, wait, for there's the dawn,
the cruel dawn of coming back to life
out of oblivion.

Wait, wait, the little ship
drifting, beneath the deathly ashy grey
of a flood-dawn.

Wait, wait! even so, a flush of yellow
and strangely, O chilled wan soul, a flush of rose.

A flush of rose, and the whole thing starts again.

X

The flood subsides, and the body, like a worn sea-shell
emerges strange and lovely.
And the little ship wings home, faltering and lapsing
on the pink flood,
and the frail soul steps out, into the house again
filling the heart with peace.

Swings the heart renewed with peace
even of oblivion.

Oh build your ship of death, oh build it!
for you will need it.
For the voyage of oblivion awaits you.

D. H. Lawrence (1885-1930)

21 setembro, 2007

Paranóia ou Mistificação?

Escrevi há uns meses o post Duas Histórias (leia aqui), em que se faz uma comparação entre as versões de dois livros (a saber, o História para o Ensino Médio, dos brasileiros Claudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, e o Modern Times, do historiador inglês Paul Johnson) sobre a Revolução Russa. Por mais sacrílego que seja misturar Paul Johnson e Claudio Vicentino numa mesma discussão, a comparação não é de todo despropositada porque o livro de Vicentino é um dos mais utilizados em escolas de ensino médio brasileiras, inclusive na minha, uma escola particular e de inclinações católicas. Surge naturalmente a pergunta: por que diabos uma escola católica adotaria um livro abertamente marxista? Primeiro porque nunca ouvi falar de um livro didático de história, no Brasil, que não seja marxista. Segundo porque o catolicismo vagabundo de hoje nem sequer se dá ao trabalho de verificar o que estão ensinando pras suas crianças, se é que perceberia algo de errado se se desse ao trabalho.

Pois bem. O livro do Vicentino, por ter uma exposição muito grande, ainda mantém um mínimo de decoro: gramática e ortografia são respeitadas; procura-se encadear idéias, por mais absurdas que sejam, com um mínimo de respeito pela sanidade mental do leitor etc. Ainda assim não escapa de vários erros factuais, como dizer que a Revolução Russa teve apoio popular desde sempre, ou dizer que todo o poder foi transferido para o proletariado, quando na realidade estave sempre restrito a uma cúpula cada vez menos numerosa do Partido, dentre muitos outros. Coisas que, em países um pouco mais desenvolvidos, já são obviedades desde a década de 40.

Não é o caso do Nova História Crítica, do Mario Schmidt, que tem gerado tanto estardalhaço desde a publicação do artigo de Ali Kamel n'O Globo (leia aqui o artigo com trechos do livro). Aqui a mistificação é escancarada. A impressão que dá é que o autor se sente protegido pela indiferença (e/ou burrice) de pais e educadores, a ponto de estar suficientemente confortável pra propugnar toda sorte de baboseira e mentira, como defender a revolução cultural chinesa, a ditadura de Fidel Castro ou alegar que não havia desigualdades sociais na URSS. Num país onde escolas 'elitizadas' e 'católicas' adotam livros mendazes e defasados em mais de meio século, não chega a admirar que o livro de Schmidt tenha chegado, via MEC, às mãos de 750 mil alunos da rede pública. É sempre necessário que surja um caso grotesco como esse para que a esquerdopatia do ensino brasileiro volte a ser comentada, como se a análise dos livros 'melhores' (como o de Vicentino) já não fosse suficiente. Muito merecidamente, o caso já teve repercussão internacional (veja aqui). Orgulho de ser brasileiro? Erm...

Ser considerado paranóico é a sina de quem quer que critique a universidade (ou o ensino em geral) brasileiro, principalmente na área de humanas, onde o desastre é consideravelmente maior. Na última vez em que caí na besteira de discutir com um universitário (ciências sociais) esquerdinha, perguntei se eles liam José Guilherme Merquior, um dos maiores cientistas políticos brasileiros e respeitado (depois que morreu, é claro) até pela própria esquerda. Descobri que liam, sim: um trecho de 50 páginas de De Praga a Paris, livro que, en passant, foi escrito em inglês porque não havia quem quisesse publicá-lo por aqui. Já vi outro livro seu, Michel Foucault (edição esgotada), em que mostra metodicamente a fraude que foi Foucault, sendo citado por Roger Kimball, mas nunca por um brasileiro. Já que somos todos paranóicos e confundimos bananeiras com agentes comunistas, o máximo que podemos fazer é procurar por indícios de doutrinação em exames de vestibular e análogos.

É o que tem feito um dos mais notórios paranóicos do jornalismo brasileiro, Reinaldo Azevedo. Recentemente, em seu blog (v. link ao lado), ele publicou uma pequena compilação de exemplos tirados das seguintes instituições: escolas públicas do Paraná, Enem (nacional), Universidade Federal do ABC, Universidade Federal de Pernambuco e Mackenzie, além da rede pública nacional (caso do livro de Schmidt). Não seria muito difícil multiplicar os exemplos. Na USP, Gilberto Freyre foi esquecido e Florestan Fernandes é estudado com afinco. Na UFG, Freyre também foi relegado ao ostracismo. No instituto de tecnologia onde estudo o departamento de humanidades recomenda textos de Florestan Fernandes, Milton Santos e Eric Hobsbawn, mas nada de Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Roberto da Matta.

Quando Monteiro Lobato deu o título Paranóia ou Mistificação a seu famoso artigo, havia a possibilidade de que o alvo de suas críticas fosse ambos, como de fato era. Enquanto o brasileiro só conseguir enxergar mistificação em exemplos caricatos como o livro de Schmidt, o senso comum estará fadado a ser confundido com paranóia.

02 setembro, 2007

Nosso Machismo

Tenho o hábito de sair dizendo por aí, não sem certa dose de malícia, que sou um machista inveterado. Já me pediram pra tentar explicar em que consistiria esse machismo e eu o faria de muito bom grado se tivesse inteligência suficiente pra realizar uma síntese que abarcasse todos os pormenores da questão. Por enquanto, o máximo que posso fazer é indicar e comentar alguns textos com os quais concordo quase integralmente e que, se já dizem muito por si sós, deixam mais ainda sugerido, facilitando o meu serviço.

O primeiro deles é uma entrevista do Nelson Rodrigues. Confesso que já mandei essa entrevista a quase todas as meninas que conheço (se não mandei é porque esqueci), numa curiosidade meio mórbida de ver a reação de cada uma. A reação costuma ser violenta porque o Nelson era uma flor de sinceridade, e a linguagem é bem direta. Não achei o link na internet, então publiquei a transcrição aqui. O ponto crucial da entrevista nem se refere ao seu título -- por que as mulheres gostam de apanhar --, mas ao seguinte trecho:
A mulher só é feliz, só se realiza, só existe como mulher, no amor. Eu até hoje, até hoje não encontrei, fora a moça aqui presente, não encontrei uma mulher da qual pudesse dizer "Eis uma inteligência". Sem nenhum prejuízo para o seu mérito, a mulher é de uma inteligência muito escassa. Muito escassa porque a sua qualidade, a sua qualidade humana, se resolve, se decide noutro plano de vida. Ou melhor dizendo, se resolve através do sentimento.
Entendo perfeitamente que isso seja, pelo menos a princípio, difícil de engolir. Quando se diz que a mulher é mais desenvolvida no plano sentimental que no intelectual, tem-se logo a tentação de concluir que a mulher seria, digamos, burra, o que sabemos ser absurdo por experiência própria. O que existe aqui é uma divisão de interesses, uma inclinação inata e que quero crer universal (o que não significa inexorável): a mulher é menos dada a atividades puramente intelectuais não por incapacidade, mas por opção, por temperamento. O 'intelectual' da frase acima deve ser tomado em seu sentido mais estrito, especulativo, totalmente isolado do mundo dos homens e dos sentimentos. A mulher será tão mais feminina quanto mais fielmente seguir esse modelo. No ranking dos 100 melhores livros de não-ficção do século 20 da National Review (veja aqui), há, segundo a minha contagem, menos de 10 escritos por mulheres, sendo que todos eles, à exceção do The Origins of Totalitarianism da Hannah Arendt (Hannah Arendt é a única mulher do século 20 que teria autoridade de exigir para si o título de filósofo, mas, muito felizmente para a nossa linha de argumentação, ela fez questão de se declarar uma cientista política, jamais uma filósofa, por se concentrar no fato de que é o 'homem, e não o Homem, que vive na Terra e habita este mundo'. De qualquer maneira trata-se de uma exceção.), destacam-se muito mais pelo 'sentimento' que pela acuidade estritamente intelectual. Exemplos clássicos: The Diary of a Young Girl, da Anne Frank, e Silent Spring, da Rachel Carson, que de resto só aparece na lista graças ao impacto midiático (e emocional) da questão ambiental.

O mais engraçado de tudo é que a entrevistadora, essa sim bem burrinha, confirma, a cada nova tentativa de imprimir laivos de sofisticação às perguntas, a observação do Nelson segundo a qual a mulher tende a imitar seu marido, seu pai ou seus autores favoritos (no caso, ao que tudo indica, Jung). É um exemplo antológico de humor involuntário. Desde quando eu tinha uns 8 anos, mais especificamente desde uma briguinha que tive com minha irmã, nutro a impressão de que a mulher em geral é incapaz de alcançar o verdadeiro senso de humor. Mas como pode isso, perguntarão, se é fato notório que mulheres também riem, contam piadas, eventualmente são bem divertidas etc.? Explico-me: assim como Platão acreditava ser o homem terrestre uma imitação do Homem ideal, e o ator, por imitar uma imitação (o homem terrestre), uma imitação de segunda ordem, assim acredito eu que o humor feminino é uma imitação do humor masculino, que por sua vez é imitação do Humor Divino, que não se explica. Obviamente fiquei bastante satisfeito quando li a entrevista do Rodrigues; havia finalmente encontrado uma explicação plausível pra algo que já trazia desde há muito em forma intuitiva apenas: a mulher não tem como se render aos prazeres do bom humor porque está obcecada com coisa muito mais importante, a saber, os sentimentos. E, quando falha nesse sentido, torna-se neurótica assim como alguém que percebe que falhou naquilo que é incontestavelmente sua verdadeira vocação.

Agora já é possível fazer uma crítica menos lúdica (em comparação com a do Fomos Enganados) à literatura da Clarice Lispector. Ninguém duvida que o que há de sentimento em sua forma mais crua nos livros de Lispector tenha sido genuinamente sentido, em algum momento, por ela mesma. O problema surge quando ele tenta intelectualizar (e ninguém mais que ela procura intelectualizar cada insignificância) o que deveria ter ficado implícito. O que resulta daí, e não poderia ser diferente, é uma confusão danada, a ponto de a coitada ser considerada hermética quando tudo que tem a dizer é de uma simpleza desconcertante. Naquele conto que aparece em todo livrinho didático de literatura, Amor, a narradora leva algumas páginas e muitos ovos quebrados pra dar uma idéia do sentimento de libertação da protagonista, um efeito a que Graciliano Ramos teria chegado em poucos parágrafos. A confusão é tão grande que dois dos escritores brasileiros mais explícitos e grosseiros, que lançam mão da simbologia mais simples e imediata (seria necessário recorrer ao naturalismo pra encontrar algo parecido), Clarice Lispector e João Guimarães Rosa, são até hoje considerados sutis e 'difíceis'.

Pois bem. O segundo texto é o Modern Manhood (clique aqui pra ler), do filósofo inglês Roger Scruton (vide link ao lado), e diz respeito à posição da mulher na sociedade de hoje. Scruton se posiciona entre dois extremos, o determinismo biológico, segundo o qual homens e mulheres teriam suas diferenças intrínsecas herdadas geneticamente, e o indeterminismo feminista (que no final das contas, como veremos, é também um determinismo), segundo o qual a oposição dos genders não passa de uma construção cultural, uma espécie de ardil engendrado pelo macho malvado pra submeter a mulher à subserviência e que deve e pode ser superado. De cara impressiona a semelhança dessa argumentação feminista com a 'filosofia dos oprimidos', muito comum em países latino-americanos, que acredita ver em cada movimento estrangeiro, principalmente se norte-americano, um plano mirabolante de dominação eterna. Enquanto os sociobiólogos (proeminente entre eles o Edward Wilson, professor em Harvard e autor do Sociobiology, outro livro que não merecia estar na lista dos 100 melhores da NR) negam qualquer possibilidade de adaptação, a menos que seja uma adaptação genética, nas relações entre os sexos, o que praticamente reduz o homem à condição de besta que acerta com uma clava a cabeça da mulher para conquistá-la, as feministas advogam a anarquia total, defendendo logicamente (não a defendem na prática porque, por covardia, não levam suas próprias idéias a suas últimas consequências lógicas) a idéia de que o que me separa de uma moçoila qualquer não é muito mais que uma convenção social.

Eu dizia que o indeterminismo feminista é também um determinismo porque, se observamos bem, o que se consegue ao fim e ao cabo é uma mera troca de paradigmas, com a diferença de que o paradigma moderno é antinatural. Se por alguns momentos damos o braço a torcer e aceitamos a idéia de que a mulher sempre foi, séculos afora, deliberadamente oprimida pela figura masculina, o mínimo que se pode esperar de uma feminista é que reconheça que hoje ocorre o mesmo, só que com sinal trocado: a mulher é forçada a assumir uma posição que coincide com a que o homem costumava assumir. Se antes havia um gap deliberado, hoje haveria uma aproximação deliberada. O problema é que ninguém quer levar essa aproximação ao extremo e quando, pra efeitos puramente didáticos, sugerimos que isso seja feito, é comum responderem com um É óbvio que não devemos levar essa aproximação ao extremo, sendo que também não recebemos nenhuma indicativa de até que ponto ela deve ser levada:
The difference between traditional morality and modern feminism is that the first wishes to enhance and to humanize the difference between the sexes, while the second wishes to discount or even annihilate it. In that sense, feminism really is against nature.
Não vou tentar discutir aqui a origem desse feminismo (até porque o Scruton já faz isso), mas o que fica claro é que ele é de responsabilidade do homem também; talvez até principalmente dele. Toda relação que se queira duradoura entre seres humanos depende de um equilíbrio bem complicado, fundado em termos bem conhecidos ainda que indeclarados. Esse acordo, ou pacto, como queiram, perde toda sua razão de ser assim que uma das partes não se sente mais na obrigação de honrá-lo: que interesse teria a mulher em resguardar sua feminilidade se o homem já não é mais capaz de apreciá-la e vice-versa? Tudo que há de tipicamente feminino (fidelidade, candidez, responsabilidade etc.) ou masculino (coragem, força, honradez etc.) acaba perdendo valor precisamente porque realça as diferenças, e as diferenças, hoje, ofendem. Essa espécie de cooperação parte do pressuposto de que não é possível nem desejável que uma mesma pessoa se encarregue de suprir todas as demandas de uma família, por exemplo. Scruton conta uma historinha exemplar de seus avós: o avô, chegando a casa, deposita seu salário nas mãos da avó, que lhe devolve alguns trocados, o suficiente pra bebida do dia:
My grandfather's gesture, as he laid down his wage packet on the kitchen table, was imbued with a peculiar grace: it was a recognition of my grandmother's importance as a woman, of her right to his consideration and of her value as the mother of his children. Likewise, her waiting outside the pub until closing time, when he would be too unconscious to suffer the humiliation of it, before transporting him home in a wheelbarrow, was a gesture replete with feminine considerateness. It was her way of recognizing his inviolable sovereignty as a wage earner and a man.
Meu machismo é assim. E o seu?