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05 julho, 2009

Vocação de escritor

Fico me perguntando com que frequência os aspirantes a escritor de hoje ouvem comentários do tipo 'Não, filho, você realmente não leva jeito pra coisa' ou simplesmente 'Desista'. Vivemos numa época superficialmente suave: gostamos de evitar confrontos sempre que possível. Por imposição do dia-a-dia, os praticantes de outros ofícios inventam testes mais ou menos objetivos pra desqualificar os aspirantes menos talentosos; já o aspirante a escritor nunca pode ser desenganado; há sempre a possibilidade longínqua de ele ser um gênio incompreendido, um homem à frente de seu tempo. E, como não há humilhação maior do que ser aquele que não reconheceu um homem à frente de seu tempo (isso significa não ser você mesmo um homem à frente de seu tempo!), seguimos com as abstrações conciliadoras.

A desculpa do gênio incompreendido é infalível porque pode sempre ser postergada: se o gênio demora décadas pra aflorar, longe de significar que ele não existe, significa apenas que é mais sofisticado do que suspeitávamos. É a revolução do proletariado no contexto da criação literária: nunca chega e, por isso mesmo, subsiste no pensamento.

É um tanto frustrante ver bons leitores se obrigando a tentar ser bons escritores de ficção. Não seria frustrante se ainda houvesse quem lhes falasse sinceramente -- penso logo na figura do professor que não está muito preocupado com a auto-estima do pupilo. Os exercícios juvenis são úteis pra desenvolver potencialidades, é claro, mas também são úteis pra fazê-lo perceber que essa não é a sua praia. Convenhamos: não se trata de grande calamidade. Muito ao contrário, se isso fizer com que seu filho troque a faculdade de Letras pela de Medicina, já temos um grande benefício...

17 maio, 2009

CXLIII - The Old Man and Death

An old man who had traveled a long way with a huge bundle of sticks became so weary that he threw his bundle down on the ground and called upon death to deliver him from his most miserable existence. Death came straight to his side and asked him what he wanted.

"Please, good sir," he said, "do me a favor and help me lift by burden again."

It is one thing to call for death and another to see him coming.

17 abril, 2009

Um velho conservador

A figura de António Sousa Homem é, de longe, a que mais me diverte dentre todas as figuras divertidas que a blogosfera nos proporciona. Segundo consta, acaba de completar seus oitenta e nove anos e habita calmamente o 'eremitério' de Moledo, no coração do Minho. É visitado por irmãos e sobrinhos e, por opção bem calculada, já não pode compreendê-los tão bem. O interlocutor usual de Sousa Homem são a própria memória e as sombras que daí retira: o velho doutor Homem, seu pai; seu avô; Tio Alberto; Tia Benedita. Maria Luisa, uma sobrinha, de vez em quando aparece como que para atestar a transitoriedade dos tempos.

Sousa Homem é um resignado ('conheço esses caminhos por razões médicas, tentando aliviar os pulmões e despertar neles o desejo de continuarem a respirar'), e isso já seria suficiente pra fazer muita gente franzir o sobrolho. De fato,
Desiludi uns e diverti outros. Expliquei aos meus sobrinhos que não, que nunca tive uma adolescência revolucionária e barbuda. Há cinquenta anos eu esperava da vida o que ainda hoje acho decente esperar-se: um perfume de mimosas numa estrada do Minho. Era um conservador e sou um conservador, um hibisco que muda de folha na altura certa e que aceita a dádiva da fortuna e da metereologia.
Desiludiram-se os sobrinhos, 'que preferiam ver-me como um velho anarquista que tivesse passado o melhor tempo da sua juventude colocando bombas à porta de bancos, ou assaltando a tradição da família para que me declarasse democrata e republicano'. Desiludiram-se as irmãs, que não viram as paixões do irmão mais velho, também elas transitórias, concretizarem-se em matrimônio. Mas restaram os livros, e os contemporâneos que já partiram.

Um desses livros é o The Anatomy of Melancholy, de Robert Burn, herdado do velho doutor Homem, seu pai. Sousa Homem parece saber muito sobre a melancolia, mas não vê nisso motivo para desespero ('cada dia que acrescento à minha idade é um dia para agradecer à providência'); longe disso, entende, assim como seu pai, que os sacrifícios que somos forçados a fazer servem como bálsamo para a juventude. Eis aí a melhor resposta para bombas em portas de bancos: o encolher de ombros de quem tem uma família para cuidar.

Muitos devem achar, a exemplo de sua irmã mais nova, que Sousa Homem simplesmente se recusou a dobrar o século ('ela tem a impressão de que eu pertenço, não a este mundo, mas aos calendários que vão passando de moda -- gosto da imagem e não me ofendo), ou que, assim como o condenado de Nick Cave, he goes shuffling out of life, just to hide in death awhile. Mas Sousa Homem não se esconde em lugar nenhum, a menos que se considere o eremitério de Moledo, no coração do Minho, um esconderijo.

03 abril, 2009

Homens e mulheres tais como nasceram

Dia desses presenteei-me com dois livros da Jane Austen, Pride and Prejudice (pois é, nunca tinha lido) e Emma. Diferentemente dos últimos 5 ou 6 livros de ficção que tinha lido, dessa vez não me decepcionei. Jane Austen é a romancista predileta de Paul Johnson e recebeu elogios entusiásticos de Sir Walter Scott e Somerset Maugham, mas por muito tempo permaneci incrédulo. Antes que falem em machismo, a própria Austen explica o porquê, ao comentar, através de Emma, uma carta de Mr Martin: I can hardly imagine the young man whom I saw talking with you the other day could express himself so well, if left quite to his own powers, and yet it is not the style of a woman; no, certainly, it is too strong and concise; not diffuse enough for a woman.

Afora questões estilísticas, o alívio maior é perceber que homens e mulheres, interessantes ou não, aparecem nesses livros tais como nasceram e se criaram, não como subprodutos de uma construção ideológica. Os homens interessantes são interessantes como apenas homens poderiam ou tenderiam a ser: discretos, gentis, instruídos e corajosos. Idem para os desinteressantes: aduladores, insensíveis e deselegantes. Já as heroínas de Austen são perspicazes sem ser exageradamente atrevidas, e as figuras femininas que comandam nossa simpatia são atenciosas e singelas, quando não submissas. As que inspiram nosso descaso são, como não poderiam deixar de ser, frívolas e namoradeiras.

Deve causar certa estranheza que, apesar disso, os enredos de Austen sejam populares até hoje. Um dos motivos por que daqui a dez anos ninguém vai lembrar de Brokeback Mountain e As Horas e outros tantos filmes/livros recentes é que, neles, sempre que se quer destacar a importância de um sexo, diminui-se a do outro. Qualquer homem que se queira interessante num ambiente como o de As Horas deve ter características eminentemente femininas etc. Felizmente esse não é o tipo de homem que chamaria a atenção de Lizzy Bennet ou de Emma. Ou melhor, chamaria sim, apenas para ser justamente execrado.

16 dezembro, 2008

Nota adicional sobre Capitu

Diogo Mainardi fala da série Capitu em sua última coluna. Alguns trechos:
Nada nele recorda o "Dom Casmurro" de Machado de Assis, apesar de reproduzir diálogos do romance. Na série, Bentinho aparece estranhamente caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do ator que desempenha seu papel. Qual é o melhor candidato a Muttley? O agregado José Dias. (...) A série Capitu tem um aspecto circense. É Machado de Assis encenado por Orlando Orfei. É Bentinho imitando Arrelia no picadeiro de Fausto Silva: "Como vai, como vai, vai, vai? Eu vou bem, muito bem, bem, bem". Luiz Fernando Carvalho usa uma linguagem grotesca, afetada, espalhafatosa, cheia de contorcionismos e de malabarismos.
A coisa é mesmo heterodoxa. Mainardi esqueceu de mencionar que deram um jeito de enfiar versões de músicas do Pink Floyd e do Black Sabbath (!) na trilha sonora, que o cabelo do Bentinho jovem tem estatura digna de um black power, nada obstante ele ser branco e seminarista, e que o sujeito que interpreta José Dias, logo o alinhadíssimo José Dias, tem um jeito marcadamente afeminado. Vi tudo isso num só episódio.

Eu chutaria que a racionalização da patifaria como um todo é a dificuldade de adaptar obras do Machado. O brasileiro tende a associar criatividade e festa intimamente; se uma obra é mesmo muito criativa e sobrevive aos tempos, é necessário uma adaptação que desmonte todos os padrões cênicos usuais, de preferência com muita dança, algazarra e cores espalhafatosas. No episódio que vi, Escobar não parava de dançar. O que significa isso?

Parece que é ou isso ou adaptações mornas, como as que fizeram do Memórias Póstumas e do Primo Basílio. Todos querem um pouco da glória da pouca literatura em língua portuguesa que deu certo, mas boa inspiração apenas não opera milagres. Talvez precisemos de um temperamento um pouco menos brasileiro.

11 dezembro, 2008

Machado de Assis, um Brasileiro

Eu andava com idéias de escrever sobre o mau português que se fala no Brasil quando chegou até mim uma entrevista que o Napoleão Mendes de Almeida, o afamado gramático, concedeu à Veja em 1993 (leia aqui). Nela ele diz que a TV talvez seja o maior difusor do português torto que conhecemos tão bem. Fato é que, hoje, a TV já não pode fazer muita coisa: falar em português correto é mais constrangedor que gaguejar ou lançar generosos perdigotos por aí.

Vi ontem um episódio da série Capitu, baseada no Dom Casmurro de Machado. Os diálogos simplesmente não soam naturais, assim como não soam naturais os diálogos de todas as outras obras baseadas em livros do Machado, ou em qualquer outro livro da época. Todas essas adaptações estão fadadas ao fracasso imediato porque o brasileiro admite como absurda a possibilidade de ouvir um discurso com pronomes devidamente posicionados. Mas e daí, fazer o quê? A culpa é dos atores que se esforçaram (imagina-se o quanto) pra decorar as linhas?

O problema é que o abismo entre o português falado e o escrito é, mesmo hoje, intransponível. Tome o mais idiota dos adolescentes norte-americanos e ficará claro que o inglês falado (incluindo os usuais abusos: like, you know...) não está tão distante do inglês acadêmico. A estrutura das frases ao menos é a mesma; os solecismos mais comuns, os de ortografia, são obviamente imperceptíveis na linguagem oral. Já ao falante brasileiro ficam proibidas construções tão banais quanto 'eu a vi' ou 'segurei-lhe a mão', sob pena de um olhar mais ou menos enviesado.

Enquanto no inglês identifica-se a linguagem formal principalmente pela riqueza vocabular e pela correção ortográfica, identifica-se o mesmo em português por construções meramente corretas. Mesóclise, então, nem pensar, apesar de ser bem sabido que ela é às vezes insubstituível (não fosse, gente como Graciliano Ramos não a usaria). Regência correta de termos menos recorrentes já é luxo descabido, demonstração quase certa de arrogância.

E é assim que os personagens de nosso maior escritor (quando aparecem fora de seus livros) não nos parecem apenas diferentes, como seria natural esperar de gente que morreu há mais de um século, e que é como os personagens de Dickens ou Conrad devem parecer ao inglês hodierno. Eles nem sequer parecem brasileiros e, se realmente o foram, o certo é que há uma grande catástrofe nos separando.

04 dezembro, 2008

Estilo

Fico imaginando sobre o que eu escreveria caso tivesse de escrever toda semana, ou todo dia (provavelmente já fiz isso por alguns curtos períodos, mas nunca por obrigação). As alternativas mais batidas não são muito atraentes. São elas, que eu saiba: repisar piadas/tiradas que sabidamente funcionaram um dia, invertendo essa ou aquela circunstância; comentar notícias de jornal, com o cuidado de mostrar que cada notícia é evidência adicional de uma tese maior sua enunciada desde há muito; comentar notícias de jornal. O problema das notícias de jornal é que em geral tratam de gente desinteressante e, pior, gente viva (ou recém-matada).

É preciso muito talento pra falar com interesse do que se pode ver aqui e agora. Uma ilha que eu possa ver e visitar pode até ser bem bonita, mas provavelmente não voa ou é povoada por cavalos inteligentes como nos contos de Gulliver. Já vi tempestades fortes, mas nunca uma com efeitos magnetotemporais como no conto de Edgar Poe. A mania moderna de devassar tudo até os mínimos detalhes, discriminando e contabilizando tudo, parece tornar o ofício de escrever mais difícil. Ainda bem que não vivo disso.

Se eu vivesse disso, e considerando que não tenho talento para discorrer agradavelmente sobre coisas banais (quem não se lembra das escarradeiras floridas de Nelson Rodrigues?), recorreria àquelas pequenas excentricidades que ainda dão laivos de pessoalidade ao texto; algo que eu pudesse sacar da algibeira assim que me faltasse assunto melhor. Poderia ser um terceiro mamilo, um parente filiado ao PC do B ou o hábito de usar tênis all-star. Nenhum defeito é tão constrangedor quando você é o primeiro a confessá-lo.

Não é nem necessário que seja defeito; pode ser também uma virtude inútil, um conhecimento desnecessário. Há quem estude vinhos, quem aprenda a fazer sushi. Eu resolvi estudar ciências exatas. Está claro que as ciências exatas estão longe de ser inúteis (o mundo seria bem menos miserável se todos dominassem as quatro operações), mas são para mim, pelo menos tudo aquilo que me chegou depois do primeiro semestre da faculdade. Resolvi estudar o assunto como quem aprende a fazer sushi. Deu certo: acabei gostando.

Agora, alem de saber um pouco sobre a radiação Hawking e entender a demonstração que o vigésimo presidente dos Estados Unidos, James Garfield, propôs para o teorema de Pitágoras, posso rir da cara dos embusteiros. Rir de embusteiros, e denunciá-los devidamente, parece ser um dos maiores bônus de aprofundar-se em qualquer área do conhecimento. Projeções econômicas que precisam ser adaptadas diariamente e que desprezam solenemente variáveis importantes são motivo de risada pra quem estudou cálculo. Simulações da atmosfera que desprezam o efeito das nuvens pra 'provar' o aquecimento global são motivo de risada pra quem estudou transferência de calor.

Eis aí: já que não podemos mais rir de bruxas e gnomos, riamos de nós mesmos.

14 setembro, 2008

Os Prazeres e os Dias

Marcel Proust tem um livrinho de textos aleatórios chamado Os Prazeres e os Dias. Li há algumas anos e não gostei muito, mas há nele declarações que acabaram por tornar-se celébres, como a de que a conversa é o passatempo do homem sem imaginação. Num outro texto ele declara que não entende a necessidade de viagens; pode imaginar e apreciar qualquer paisagem de dentro do seu quarto, imaginando-a. Os que não têm uma imaginação tão privilegiada, como eu e você, viajam e apreciam tudo em primeira mão. Mas é verdade que nós ao menos tentamos imaginar como a viagem vai ser; aliás, é bem provável que a tentiva dê a idéia da viagem. Quem está certo sobre o Rio de Janeiro: Nelson Rodrigues, Tom Jobim, ou o carioca mala que mora ao lado? etc.

Percebi com muito atraso que já não se viaja mais assim, ou pelo menos que não é o usual entre gente da minha idade. Hoje a idéia é visitar o leste europeu, o sudeste asiático e alguma ilha obscura e ver no que dá. Já pensou em visitar o Marrocos sem nem saber qual é a capital de lá? Pois é, nem eu. Mas é preciso, dizem, ter esse conhecimento de 'mundo', que de tão vago não poderia mesmo ter outro nome. É mais importante saber que rio corta os montes trans'Alpinos nas coordenadas 51.66, 0.05 (porque esse rio pertence a um país onde as baladas bombam mesmo, cara) a saber por que rota Vasco da Gama alcançou as Índias ou por onde chegou a ajuda francesa na guerra civil americana.

Suspeito que todo esse esforço, que praticamente equivale à criação de uma nova disciplina (chamemo-la de geografia adolescente, ou geografia mochileira), tem como objetivo final um pouco de orgulho próprio, principalmente se envolve a tradicional alfinetada nos americanos. A primeira das duas únicas pretensões intelectuais que o mochileiro tem é provar que o americano não sabe geografia; a segunda é mostrar que a sabedoria aumenta com a distância. São os dois únicos momentos em que, contrariando a própria natureza, o mochileiro exige certa seriedade dos ouvintes.

A segunda é mais interessante e merece um comentário: a distância, seja espacial ou temporal, exerce mesmo certo fascínio. Só que o fascínio advém do desconhecido, e o mochileiro procura o contrário disso. Ele viaja o mundo de ponta a ponta à procura de alguém que seja inteligente o suficiente para entendê-lo, isto é, alguém que seja exatamente como ele. Subvertendo a lógica da aventura clássica, o mochileiro sai bravamente à procura do que é perfeitamente conhecido. Proust estaria certo se estivesse se referindo a isso.

04 maio, 2008

Ora, Vírgulas!

Quando eu era criança tive de ler um livro chamado Ora, Vírgulas! no colégio. Não lembro os detalhes, mas contava o assombroso caso de uma cidade em que todas as vírgulas resolvem desaparecer. Os livros das bibliotecas, das escolas etc. ficam todos sem vírgulas, mais ou menos como numa versão light do último parágrafo de Ulysses. As crianças, claro, começam a perceber a importância das vírgulas e por aí vai.

Hoje, quando encontro uma pontuação que me desagrada, tenho vontade de vituperar: ora, vírgulas! Não quero dizer com isso que o problema seja sempre falta de virgulas; pode ser o contrário, pode ser um ponto-e-vírgula que deveria aparecer e não apareceu. Semana passada, estava lendo um livrinho do Paulo Francis, o ótimo Francis, e não parava de gritar 'ora, vírgulas!; ora, vírgulas!' enquanto socava a cama. Meu pai viu e perguntou: 'mas, filho, ele não ficou direitista antes de morrer?' O efeito terapêutico, porém, é altamente recomendável: algo como o Serenity Now! do pai do George no Seinfeld.

Confesso que nunca li romances do Jorge Amado (comecei uns três e desisti), mas já dirigi uns brados a textos dele, que Deus o tenha. Tenho um exemplo à mão: 'Ainda não consigo determinar as razões por que a obra de Campos de Carvalho não prosseguiu em sua carreira internacional. São coisas que acontecem, mais que inexplicáveis, infelizes.' Essa acumulação apressada de informações é algo de que todos nós, quando crianças, já fomos vítimas. Penso logo num pequerrucho fazendo um montinho de sujeira e jogando-o pra debaixo do tapete, displicente e bonachão.

Boa pontuação, para não falar em estilo, é a cortesia do prosador. É como se ele fosse espalhando rampas e escadinhas pelo caminho pra evitar estacadas desagradáveis. Deviam enfiar essa analogia em algum livrinho de produção de textos.

09 março, 2008

Exercício de Tradução (2)

Já ia esquecendo que tinha feito um primeiro. Foi há mais de dois anos (ler aqui). Minha idéia, então, era a de escolher um trecho simples que pudesse apresentar dificuldades ao tradutor; dessa vez, a ênfase é no vocabulário. Além disso, inverto o sentido, que agora é do português para o inglês. Trata-se de uma das muitas passagens descritivas do excelente A Cidade e as Serras, do Eça. Vejam o original:

Com que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras, e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem-amado! A grande zaigualava a graça. Para os vales, poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como um musgo macio onde apatecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao carreiro fragoso, largas ramarias estendiam o seu toldo amável, a que o esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares, que sustêm as terras liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes a que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, de entre as que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante... Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, de entre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira das veredas, jorrava por uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados... Todo um cabeço por vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes. Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas retouçando: -- ou mais estreiros, entalados em muros, penetravam sob ramadas de parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres, sumidos entre figueiras, onde se esgaçava, fugindo do lar pela telha vã, o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. Um esparso tilintar de chocalhos de guizos morria pelas quebradas...

Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:

-- Que beleza!

Abaixo a tradução:

With what brilliance and copious inspiration composed it the divine Artist who also made the hills, and took so much care of them, and so richly adorned them, in this well-beloved Portugal of His! Its grandness equalled its grace. Toward the valleys, imponently deep, descended stands of trees, whose canopies were so big and round, so freshly green, that the stands resembled soft moss where it would be just as well to fall and roll on. From the slopes, disdainful of the rocky trails, wide foliages stretched out its lovely canopies, whose fragrance was shaken up by the light flutter of the birds. Through the secular walls, that sustain the land while girded by the creepers, thick tortuous roots, entangled with more creepers, broke out. In all the tract of land, from each chasm, wild flowers budded. White rocks, by the hillsides, spreaded out the solid nudity of its polished womb through the wind and through the sun; others, dressed up in carrageen moss and blooming silvae, advanced like stems of adorned galleys; and, from between those that heaped up in the summits, some cottage that stood there, all crooked and wasted, peeked through the bleak openings, below the dishevelled, scarce verdure that the wind sowed upon its roof. Everywhere the whispering water, the fertilizing water... Nimble little creeks escaped, laughing with pebbles, from between the paws of the mare and the donkey; thick hasty rivulets leaped with uproar from stone to stone; files straight and glittering like silver ropes tremulated and sparkled from the height of the gorges; and many a fountain, placed alongside the by-paths, sprang forth through a pipe, benevolently, awaiting men and cattle... Often times the whole of a hilltop was harvested, where an ancient, lonely oak tree dominated as if its lord and guardian. On greenish platforms stood the fragrant orange orchards. Pathways of loosened flagstones surrounded full meadows where sheep and cows grazed: -- or, being narrower, crammed in between walls, penetrated below thick grapevine foliages, in shades of repose and freshness. We then climbed some village by-street, ten or twelve hovels, hidden between fig trees, where the white and fragrant smoke from the sweetsops, escaping home through the cracked tile, hovered and vanished. On the remote hillocks, above the thoughtful darkness of the pine trees, appeared little white churches. The pure and fine air penetrated the soul, and upon the soul it mirrored joyfulness and strength. A dispersed jingle of cattle bells died out in the distance...

Jacinto ahead, mounted on his grey mare, would murmur:

-- How grand!

Sugestões/correções são bem-vindas.

16 fevereiro, 2008

Memória Vermelha (2)

Em entrevista à finada Primeira Leitura, Contardo Calligaris afirmava que seu pai (ou seu avô, não lembro mais) decidiu opor-se aos fascistas em Itália sem para tanto tornar-se comunista, como era o costume, porque os comunistas eram muito 'vulgares', ou algo do tipo.

Realmente o estudante de hoje, a não ser que não leia, não tem como justificar um fascínio pelo comunismo que vá alem de seus 18 anos; qualquer livrariazinha de esquina já traz pilhas de biografias descendo o pau em Stalin, Guevara, Mao etc. Mas e no começo do século passado, quando os regimes comunistas ainda não tinham perpetrado seus respectivos genocídios, como é que o cidadão médio, desinteressado em política, fazia pra afastar a idéia nefasta? Por uma sensibilidade estética. O pai do Calligaris que o diga.

Parece meio surpreendente, então, que Graciliano Ramos, tão atento a sutilezas estilísticas, tenha sido um comuna. Tudo bem que jamais chegou a fazer parte do PC, mas isso foi graças ao seu temperamento, não a convicções ideológicas. De fato, no Memórias do Cárcere ele chega a dizer coisas como
Não me repugnava a idéia de fuzilar um proprietário por ser proprietário. Era razoável que a propriedade me castigasse as intenções.
Essa mania tosca, estilisticamente deplorável, de dar vida a substantivos como 'propriedade' ou 'capital' (parece que estamos lendo um jornalzinho marxista: 'a greve dos trabalhadores foi debelada, assim como queria o Capital') já deveria ser suficiente pra afastar qualquer escritor decente. O problema é que Graciliano, diferentemente do Calligaris-pai, parece ter uma visão binária das coisas: impossível opor-se ao fascismo tupinambá senão através do comunismo tupinambá. Aliar-se aos comunistas, até admirar essa gente, passa a ser visto como obrigação moral, e não como o que realmente é antes de mais nada: um gravíssimo erro de estilo.

12 fevereiro, 2008

Memória Vermelha (1)

Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.
Na edição que tenho em mãos (Record, 2004) do primeiro volume das Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, há um prefácio bem desagradável, daqueles que muito provavelmente nem o autor do livro consentiria ver publicado, escrito por Nelson Werneck Sodré. Primeiro porque é escancaradamente hagiográfico. Segundo porque, a despeito do conselho de Graciliano citado acima, o fascismo tupinambá é nele pintado com cores exageradas e odientas.

A verdade é que a imagem Graciliano Ramos sai, pelas mãos do mesmo Graciliano, bastante acanalhada desse livro. Curioso isso, já que o tipo de sinceridade que aqui encontramos (a vida em presídios leva a episódios tão constrangedores que somente a proteção da tumba -- o livro é póstumo -- é capaz de nos animar a revelá-los) é sinal de grandeza de caráter. Sem dúvida que é. Ocorre que o estilo do Graciliano, já velho conhecido nosso, força-o a desrespeitar, também ele, seu próprio conselho. Ele tem uma inteligência que poderíamos chamar episódica: pequenos detalhes, sejam gestos, palavras, odores etc., aparentemente desimportantes, são comentados detidamente, enchem capítulos inteiros. A narrativa flui normalmente até que um pequeno incidente prende toda a atenção do escritor; há como que uma suspenção epifânica. Como observava Alvaro Lins, o tempo narrativo de Graciliano Ramos é adulterado. A promessa enunciada logo no comecinho é cumprida à risca:
Posso andar para a direita e para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente.
Essa técnica funciona às maravilhas em romances como Angústia, em que o narrador-protagonista fica assim livre pra enfileirar suas obsessões e delírios. Aqui a coisa é aborrecida porque dá ares de onipotência àquilo mesmo que ele desejava não exagerar, o fascismo tupinambá. Impossível ignorar que, por não se tratar de ficção, conhecemos os nomes dos bois, e a possibilidade de reduzir boa ficção a panfleto político é premente e desconcertante.

Não há, é certo, ficção. E por mais que Graciliano se esforce para retratar com justeza seus algozes, as linhas sofridas, minguadas, como que espremidas do ritmo confessadamente lento do escritor, elevam as peregrinações do preso a um martírio quase que insuportável ao leitor. Acompanhamos enojados as perambulações pelo porão fétido do Manaus, sentimos as picadas de percevejos escondidos num catre duro, o cheiro nauseabundo da ração macilenta etc. Essas temeridades, graças ao talento do narrador, se multiplicam, avultam, ganham proporções impensáveis, instransponíveis. O órgão perpetrador das iniquidades cresce proporcionalmente, e o preso (lamentamos tanto por saber seu nome!) sai arrasado, acanalhado.

Eis aí: o ótimo estilo de Graciliano Ramos lhe prestou (a ele e a nós) um grande desserviço.

23 janeiro, 2008

Ennui ou Um Romance Revolucionário

Já tiveram a sensação de estar lendo o pior livro possível para um determinado momento? Foi o que senti durante a última semana inteira, semana penosamente dedicada à leitura das 520 páginas do Le Rouge et le Noir, de Marie-Henri Beyle, vulgo Stendhal. Li-o na esperança de encontrar algo da glória napoleônica, de heroísmo militar em geral, ou pelo menos da piedade do mais alto escalão eclesiástico. Quanta ingenuidade! De fato, Julien Sorel, filho de carpinteiro, é obcecado por Napoleão e procura seguir-lhe os passos, da miséria à consagração universal, e, apesar de conseguir ascender socialmente, fá-lo de maneira a ser comentado em cafés e bailes parisienses, mas nunca em livros de história. O que poderia ser pior que small talk francês para quem anseia por bravura medieval e querelas teológicas?

Le Rouge et le Noir é um daqueles livros a que devemos certa reverência antes mesmo de começarmos a lê-lo. Ele é cheio de pioneirismos importantinhos, como dizer que o romance é um espelho da sociedade, e que se a imagem daí resultante nos parece aviltante é culpa da sociedade, não do romancista etc. Há também aquelas alusões bem pouco veladas, observação obrigatória em rodas de leitura de velhinhas hiperativas, do tipo fazer com que o social climber Sorel tenha de subir escadas para entrar no quarto de suas amantes. Já se pode até imaginar possíveis títulos de ensaios sobre o livro: Stendhal's Subtle Imagery: Making Money Through the Roof of the Night ou A Choice of Ladders: Either Social or Naughty. É claro que esses detalhes só soam ridículos porque a paródia é intencionalmente ridícula, mas ela serve pra dar uma idéia do meu drama pessoal.

Por que, afinal, tanta antipatia? Por que tanto ennui, como diriam os franceses? Primeiro porque o livro é francês. Pior, trata da alta sociedade francesa. Antes que a patrulha esquerdopata venha sugerir que é porque Stendhal, Sorel etc. eram liberals, defendo-me com o 'revisionismo' sempre indispensável nesses horas: Sorel despreza, ou ao menos diz desprezar, a aristocracia e a religião. Mas eis que, durante todo o livro, identifica-se somente com aristocratas e figuras eclesiásticas, e não por interesse. Admira extasiado (e inclusive faz questão de participar) do desfile em homenagem ao Rei de --. Mal consegue disfarçar a reverência que lhe surge espontaneamente ao contemplar a plácida figura do bispo de Agde. Declara-se entorpecido com os ritos, preces e canções que presencia; pressente o que poderíamos chamar cheiro da eternidade. É claro que tudo isso trai um caráter afeito ao grandioso, coisa que um orgulho plebeu tão forte já deixava entrever desde muito cedo.

Mas, infelizmente para nós, não há nada de grandioso nas peripécias de Sorel, apesar de seu oportunismo ser realmente exemplar. Refiro-me em particular ao romance com Mathilde, filha do marquês de la Mole, para quem Sorel trabalha como secretário. Lembram-se daquele filme Closer, em que os casais formam-se apenas para ruir depois de 5 minutos? É mais ou menos desse tipo a inconstância de Mathilde: julga-se apaixonada pelo nobre plebeu, mas, ao perceber que o possui completamente, enjoa e cai fora. Mas eis que Sorel, seguindo o conselho de um amigo especialista em relacionamentos, joga atenções para outra e, ó surpresa, lá está Mathilde apaixonada novamente.

O que seria isso senão uma ode, intencional ou não (provavelmente não), ao conservadorismo? Sorel pergunta a Mathilde: que garantia tem de que não será enjeitado de novo dentro em breve? Nenhuma, é claro. Isso lembra a observação de Chesterton segundo a qual todo bom revolucionário é em última análise também conservador: jamais conseguirá pintar o mundo inteiro de azul se amanhã já tiver mudado de idéia e preferir o vermelho. Muito pelo contrário, tem de querer sempre o azul, e com uma insistência obstinada. A mudança, longe de ser o aspecto mais importante da realidade, tem o péssimo hábito de degradar aquilo que foi erguido graças a um esforço de conservação. Muitas das virtudes que nos são mais caras não são muito mais que um esforço desse tipo. Ou alguém já ouviu falar em lealdade esporádica?

Já ficou claro que num embate entre Parmênides e Heráclito fico com Parmênides all the way. Graças a Aristóteles, também sabemos que mudanças não só existem como podem ser (e muitas vezes são) importantes. Quanto me perguntam se sou conservador, respondo: é claro, quem não gostaria de conservar o que é bom e de melhorar o que pode ser melhorado? Edmund Burke descrevia seu ideal de homem político precisamente assim: A disposition to preserve, and an ability to improve.

14 janeiro, 2008

A Força das Idéias

Nostromo difere de seus antecessores mais conhecidos (Lord Jim e Heart of Darkness) por ampliar o foco e diminuir o ritmo da narrativa: temos agora vários personagens cujas aventuras e desventuras são relatadas mais pausadamente, levando um resenhista da época a declarar que There are superb things in the book, but they do not redeem it from the fault of tediousness. Outro comentário me parece bem mais direto ao ponto: as muitas perspectivas conflitantes aqui apresentadas parecem ilustrar um gigantesco exercício de futilidade. É bem verdade que a situação política na república de Costaguana é menos má no final do livro do que no começo, mas todos parecem perceber que o fantasma de novas revoluções não está tão distante quanto seria desejável. Mas será todo esforço realmente fútil? Conrad oferece alternativas viáveis ou pensava apenas em escrever uma ode à impotência humana?

A primeira opção é-nos oferecida pelo costaguanero Charles Gould, inglês de criação que retorna a Costaguana para reaver e salvar a mina de prata de seu falecido pai. Eventualmente torna-se o homem mais importante da república, mas não sem sua própria teorização do processo:
What is wanted here is law, good faith, order, security. Anyone can declaim about these things, but I pin my faith to material interests. Only let the material interests once get a firm footing, and they are bound to impose the conditions on which alone they can continue to exist. That's how your money-making is justified here in the face of lawlessness and disorder. It is justified because the security which it demands must be shared with an oppressed people. A better justice will come afterwards. That's your ray of hope.
É claro que Gould estava miseravelmente errado: o sucesso de sua mina não só não garantiu 'lei, boa-fé, ordem e segurança' por muito tempo como exacerbou a velha e onipresente ladainha antiimperialista. Devemos respeitar a voz do povo, dirão os esquerdinhas mais convictos. Ocorre que o povo muda de lado assim que percebe que isso pode trazer algum benefício, e assim é também no romance de Conrad. Gould se engana não por querer segurança e estabilidade (além do suporte financeiro que se faz necessário), mas por supor que, satisfeito o interesse financeiro, todas as demais regalias se lhe apresentariam mui graciosas, como que espontaneamente. Não se distancia muito disso o credo de alguns liberais de hoje em dia.

Que fazer então? Já teríamos licença para partir pro extremo oposto, o ceticismo estiloso de Martin Decoud, que não vê nos costaguaneros muito mais que selvagens incapacitados para qualquer pretensão civilizatória? Os críticos que, como sempre, só vêem discurso antiimperialista nos escritos de Conrad ignoram uma quantidade razoável de evidência textual que parece corroborar a visão de Decoud. É dele que surge a idéia do plano separatista: traçar uma divisória definitiva entre Sulaco (a cidade portuária onde se localiza a mina dos Gould) e o restante de Costaguana.

Mas a praga da idéia fixa não se realiza somente através de fantasias totalizantes -- a fé materialista de Gould (This wealth-producing thing, to which his sentimentalism attaches a strange idea of justice... a passion has crept into his cold and idealistic life, a passion which I can only comprehend intellectually.), o ceticismo de Decoud, o amor à 'liberdade' do velho Viola etc. Ela se manifesta sob formas menos abrangentes (mas não menos obsessivas) também, como o ardente desejo de autopromoção de Nostromo (You never change, indeed, she said, bitterly. Always thinking of yourself and taking your pay out in fine words from those who care nothing for you.) ou a obstinada lealdade de Dr. Monygham aos Gould.

Esse último caso exemplifica bem o que Paul Johnson chamou um dia the heartlessness of ideas: o sacrifício de tudo e todos por uma idéia que é tão mais atraente quanto mais inalcançável. Na tentativa de ganhar tempo com Sotillo (a essa altura aliado do rebelde Montero), que estava desesperadamente à procura da prata desaparecida, Dr. Monygham afirmou saber onde o carregamento estava. Ocorre que, ao fazê-lo, a vida do refém Hirsch (Hirsch testemunhara o acidente que levou ao 'desaparecimento' da prata) perdeu todo seu valor. Vejam a reação do médico à sugestão de Nostromo:
No? Perhaps, if you had not confirmed Sotillo in his madness, he would have been in no haste to give the estrapade to that miserable Hirsch.

The doctor started at the suggestion. But his devotion, absorbing all his sensibilities, had left his heart steeled against remorse and pity.
Um pouco antes disso Conrad já tinha observado que
This claim, exalted by a spiritual detachment from the usual sanctions of hope and reward, made Dr. Monygham's thinking, acting, individuality, extremely dangerous to himself and to others, all his scruples vanishing in the proud feeling that his devotion was the only thing that stood between an admirable woman [Mrs. Gould] and a frightful disaster.
Se é bem verdade que Conrad não nos fornece uma alternativa já pronta e certamente viável, ele mostra com o talento de sempre o porquê de as muitas que foram apresentadas serem impraticáveis. É claro que tantos fracassos em sucessão não poderiam deixar de nos sugerir um possível remédio. Longe de ser um grande exercício de futilidade, como queria o já desiludido Decoud, o elemento em comum na 'derrota' dos Gould, Decoud, Nostromo, Viola, Dr. Monygham etc. nos ensina que é a paixão cega pela idéia, seja ela qual for, que nos leva à perdição.

08 janeiro, 2008

Imaginação Moral

- Você, no lugar do Lord Jim, também teria pulado?

Quem foi Lord Jim? Por praticidade, transcrevo o primeiro parágrafo do ensaio The Moral Sense in Joseph's Conrad Lord Jim do George A. Panichas, da Universidade de Maryland (leia a íntegra aqui):
Lord Jim (1900), Joseph Conrad’s fourth novel, is the story of a ship which collides with "a floating derelict" and will doubtlessly "go down at any moment" during a "silent black squall." The ship, old and rust-eaten, known as the Patna, is voyaging across the Indian Ocean to the Red Sea. Aboard are eight-hundred Muslim pilgrims who are being transported to a "holy place, the promise of salvation, the reward of eternal life." Terror possesses the captain and several of his officers, who jump from the pilgrim-ship and thus wantonly abandon the sleeping passengers who are unaware of their peril. For the crew members in the safety of their life-boat, dishonor is better than death.
Se com 'você' eu estiver me referindo a uma amostra aleatória da população, é bem provável que a resposta à pergunta seja não só afirmativa, mas também obviamente afirmativa. Já se comentou o quanto a consternação de Lord Jim (consternação que começa no life-boat mesmo, ao contemplar o aspecto odiento de seus cúmplices) parece hoje exagerada ou até afetada. Se não havia alternativa que não envolvesse risco de vida, por que tanta autoflagelação?

Já Jim pensava diferente; nas palavras do próprio Conrad, he was one of us. Parece que desde muito cedo percebeu que, aonde quer que fosse, a sombra do passado o alcançaria e renovaria as angústias do famigerado pulo, numa espécie de mito do eterno retorno. A imaginação moral não dá espaço para o esquecimento, e de que adianta tanta imaginação moral uma vez que a patifaria já foi feita? Jim reconhece que o máximo que pode esperar é uma redenção parcial, a redenção de quem já se sabe perdido.

Falando em imaginação moral, pensa-se logo em Conrad porque muito de seus personagens parecem forjados com isso em mente. Ao explicar a gênese de Nostromo, seu romance de 1904, lembra que só lhe ocorreu contar a história do roubo de um carregamento de prata numa pequena república na América do Sul (cujos rumores ouviu pela primeira vez quando era ainda um jovem marinheiro) quando pensou em fazer do larápio um sujeito de bom caráter - a perfectly nice fellow. Nostromo em realidade é bem mais que isso; é respeitado e admirado em toda a republiqueta fictícia de Costaguana por sua bravura e lealdade. Reputação somente pode não parecer suficiente; a constância do caráter de Nostromo é-nos assegurada diretamente: He is a man with the weight of countless generations behind him and no parentage to boast of... Like the People.

Nostromo é então encumbido de salvar um carregamento de prata da sanha dos revolucionários locais. Circunstâncias forçam-no a esconder o tesouro numa ilha próxima até que as coisas voltem ao normal, mas prefere dizer que o carregamento foi perdido no mar para poder posteriormente resgatá-lo - e enriquecer - lentamente. Nostromo tenta em vão expiar parte de sua culpa ao exortar contra os interesses materiais dos donos da mina: os estrangeiros, os ricos, que prosperam às custas da lealdade de seus subordinados. Ora, Nostromo sabe que é tão ou mais culpado que o mais inescrupuloso dos capitalistas; ao seduzir a jovem Giselle, avisa que ela pretende casar-se com um ladrão.

A perspectiva de ter de voltar inúmeras vezes à ilha onde o tesouro se encontra enterrado (para recuperá-lo a pouco e pouco) é também, está claro, angustiante. Nostromo não poderia ele mesmo ser mais explícito: considera-se escravo da prata, escravo da ilha:
A transgression, a crime, entering a man's existence, eats it up like a malignant growth, consumes it like a fever. Nostromo had lost his peace; the genuineness of all his qualities was destroyed. He felt it himself, and often cursed the silver of San Tomé. His courage, his magnificence, his leisure, his work, everything was as before, only everything was a sham. But the treasure was real. He clung to it with a more tenacious, mental grip. But he hated the feel of the ingots. Sometimes, after putting away a couple of them in his cabin -- the fruit of a secret night expedition to the Great Isabel -- he would look fixedly at his fingers, as if surprised they had left no stain on his skin.
Já pouco antes de expirar tenta se livrar do segredo que lhe pesa tanto. A prata é incorruptível, assim como a imaginação que lhe nega um sono (eterno ou não) tranquilo: But there is something accursed in wealth. Señora, shall I tell you where the treasure is? To you alone... Shining! Incorruptible!

24 novembro, 2007

O Fenômeno Hemingway

É sempre grande a tentação de procurar defeitos na obra de autores com quem não nos identificamos pessoalmente. Quanto mais sabemos sobre a biografia do sujeito mais corremos esse risco, é claro. O caso de Ernest Hemingway (1899-1961) é bem ilustrativo nesse sentido: trata-se de um grande escritor cuja figura me parece detestável em todos os sentidos imagináveis. Se eu tivesse de compilar uma listinha de celebridades artísticas que eu gostaria de conhecer, Hemingway apareceria por último (OK, penúltimo, sempre há a Lispector). Por quê?

Há detalhes biográficos que por mais condenáveis ainda suscitam uma espécie de volúpia da excentricidade: um certo excesso de autoritarismo, opiniões extremadas sobre determinados assuntos, hábitos atípicos etc. Mas há outros que primam pela mesquinharia e que não poderiam nos afetar senão de maneira negativa: invejinha de escritor, ingratidão e mendacidade. Do primeiro mal Hemingway dá-nos exemplo ao se mostrar inconformado com o sucesso de F. Scott Fitzgerald, apenas alguns anos mais velho que ele, enquanto seus originais eram sucessivamente rejeitados por jornais e revistas americanos. Quanto ao segundo, temos o testemunho das quatro mulheres que tiveram a infelicidade de se casar e se dedicar a alguém tão egoísta (o enredo de Across the River and Into the Trees, penúltimo romance de Hemingway, foi inspirado por uma jovem por quem ele se apaixonou já depois de ter-se casado pela quarta vez). Quanto ao último, só podemos lembrar as muitas anedotas mentirosas que Hemingway contava sobre suas experiências de guerra (e de caça, e de pesca). De fato, Hemingway, principalmente a partir da década de 50, passa a construir uma imagem de selvagem solitário (já não tira mais a barba); participa de safáris na África, isola-se em Havana, Key West ou Idaho, onde viria a se suicidar. Mas, curiosamente, nunca consegue abandonar o estilo bon vivant parisiense, Paris que ele tornava a visitar sempre que a selva começava a aborrecê-lo.

Mas e daí? O fato é que escreveu alguns livros impressionantes (The Sun Also Rises é um dos romances mais emocionantes, no bom sentido, que eu já li na vida) e mesmo quem o odeia como escritor (não conheço muitos) não pode negar a influência avassaladora que ele impôs na prosa em inglês a partir de 1926. Todo mundo parece dever um pouco a Hemingway. Mas como pode ele ser emocionante em determinados momentos se seu estilo é conhecido pelo motivo contrário, a secura, a economia das palavras? No prefácio que Carpeaux escreveu para um livro de Hemingway (e que me motivou a escrever esse post), Vida, obra, morte e glória de Hemingway (1971), ele dá o exemplo, já citado por mim aqui antes, das últimas linhas do The Sun Also Rises. Jake Barnes sofreu um ferimento na guerra que o deixou impotente (o próprio Hemingway feriu-se nos testículos, apesar de não ter ficado impotente) e Lady Brett é sua amiga, um tanto pervertida, diga-se, que apesar da perversão não parece conseguir esquecê-lo. Vão aí as últimas palavras do livro:
"Oh, Jake," Brett said, "we could have had such a damned good time together."
"Yes," I said. "Isn't it pretty to think so?"
O diálogo é simples como todos os outros do livro, como todos os outros de todos os livros, e ainda assim temos a inescapável sensação de que o isn't it pretty to think so? remete a toda a amargura acumulada até então; o trecho final funciona como uma espécie de função recursiva que explode duma só vez a emotividade que nunca é, nem nesse final catártico, expressa explicitamente. Não é preciso dizer mais nada porque já entendemos, lembra Carpeaux. Não admira, então, que os trechos finais de vários livros de Hemingway sejam memoráveis. Temos o "e o velho sonhava com leões" de The Old Man and the Sea e o não menos impressionante desfecho de Farewell to Arms. Frederick Henry é ferido em guerra (por estilhaços de um shrapnel, assim como o autor) e acaba conhecendo Catherine Barkley no hospital, por quem se apaixona. Quando ele é chamado pra lutar novamente ela confessa que já espera um filho seu. Frederick decide dar 'adeus às armas' e fugir com Catherine. Mas há complicações no parto e Catherine morre. Ele entra no quarto do hospital para vê-la pela última vez. Últimas palavras do romance:
It was like saying good-bye to a statue. After a while I went out and left the hospital and walked back to the hotel in the rain.

20 novembro, 2007

Mestre Carpeaux

Uma das melhores maneiras de maldizer o Brasil é observar que se o austríaco Otto Karpfen (1900-1978) tivesse ido pros EUA em vez vindo pra cá, ele hoje seria uma figura nacionalmente respeitada (o artigo sobre Carpeaux na Wikipedia em inglês é maior que na em português). Apesar do ambiente pouco receptivo -- de que ele nunca reclamava, é claro, além de exaltar as boas amizades que teve oportunidade de fazer --, foi o maior crítico de literatura que o Brasil já teve ou vai ter. Carpeaux também foi um dos primeiros a escrever sobre música erudita no país: o Uma Nova História da Música foi editado pela Ediouro como O Livro de Ouro da História da Música. A monumental História da Literatura Universal, originalmente publicada em 8 volumes, está hoje fora de circulação editorial. O esforço para imprimir a obra completa de Carpeaux, empreendimento conjunto da Topbooks e da Univercidade, é louvável mas anda a passo de tartaruga: até agora só dispomos dos 2 volumes referentes à obra ensaística de Carpeaux; o primeiro reúne os ensaios publicados em livros e o segundo os publicados em periódicos. É desse segundo volume que falo agora.

O primeiro impulso (pelo menos foi o meu) de quem tem em mãos um volume tão heterogêneo é buscar aqueles ensaios sobre autores mais conhecidos e que parecem ter sido os preferidos de Carpeaux: Conrad, Kafka (ó surpresa, Carpeaux também foi o primeiro a escrever sobre Kafka no Brasil), Dante, Shakespeare, T. S. Eliot, Goethe etc. Os ensaios mais memoráveis, naturalmente, estão todos no primeiro volume (penso principalmente em O Mistério de Joseph Conrad e Visão de Graciliano Ramos), mas Carpeaux faz o que pode no curto espaço de 4 ou 5 páginas. Depois passamos aos temas brasileiros: Graciliano Ramos, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Machado de Assis. Música? Há Bach, Verdi, Wagner, Schubert, Haendel, Wolf. Artes plásticas? Há El Greco, Goya, Van Dyck.

Imagino que Carpeaux tenha irritado muita gente com tanta erudição. Não à toa é comumente lembrado, com um despeito mal disfarçado e quando é lembrado at all, pelos seus conhecimentos 'enciclopédicos'. Escrevendo sobre Hemingway, confessa mui candidamente que o volume de contos Winners Take Nothing (de que eu, aliás, nunca tinha ouvido falar) é o único livro do americano que ele 'só' leu uma única vez. Também observa que costuma reler a Comédia de Dante todos anos. Seria um snob? Outra coisa que costumava irritar seus interlocutores (irritou até o nosso Gustavo Corção) é o estilo desajeitado de quem foi aprender o português depois dos 40 anos. Paulo Francis costumava dizer que o inglês de Conrad parece uma tradução do polonês, e talvez não seja exagero dizer que o português de Carpeaux parece, sei lá eu, alemão traduzido. Momento-exercício-psicológico-barato: como pode um austríaco gago (se brincar é simpatizante fascista...) que mal aprendeu o português querer nos dar lições sobre a nossa e todas as outras literaturas? Não se sabe ao certo como, mas o fato é que Carpeaux podia.

O estilo, já em si um tanto caótico por não ser de um native-speaker, não é dos mais atraentes ao jovem leitor por outros motivos: Carpeaux propõe uma série de questões e só as retoma bem mais tarde, quando ocorre de retomá-las efetivamente. Expõe opiniões antagônicas sem que saibamos ao certo se são suas ou de algum oponente imaginário. Numa época em que o que mais se advoga é o discurso seco e direto, Carpeaux surge com um emaranhado inextricável de caminhos alternativos. Parece ser o natural de quem já leu tanto. No ensaio Meu Dante, Carpeaux enumera as diversas perspectivas com que ele mesmo já encarou a grande obra do florentino: a factual, a mística, a historicista, a sentimental, a biografista. Qual delas seria a mais correta, se é que faz sentido falar em correção? Provavelmente uma síntese 'barroca' de todas elas.

São raros, pelo menos nesses volumes de ensaios, os momentos em que Carpeaux se deixa levar por uma veia mais polêmica. Normalmente prefere calar, e a ausência de certos nomes em seus ensaios é bastante conspícua. Mas esse não é o caso de Aldous Huxley. Em A erudição de Mr. Huxley, Carpeaux sugere que ele consulte o volume XXIII da Encyclopaedia Britannica, essa que é, segundo o próprio Huxley, sua leitura predileta. Ao afirmar que um criminoso não pode ser bom poeta, Huxley confessa ignorar o verbete referente ao poeta francês (e facinoroso) François Villon (1431-1463). Seria Carpeaux um snob? É mais provável que tenha ido ao país errado.

25 agosto, 2007

De Lilliput ao País dos Houyhnhnms

Informa-me um conhecido que o Carpeaux, em algum dos volumes de sua História da Literatura Universal, teria traçado um perfil psicológico de Jonathan Swift (1667-1745) e concluído que o sujeito sofria de alguma disfunção erétil. Só assim, explicaria Carpeaux, poderíamos dar conta de tanto azedume satírico. A princípio pode parecer estranho que se escrutine o desempenho amoroso de um padre, mas depois de uma leitura de Gulliver's Travels a coisa não parece tão absurda assim: Swift atirava para todos os lados, e a impudicícia de seus contemporâneos não poderia deixar de ser um alvo. Ainda bem.

As duas primeiras viagens de Lemuel Gulliver, para Lilliput (cujos habitantes não ultrapassam as seis polegadas ou aproximadamente 15 centrímetros) e para Brobdingnag (onde a situação se inverte e Gulliver passa a ser a miniatura), ilustram bem a discussão sobre o livrinho do Burke de que falei há uns posts. O Burke listava smallness como uma das características de tudo quanto é belo, e inclusive citava o nosso cacoete de atribuir o diminutivo aos objetos de nossa afeição: coisinha, amorzinho etc. É sugestivo que as moças sejam geralmente menores que seus pares (a ponto de 'pequena' ter também se transformado num apelativo carinhoso), apesar de algumas, talvez temendo representar um exagero liliputiano, tentarem disfarçar até isso. Exemplo pessoal: um dia desses perguntei à minha ex que altura exatamente ela tem e recebi como resposta um "1,58 e meio!". Ora, quem quer ter meio quer ter um inteiro!

Já não podemos falar de beleza em relação aos gigantes de Brobdingnag, por mais que eventualmente eles se revelem pessoas fofinhas. Gulliver observa com nojo indisfarçável a nudez de uma das gigantes:
I must confess no object ever disgusted me so much as the sight of her monstrous breast, which I cannot tell what to compare with, so as to give the curious reader an idea of its bulk, shape and colour. It stood prominent six foot, and could not be less than sixteen in circunference. The nipple was about half the bigness of my head, and the hue both of that and the dug so varified with spots, pimples and freckles, that nothing could appear more nauseous: (...). This made me reflect upon the fair skins of our English ladies, who appear so beautiful to us, only because they are of our own size, and their defects not to be seen but through a magnifying glass, where we find by experiment that the smoothest and whitest skins look rough and coarse, and ill coloured.
Mas é contra a torpeza moral dos seus (com 'seus' quero dizer o homem europeu moderno) que a sátira de Swift se volta com fúria particular. Ainda que não se aceite o princípio segundo o qual todo bom humor está sempre na oposição, o certo é que Swift não se arrisca e acaba construindo uma ode ao passado e às tradições. Na ilha de Glubbdubdrib, em que lhe é dada a oportunidade de conferenciar com qualquer morto de sua preferência, Gulliver dá um depoimento desconsolado:
I was chiefly disgusted with modern history. For having strictly examined all the persons of greatest name in the course of princes for an hundred years past, I found how the world had been misled by prostitute writers, to ascribe the greatest exploits in war to cowards, the wisest counsel to fools, sincerity to flatterers, Roman virtue to betrayers of their country, piety to atheists, chastity to sodomites, truth to informers. How many innocent and excellent persons had been comdemned to death or banishment, by the practising of great ministers upon the corruption of judges, and the malice of factions. How many villains had been exalted to the highest places of trust, power, dignity, and profit: how great a share in the motions and events of courts, councils, and senates might be challenged by bawds, whores, pimps, parasites, and buffoons: how low an opinion I had of human wisdom and integrity, when I was truly informed of the springs and motives of great enterprises and revolutions in the world, and of the contemptible accidents to which they owed their success.
Difícil não tentar imaginar o que Swift diria do Brasil atual. Provavelmente a mesma coisa, só que publicado na forma de estudo documentado, não na de sátira.

A última viagem de Gulliver, a essa altura quase se despedindo de seus últimos resquícios de sanidade, é para o país dos Houyhnhnms (é, eu sei que não dá pra pronunciar isso), seres idênticos aos nossos cavalos mas dotados de grande inteligência. Os Yahoos, que por outro lado são idênticos aos humanos à exceção da quantidade de pêlos e do tamanho das unhas, são os selvagens da ilha, tratados com justo desprezo por todos os Houyhnhnms. Gulliver eventualmente se convence de que a raça humana, com que teve de conviver penosamente por boa parte de sua vida, não é nada além de uma vertente um pouco mais desenvolvida (e por isso mesmo mais perigosa) dos Yahoos. Apesar do desejo de permanecer lá por toda a vida, sua aparência, tão próxima da dos Yahoos, acaba levando à sua expulsão da ilha. A sátira chega ao fim, mas não sem um derradeiro aviso:
But the Houyhnhnms, who live under the government of reason, are no more proud of the good qualities they possess, than I should be for not wanting a let or an arm, which no man in his wits would boast of, although he must be miserable without them. I dwell the longer upon this subject from the desire I have to make the society of an English Yahoo by any means not insupportable; and therefore I here entreat those who have any tincture of this absurd vice [pride], that they will not presume to come in my sight.

22 agosto, 2007

Reforma Ortográfica

Uma das vantagens do pessoal de exatas é dar a devida importância a novidades como essa da reforma ortográfica: a saber, nenhuma. Não dão importância pelo motivo errado, mas isso é outro problema; já fico contente por ter de ouvir a respeito apenas en passant, com um ou outro bocejo dando o tom da conversa. Uma discussão acalorada sobre a desimportância pedagógica das consoantes mudas definitivamente não faz meu tipo de debate intelectual. Os reformistas de plantão deviam ouvir o conselho de Lincoln que vai ao lado. Como se vê, não é de hoje que essa mania desenfreada de mudanças inspira suspeitas.

O certo é que continuarei acentuando idéia, assembléia etc., e o trema eu já não usava porque nem sei onde fica isso no meu teclado. Quanto às consoantes mudas, não há dúvida de que nossos colegas portugueses saem perdendo. Sempre tive a impressão de lidar com uma língua remendada ao ter de escrever, numa mesa frase, Egito, em vez de Egipto, e egípcios; fato, em vez de facto, e factual. Sempre há quem pense nas criancinhas, na hercúlea dificuldade que há em escrever algo que não se pronuncia (numa insinuação involuntária de que o brasileiro é incapaz de aprender o inglês, ou, pensando bem, quase qualquer outra língua). Deviam primeiro alfabetizá-las pra depois pensar nesses detalhes.

Meu único consolo é que surge mais uma oportunidade pra implicar com o Saramago. O velhinho insiste em que seus livros sejam publicados no Brasil com a ortografia lusitana. Estou curioso pra ver que impulso vai prevalecer, o do estilista metido a besta ou o do escrevinhador politicamente correto. É pelo bem das criancinhas, Saramago!

10 agosto, 2007

Fomos Enganados

Todo mundo sabe que os dois maiores embustes da literatura nacional chamam-se Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Sempre que surgem aquelas listinhas de 'não li e não gostei', fico tentado a citar o nome de ambos, mas fico só na tentação porque já li alguns livros deles. Especificamente falando da Lispector, li dois livros de contos -- Laços de Família e A Legião Estrangeira -- e uma novela, a última publicação dela, A Hora da Estrela, um dos piores livros que já li na vida. Há alguns bons contos nos dois primeiros, principalmente no Legião, mas ocorre que muita gente escreve bons contos e nós não temos tempo pra ler todos os livros do mundo. É preciso estabelecer prioridades.

Meu objetivo com esse post é provar que a Lispector não merece ser lida lançando mão apenas de critérios completamente arbitrários e alheios a qualquer corrente histórica da chamada crítica literária. Não analisaremos enredos e personagens, estilo ou qualquer tipo de escolha estética, profundidade psicológica ou perspicácia filosófica, a possibilidade de epifanias ou transportes místicos. Tudo isso não ultrapassa a superfície do problema, e temo que as contribuições de um Matthew Arnold ou de um Otto Maria Carpeaux seriam de todo inúteis nesse caso. É necessário, antes de tudo, observar como ela segurava o cigarro, como ela cortava o cabelo, como cruzava as pernas numa poltrona, como se comportava na cozinha ou na cama etc.

Por isso fui procurar uma entrevista dela. Acima vai a primeira parte, de 5, de uma concedida ao Julio Lerner em 1977, poucos meses antes de ela morrer. Tentem aguentar o primeiro minuto inteiro, em que o apresentador fala um monte de maluquices: o tom surreal tende a continuar na própria entrevista. A primeira coisa a se observar é que, para Lispector, tudo é complicado, ou pelo menos é essa a impressão que ela quer passar. Sua produção literária era 'intensa', 'caótica' e 'fora da realidade... da vida'. Podia até ser, mas isso não é algo que se diga numa entrevista, entendem? Logo depois: 'sou tímida e ousada ao mesmo tempo'. Não lembra os nomes das publicações em que saíram seus primeiros contos. Não é uma escritora profissional. Silêncios prolongados. Quando escreve se comunica com o mais secreto de si mesma. Entendem?

O erro mais comum do Lispector-fanboy é tentar explicar o contexto e o sentido dessas declarações. Sem dúvida é possível encontrar um sentido pra maioria delas, até sem muita dificuldade. Mas o crucial é perceber que não há como suportar, muito menos ler, alguém que, numa entrevista, diz ser tímido e ousado ao mesmo tempo. Isso é trabalho para escritores de orelhas de livro ou resenhistas. Somos aqui forçados a tomar uma decisão importantíssima: ou ela veste essa carapuça de afetação apenas pra escrever e dar entrevistas, o que já seria em si ridículo, ou era assim sempre, o que nos leva a lamentar a sorte de seu marido. Não dá pra deixar de imaginar o sujeito pedindo algum favor mais libidinoso e obtendo como resposta um 'sou ousada, mas ao mesmo tempo tímida' ou um 'agora não posso, estou entretida com um diálogo com a parte mais secreta de meu ser'.

A Lispector sofre do que gosto de chamar 'síndrome de mulherzinha', que corresponde, em linguagem popular, a uma frescura generalizada com laivos de sofisticação. Trata-se de um mal que ameaça a carreira literária de qualquer moça e que eventualmente destruiu a de muitas, como Virginia Woolf, Cecilia Meireles e, por pouco, Lygia Fagundes Telles, que no final das contas só escapou porque lia muito Edgar Poe e Dostoievski. Rachel de Queiroz foi a única que esteve sempre imune. Fomos enganados.