24 junho, 2008

Fight Club

Inventei de rever esse filme ontem porque me asseguraram que ele seria mais que simples diversão (como se isso fosse ruim). Cheguei à mórbida conclusão de que ou ele é tomado como simples diversão ou estamos danados.

Quando nos informamos sobre a impressão que o filme deixou nas pessoas, em adolescentes principalmente, percebemos que ela é quase sempre de concordância irrestrita. O próprio narrador (Edward Norton) diz que é 'dificil discordar' da lógica de Tyler Durden quando este ameaça a vida de um balconista que não seguiu seu sonho de ser veterinário. Quando a seita passa a arquitetar pequenos atentados terroristas, a sensação de 'ops, fomos longe demais' só aparece quando um membro do grupo (Bob) é baleado.

Não li o livro de Chuck Palahniuk que deu origem ao filme e por isso não sei até que ponto vai a 'redenção' final do narrador. No filme, ela é meramente instintiva: destruir prédios corporativos, depredar patrimônio público e vandalizar a cidade é 'demais', devemos parar. O filme consegue o prodígio de fazer com que a audiência simultaneamente concorde com Tyler Durden até o final e simpatize com o 'basta' do narrador. Quem está errado, afinal?

Mais ou menos como quem lê Crime e Castigo e se esquece da segunda parte (o castigo), quem vê esse filme tende a só lembrar a revolta de Durden. Se nos pedissem uma citação que define o filme:
Man, I see in Fight Club the strongest and smartest men who've ever lived. I see all this potential, and I see it squandered. God damn it, an entire generation pumping gas, waiting tables; slaves with white collars. Advertising has us chasing cars and clothes, working jobs we hate so we can buy shit we don't need. We're the middle children of history, man. No purpose or place. We have no Great War. No Great Depression. Our Great War's a spiritual war…our Great Depression is our lives. We've all been raised on television to believe that one day we'd all be millionaires, and movie gods, and rock stars. But we won't. And we're slowly learning that fact. And we're very, very pissed off.
Não digo que essa memória fragmentária não faz justiça ao filme: a revolta de Durden é realmente a parte mais atraente do filme (assim como o crime de Raskolnikov é a parte mais atraente do livro), ou, como eu dizia no início, boa diversão. A partir do momento em que se quer tratá-la como algo mais, surge uma série de perguntas meio enfadonhas e totalmente óbvias, do tipo: 'por que os membros do Fight Club são the smartest men who ever lived?' 'O que impede homens tão inteligentes de deixarem de ser frentistas ou garçons?' 'Qual seria uma ocupação digna no entender de alguém cujo maior feito é coordenar uma seita terrorista?'

A guerra deles (membros do Fight Club) não é bem espiritual, ou melhor, eles apenas gostariam que ela fosse. O culto à resistência à dor tenta, creio eu, emprestar algum elemento de ascetismo oriental, mas a pancadaria funciona muito mais como válvula de escape do que como princípio disciplinador. Isso fica claro quando lembramos que o narrador passou a dormir como um bebê depois que criou o clube.

A impressão final é a de que todo o desenrolar do filme é consequência de uma maciça crise de ennui do narrador. A negação do material (a princípio a crítica ao materialismo cego é simpática aos olhos de qualquer pessoa normal) não os leva à afirmação do espiritual, mas à negação de tudo. Como pode alguém ser avesso ao materialismo ao mesmo tempo em que confessa que o mundo se resume à matéria? É a teologia do nada, vulgo niilismo. O pior é que esse tipo de coisa ainda nos impressiona.

19 junho, 2008

De Olhos Bem Fechados

Sempre vi com certa suspeita a manutenção de hábitos reconhecidamente excêntricos. Falo de coisas do tipo dormir em pé, malhar de madrugada ou substituir água por coca-cola. Num mundo em que todo mundo quer ser único (isso é absurdo, já que é óbvio que somos únicos), esses hábitos, ainda mais quando alardeados aos quatro ventos, parecem forçação de barra. Mas eis que quis o destino que eu adquirisse um.

Meu hábito excêntrico é gostar de dormir com a luz acesa. Não é tão raro assim; tenho pelo menos uns dois colegas que também gostam. Fico pensando (por muito tempo) em algo que justifique isso não porque acho que exista algo que justifique, mas porque é divertido. A explicação canônica é que dormir de luz acesa se assemelha a dormir de dia, e dormir de dia é sempre bom, pelo menos quando não se faz isso normalmente. Outra explicação é que se tem a impressão de estar sempre alerta (parece que a luz não permite que seu sono se aprofunde), e eu sempre quis ter um sono como o daqueles cowboys que dormem com um olho aberto.

Uma coisa é certa: a luz prolonga o período de torpor contemplativo que antecede o sono propriamente dito. Já cheguei a várias decisões momentosas nesses períodos e quero crer que elas não teriam sido possíveis caso eu tivesse perdido consciência minutos antes. Exemplos de algumas dessas decisões: cortar o cabelo no dia seguinte, passar a comer frutas, estudar algum assunto, chegar a um diagnóstico para a atual condição da humanidade etc.

Outra vantagem são os sonhos. Passei a sonhar bem mais depois que resolvi deixar a luz acesa. São sempre sonhos de uma luminosidade sempiterna. De ontem pra hoje sonhei com uma moça de dentes branquíssimos, tão brancos que eu tinha de encolher os olhos pra poder enxergá-los; eles emitiam aqueles raios de luz em forma de flecha. O sol também tem presença recorrente: a lâmpada cilíndrica vai se achatando e ficando mais robusta até se transformar numa esfera perfeita. O mais comum, porém, são as cenas de guerra. Já sonhei que estava numa praia (sol a pino) em que a única barraca era a minha, e havia um sujeito só pra me servir cerveja. De repente vários carros-anfíbio surgiam na costa e soldadinhos pulavam deles, destruindo todo o cenário logo atrás de mim. Também já participei de várias batalhas em descampados ensolarados. Gostaria de sonhar com a luz que cegou Dante no Paraíso, por isso mantenho a luz acesa.

10 junho, 2008

Fetiche Libertário

As muitas restrições impostas arbitrariamente à liberdade humana fizeram, imagino eu, com que se criasse o fetiche libertário. Ou isso ou imaginar que imposições naturais, como o nome ou o sexo com que nascemos, já seriam suficientes pra criá-lo. Excetuando nossa época, em que cirurgias de mudança de sexo são financiadas pelo Estado, o consenso parece indicar que esse tipo de rebelião é ridículo. Parando pra pensar, muito do que nos é mais essencial nunca foi oferecido como opção.

Nomear personagens é dificuldade de quase todo escritor; o que se espera é que o nome soe como se tivesse sido imposto pela Realidade, não pelo arbítrio de quem escreve. Tudo o que nos interessa num personagem interessante é o que está fixo nele. Um personagem que é só potência pra mudar não é um personagem, é um boneco sem nome. Lord Jim só me interessa até hoje porque nunca conseguiu esquecer o dia em que abandonou o S. S. Jedah. Se conseguisse não seria menos humano, mas não haveria motivo pra escrever um livro sobre ele.

Sempre me acusam de determinismo ou conformismo quando falo dessas coisas. Em verdade só me oponho ao determinismo oposto, o de achar que nada pode ficar determinado. A liberdade que se enaltece em panfletos políticos não é, infelizmente, negativa: ela é movimento puro, daí que resulte destrutiva muitas vezes. A pedra não deixa de ser livre por não se mexer; deixa de sê-lo por não poder se mexer. Hoje não somos tão livres pra obedecer (pensem nas mulheres) ou pra permanecer inertes (pensem nos jovens). Por que o movimento libertário se recusa a apadrinhar os obedientes e os inertes?

Acho que uma pedra contribui mais para a felicidade humana que o ministro Temporão. Uma pedra não faz bobagens e é até capaz de nos divertir de quando em vez. Eu vou além da pedra: critico o ministro Temporão. É muito gratificante poder sanar um pouco de minha dívida para com a humanidade com essas poucas linhas. E o que é melhor: não precisei mudar em nada.

01 junho, 2008

Marcha da Maconha

É, eu sei que estou bem um mês atrasado. Na verdade eu nem pretendia comentar o assunto não fosse uma série de pequenas coincidências. Por ocasião do fim do Wunderblogs, resolvi conhecer alguns dos blogs de lá, já que só conhecia o do Alexandre. Visitei primeiro o do FDR, talvez na esperança inconsciente de ver o Delano sendo malhado publicamente. Não encontrei nada do tipo, mas tem muita coisa interessante por lá. Esse post, porém, chamou minha atenção por afirmar que Reinaldão Azevedo acha que quem defende a legalização das drogas devia ser preso. Depois fui conhecer o blog do Filthy McNasty, de que também gostei, e que também traz um post sobre o assunto: esse aqui. McNasty está de acordo com FDR e ainda comenta a respeito da idéia de uma lei contra a apologia ao crime.

Fui atrás de ler os posts do Reinaldo Azevedo quase certo de que ele tinha exagerado mesmo (já tive a mesma impressão em outras ocasiões). Não vi exagero nenhum. O Azevedo não acha que quem defende a legalização das drogas deve ser preso; ele acha que quem vai às ruas incentivando o consumo de drogas deve ser preso. Eu também acho, e parece que a maioria das famílias brasileiras acha o mesmo. Tanto FDR quanto McNasty vêem nisso cerceamento da liberdade de expressão, mas quem disse que a liberdade de expressão não deve ser regulada? O sujeito que entra na C&A pelado pra protestar contra os altos preços das roupas deve ser tolerado? O maconheiro que passa na minha rua cantando as maravilhas da maconha deve ser tolerado? No meu entender, não.

Espero que isso não pareça um simples jogo de palavras: ser a favor da legalização das drogas é diferente de participar de uma passeata. Escrever um artigo expondo dados favoráveis à legalização (assim como fizeram Milton Friedman e inúmeros outros) é diferente de empunhar cartazes melodramáticos. Convenhamos, o ônus da prova está do lado de lá da cerca legal. Ninguém mais que os defensores da legalização tem o dever de informar com cuidado a população. No site da Marcha da Maconha, porém, não consigo encontrar uma única nota sobre os danos que a erva pode causar à saúde de quem fuma. Quando confrontam números, é de maneira leviana (no ritmo do post passado, fico sem saber se se trata de burrice ou de má-fé): por exemplo, ao lembrar que o álcool ou o tabaco matam mais que a maconha ou a cocaína. Ora, se o status legal de uma substância é tão irrelevante a ponto de não influir sobre o número de consumidores (é essa a resposta que recebemos ao lembrar que o tabaco mata mais porque é mais consumido), por que organizar uma passeata pela legalização?

McNasty declara finalmente que a lei [contra a apologia ao crime] essencialmente cerceia o direito de o cidadão dizer o que pensa. Na verdade ela cerceia o direito de o cidadão dizer o que pensa da maneira que ele bem entender. Não sei de onde surgiu essa idéia maluca segundo a qual a liberdade de expressão deve sobrepujar todo o resto. Isso corresponde a dizer que idéias, ou a maneira com que são apresentadas, não têm consequências, ou, se têm, devem ser desprezadas frente aos caprichos do opinador. Até os liberais mais exaltados estavam cientes do equilíbrio precário entre a liberdade individual e a ordem coletiva. Como diria Richard Weaver, ideas have consequences, e as consequências no caso da legalização das drogas estão longe de ser desprezíveis.