21 dezembro, 2006

Civilização e Barbárie

Se decidimos adotar a representação esquemática sugerida por A. C. Bradley - em seu Shakespearean Tragedy (1904) - para o herói das tragédias de Shakespeare, encontraremos em Otelo um representente típico. Primeiro temos a apresentação, o delineamento do caráter do herói: no caso do mouro de Veneza, conhecemos um combatente de coragem e de compleição moral impecável. Mesmo quando sugerem que teria empregado algum tipo de feitiçaria (em cujos efeitos mágicos o mouro, como sabemos, acreditava) para conquistar os amores de Desdêmona, Otelo mantém-se circunspecto e prova sua inocência sem maiores dificuldades. Sua suposta firmeza de caráter (tida como breathtaking por um crítico) dá o tom do primeiro ato, passado ainda em Veneza.

O segundo estágio apontado por Bradley é, evidentemente, o conflito central, the heart of the matter. É nesse estágio que o herói costuma experimentar uma antítese de si mesmo: Otelo, inicialmente sereno e dono de si, dá vazão a um comportamento irascível e destrambelhado; chega a ter um ataque epiléptico na frente de Iago e a esbofetear a mulher em público. Maynard Mack, no ensaio The Jacobean Shakespeare, lembra que esse expediente é recorrente na tragédia shakespeareana. Assim Lear, de início a própria imagem da autoridade e da resiliência, perde completamente a compostura (e boa parte da sanidade), mais tarde, por ter de enfrentar, praticamente sozinho, uma tempestade. Assim também Hamlet, apresentado como dono de the courtier's, soldier's, scholar's, eye, tongue, sword, terá sua posição sensivelmente comprometida até o final da peça. Essa transição se dá paralelamente a um deslocamento geográfico (que, segundo lembra Mack, também é comum em outras tragédias): da cidade-modelo Veneza para a virulenta Chipre, acoçada, e é por isso que Otelo vai para lá, por um ataque turco. Mack comenta:
Furthermore, though it would be foolish to assign to any of the journeys in Shakespeare's tragedies a precise symbolic meaning, several of them have vaguely symbolic overtones - serving as surrogates either for what can never be exhibited on the stage, as the mysterious processes, leading to psychic change, which cannot be articulated into speech, even soliloquy, without losing their formless instinctive character; or for the processes of self-discovery, the learning processes - a function journeys fulfill in many of the world's best known stories (the Aeneid, the Divine Comedy, Tom Jones, etc.)
A grande verdade é que a crítica shakespeareana chegou ao ponto de querer encontrar uma correspondência simbólica até para o mais inexpressivo clown. Nada mais natural. Convém, então, escolher as que mais nos interessam (evidências textuais, é sempre bom lembrar, não atrapalham). Em se tratanto de Othello, a oposição Veneza/Chipre ou, se quisermos extrapolá-la, de vez que Chipre está sendo atacada mas ainda se encontra sob controle, Veneza/Império turco parece carregar mais que um simples vague symbolic overtone. Dá-nos impressão disso a Veneza tal como descrita nos inícios da peça. Brabantio, pai de Desdêmona, ao receber a notícia (uma das artimanhas do Iago) de que estava a ser assaltado, demorou, com razão, a acreditar:
What tell'st thou me of robbing? This is Venice;
My house is not a grange [isolated house].
Mais característica ainda é a descrição que Otelo dá, também no primeiro ato, de suas peripécias mundo afora. São tão variadas e amedrontadoras que, além de chamar a atenção de Desdêmona para as bravuras do mouro, fazem-nos o favor de descrever bem como é a vida fora de "Veneza":
Wherein I spoke of most disastrous chances,
Of moving accidents by flood and field,
Of hairbreadth scapes i' th' imminent deadly breach,
Or being taken by the insolent foe
And sold to slavery, of my redemption thence
And portance [manner of acting] in my travel's history,
Wherein of anters [caves] vast and deserts idle,
Rough quarries, rocks, and hills whose heads touch heaven,
It was my hint to speak. Such was my process.
And of the Cannibals that each other eat,
The Anthropophagi, and men whose heads
Grew beneath their shoulders. (...)
A ida de Otelo para Chipre, corresponde, então, ao início do segundo estágio apontado por Bradley. É claro que a mudança geográfica faz-se acompanhar por uma mudança 'psicológica' no mouro. Enquanto Iago e Desdêmona permanecem fiéis ao modelo apresentado no início da peça (o primeiro com suas tramas diabólicas e a segunda com sua bondade), Otelo gradativamente sucumbe às maquinações de seu ancient. O desfecho é nosso velho conhecido e, quando Otelo ensaia adentrar o terceiro estágio descrito por Bradley, Desdêmona já está morta. Esse terceiro estágio se configura como uma tentativa de regresso ao modelo inicial, ainda que ele custe, como é o caso em questão, a vida de três ou cinco inocentes. Ao reconhecer seu erro, Otelo se compara aos bárbaros por ele combatidos há não muito:
(...) Then you must speak
Of one that loved not wisely, but too well;
Of one not easily jealous, but, being wrought,
Perplexed in the extreme; of one whose hand,
Like the base Indian, threw a pearl away
Richer than all his tribe; (...)
Eis que sua própria profecia se cumpriu (But I do love thee! And when I love thee not, / Chaos is come again): trocou a civilização pela barbárie e por isso preferiu morrer.