18 novembro, 2006

A Primeira Barca

O Auto da Barca do Inferno (1516?) é a primeira das Barcas do português Gil Vicente (1465-1536), precedendo a Barca do Purgatório (1518) e a Barca da Glória (1519). Aqui, acompanhamos as desventuras de um Fidalgo, de um Onzeneiro, de um Parvo, de um Sapateiro, de um Frade, de uma Alcoviteira, de um Judeu, de um Procurador, de um Corregedor e de um Enforcado, sendo todos eles, à exceção do Parvo e do Judeu (que nem pelo Diabo foi aceito), condenados a remar as águas infernais com o Capeta.

Curioso que boa parte deles, malgrado a não pequena patifaria que fizeram em vida, chegam ao "profundo braço de mar, onde estão dous batéis: um deles passa pera a glória, o outro pera o inferno" em que se passam os três autos com a convicção de que seguirão serenamente para o Paraíso. Seja pelo status social (como é o caso do Fidalgo), pelas vantagens financeiras (Onzeneiro), pela autoridade perante a lei (Procurador e Corregedor), pela importância eclesiástica (Frade) ou pelo castigo recebido em vida (Enforcado), entre outros motivos, todos se acreditam merecedores de uma estadia bem confortável no além. Em tempo, todos adentram o batel do Diabo, conformados.

Vão abaixo alguns trechos.

1) Conforma-se o Fidalgo

Fidalgo
Ao inferno toda via,
Inferno há hi [aí] pera mi?
ó triste que em quanto vivi
nunca cri que o hi havia,
tive que era fantesia,
folgava ser adorado,
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.

Venha esta prancha e veremos
esta barca de tristura. (...)

2) O Sapateiro tenta se safar

Sapateiro
Como poderá isso ser
confessado e comungado?

Diabo
E tu morreste excomungado
e não nos quiseste dizer,
esperavas de viver,
calaste dez mil enganos,
tu roubates bem trinta anos
o povo com teu mister.

Embarca eramá pera ti
que há já muito que te espero

Sapateiro
Digo-te que re-não quero.

Diabo
Digo-te que si re-si.

Sapateiro
Quantas missas eu ouvi
não m'hão elas de prestar?

Diabo
Ouvir missa, então roubar
é caminho pera aqui.

3) Discurso de quatro cavaleiros da ordem de Cristo, mortos na África.

Cavaleiros
À barca, à barca segura
guardar da barca perdida
à barca, à barca da vida.

Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória por Deus memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca mortais
porém na vida perdida
se perde a barca da vida.