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17 julho, 2009

Mais poesia brasileira

Desta vez com Cecilia Meireles, uma grata redescoberta. Romanceiro da Inconfidência deve ter surpreendido os contemporâneos pela forma relativamente comportada -- os 'romances', 84 neste romanceiro, são feitos em redondilhas (versos de 5 ou 7 silábas) com rimas nos versos pares. A forma medieval cabe bem: a temática épico-lírica é o de que Meireles precisava para narrar uma sublevação que, em tese ao menos, foi também épica (em se tratando de história brasileira, sabemos que não é bem assim). A declamação dessas composições era usualmente acompanhada por instrumentos musicais, daí a necessidade da rima.

O tema apequena o livro, é claro, mas está longe de estragá-lo. O que há de épico no alferes Tiradentes é não tanto sua coragem, que não chego a questionar, quanto sua precipitação. Quando a derrota já está certa, o poeta nem sequer pode lamentar a força do adversário, condição necessária para um embate honesto: lamenta (ou deveria lamentar) o despreparo e a mesquinharia do grupo de revoltosos. Não à toa meus romances preferidos nada têm que ver com o enredo em si. Vamos a um deles:
Romance LXXIV ou Da Rainha Prisioneira
Ai, a filha da Marianinha!
Ai, a neta do Rei D. João!
- suave princesa de maõs postas,
resplandecente de oração...
Que lindas letras desenhava
a sua delicada mão:
grandes verticais majestosas,
curvas de tanta mansidão!
MARIA - nome de esperança,
MARIA - nome de perdão,
- a melancólica princesa
livre de toda ostentação,
que há de subir a um trono amargo,
como todos os tronos são!

A que crescera entre as intrigas
de validos, nobres, criados,
a que conversara com os santos,
a que detestara os pecados!
A que soube de tanto sangue,
por engenhos de altos estrados,
quando a nobreza sucumbia,
nos fidalgos esquartejados!
A que vira o pasmo do povo
e a estupefação dos soldados...

A que, amarrada em seus protestos,
pusera silenciosos brados
em grandes lágrimas abertas
nos olhos, para o céu voltados...

A que um dia fora aclamada,
envolta em vestes lampejantes,
onde o que não fosse ouro e prata
era de flores de brilhantes...
A que de olhos tristes mirara
paisagens, miltidões, semblantes,
sentindo a turba alucinada,
em vãos transportes delirantes,
sabendo que reis e reinados
são sempre penosos instantes...
A que em missal e crucifixo
a mão pusara, e aos circunstantes
fizera ouvir seu juramento,
sob estandartes palpitantes!

A que mandara abrir masmorras,
a que desprendera correntes,
a que escutara os condenados
e libertara os inocentes;
a que aos sofredores antigos
levava consolos urgentes;
a que salvava os desvalidos,
a que socorria os doentes;
a que dava a comer aos pobres
com suas mãos clementes;
a que chorava pelas culpas
de seus mortos impenitentes,
e suplicava a Deus piedade
para seus ilustres parentes!...

A que se preservara isenta
sobre os desencontros humanos:
sem soldados e sem navios,
entre os irados soberanos
de Espanha, de França e Inglaterra
e os rebeldes americanos
- com os olhos além deste mundo,
nessa evasão de meridianos
que não compreendem os ministros
- e muito menos os tiranos -
de quem vê na terra a falência
de todos os mortais enganos...
A que achava, no ódio, o pecado.
A que achava, na guerra, os danos...

A que tentara erguer-se a esferas
de Arte, de Ciência e Pensamento...
A que ao serviço de seu povo
dedicara cada momento...
A que se acreditara livre
de qualquer decreto sangrento...
- quando os horizontes moviam
grandes ondas de roxo vento;
- quando em cada livro se abriam
outras leis e outro ensinamento;
- quando o tempo da realeza,
em súbito baque violento,
desabava das guilhotinas,
sobre um grosso mar de tormento.

Ei-la, sem pai, marido, filhos,
confessor, - ninguém - acordada
em seu Palácio, à densa noite
erguendo voz desesperada,
perguntando pelo seus mortos,
pela sua ardente morada...
Ei-la a sentir o Inferno vivo,
a família toda abrasada,
e os Demônios com rubros garfos,
esperando a sua chegada
E seu corpo já transparente,
e já dentro dele mais nada.
E os corcéis da Morte e da Guerra
a escumarem na sua escada.

Ei-la a estender pelas paredes
sua desvairada figura...
A que, embora piedosa e meiga,
pelo poder da desventura,
degredava e matava - longe -
com sua clara assinatura...
Ei-la aos gritos, à sombra verde
dos jardins de aquosa frescura.
Clama por ela Inconfidentes
que a funda masmorra tortura.
E ela clama aos ares esparsos...
E a Liberdade que procura
é por flutuantes horizontes,
no fusco império da loucura.

Ai, a neta de D. João Quinto,
filha de D. José Primeiro,
presa em muros de fúria brava,
mais do que qualquer prisioneiro!
- Terras de Angola e Moçambique,
mais doce é o vosso cativeiro!
- Transparentes, vossas paredes,
prisões do Rio de Janeiro!
Ai, que a filha da Marianinha
jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo, luzeiro...
Prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro...

15 julho, 2009

Carta a Stalingrado

Segundo rezam os manuais de literatura, A Rosa do Povo, publicado, se não falha a memória, em 1945, é o livro de Carlos Drummond de Andrade mais explicitamente dedicado aos problemas sociais que abalavam o mundo à época. Não sem boa dose de curiosidade mórbida, resolvi ler o livro. Há muitos daqueles poemas ligeiros, engraçadinhos, que nos dizem pouco apesar do estardalhaço que faziam, e há também poemas mais cuidadosamente trabalhados, escritos por um Drummond que deveria ter sido mas não foi (meus preferidos são os narrativos, principalmente O Caso do Vestido e O Elefante). E, como todos já temíamos, encontramos algumas loas aos soviéticos, das quais escolhi a mais constrangedora pra postar aqui. Não conheço a biografia dele pra saber se chegou a se retratar em algum momento (o certo é que teve tempo mais que suficiente), mas isso é indiferente agora. O mal do artista brasileiro é errar até quando acerta.
Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.

28 dezembro, 2008

Por um Natal sem direitos

Natal e os chamados direitos humanos aparecem com frequência na mesma frase: todos têm direito a um Natal feliz, sem fome, sem frio etc. Fiquei pensando: por quanto tempo a humanidade pôde passar o Natal sem ouvir falar em direitos humanos? A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, é de 1948. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dos facinorosos franceses, é de 1789. A Declaração de Independência dos EUA é de 1776 e a Carta de Direitos inglesa é de 1689. Acho que não seria exagero concluir, então, que por pelo menos 1500 anos (dC) a idéia de que o ser humano já nasce com direito a isso ou àquilo soaria estranha aos ouvidos mais benevolentes. E, nada obstante, foi nesse período que inventaram o hospital e a universidade pública.

Acho que poucas coisas comprometem mais a felicidade que o pretenso direito à felicidade. Se me aparecem com um papel garantindo o meu direito à felicidade irrestrita, qualquer existência aquém de um paraíso na Terra vai me parecer uma tremenda usurpação. Os americanos foram mais modestos (e mais felizes) ao garantir apenas o direito à procura da felicidade, que aliás pode ser tão medonha quanto se queira.

A mania de garantir direitos a torto e a direito cairia por terra se se dessem ao trabalho de analisar o problema pelo outro lado, o dos deveres. Se eu tenho direito à felicidade, alguem tem o dever de concretizá-la e, fora o meu anjo da guarda, nunca ouvi falar de semelhante cargo. Pior que a impraticabilidade da idéia são as doses cavalares de ressentimento que ela inspira, o ressentimento que Nietzsche quis imputar justamente àqueles que se opunham a ela, os que inventaram a caridade não por dever (no sentido legal), mas por princípio.

Desejo um bom Natal a todos: não que vocês tenham direito a um bom Natal, mas porque desejo que assim seja.

18 março, 2008

Resposta Cristã (2): O Caso Galileu

Quando pedimos exemplos da 'histórica' oposição entre Igreja e ciência, é comum ouvirmos dois nomes: Giordano Bruno (1548-1600) e Galileu Galilei (1564-1642). Ainda que tivéssemos aí dois exemplos legítimos, já seria difícil explicar como uma oposição que se verifica apenas duas vezes pode ser histórica. Com o primeiro não será necessário perder muito tempo: Bruno foi condenado por questões teológicas (uma delas é que Bruno negava a divindade de Jesus Cristo), e não por defender o sistema heliocêntrico. Ainda que se conclua que sua condenação foi injusta, ela nada teve que ver com ciência. Já Galileu foi condenado a prisão domiciliar por um período e morreu com quase 78 anos, de causa naturais. Em que consistiu a 'perseguição' cristã nesse caso?

Tanto Dinesh D'Souza, no What's So Great About Christianity, quanto o Thomas E. Woods, no How the Cacholic Church Built Western Civilization, discutem detalhadamente a questão. Ao contrário do que todos imaginam, o trabalho de Galileu foi recebido com entusiasmo e admiração por autoridades da Igreja. De fato, astrônomos jesuítas confirmaram, via telescópio, as descobertas de Galileu. Após visitar Roma, onde foi recebido pelo papa Paulo V em pessoa, escreveu a um amigo: "I have been received and shown favor by many illustrious cardinals, prelates, and princes of this city." Quando em 1612 Galileu defendeu pela primeira vez, por escrito, o sistema de Copérnico, recebeu cartas de congratulação do cardeal Maffeo Barberini, futuro papa Urbano VIII.

Ocorre que as evidências então disponíveis, apesar de apontarem para o sistema de Copérnico como melhor hipótese (melhor nesse caso significa mais simples, mais elegante), não permitiam uma conclusão definitiva. A Igreja não se opôs à exposição das novas idéias contanto que fossem apresentadas como o que realmente eram: hipóteses plausíveis, não fato consumado. Galileu não só acreditava que o sistema heliocêntrico tal como apresentado por ele era literalmente verdadeiro como fez questão de expô-lo nesses termos. Nesse processo acabou cometendo erros hoje considerados risíveis, como explicar o fenômeno das marés pelo movimento da Terra (quando em realidade é a Lua a responsável). Galileu tampouco conseguia responder à objeção geocêntrica segundo a qual, caso a Terra se movesse ao redor do sol, a paralaxe ficaria evidente em nossas observações das estrelas.

Todo o caso parece ficar reduzido a uma afobação intelectual por parte de Galileu. É como se Einstein declarasse que a velocidade da luz é sempre a mesma e constante e ponto final, e negasse que na realidade trata-se de uma hipótese necessária pra Teoria da Relatividade. Aliás, a Teoria da Relatividade conforma-se aos fatos assim como o sistema de Copérnico o faz, com a diferença de que nem sequer há uma teoria rival que se lhe aproxime em testabilidade empírica (o heliocentrismo, por outro lado, tinha o geocentrismo como oponente, que, apesar de menos prático, explicava através de combinações de epiciclos cada vez mais complicadas os movimentos dos astros). Ainda assim, qualquer professorzinho de ensino médio sabe que não se pode conferir caráter factual à hipótese da velocidade da luz.

E quanto à alegação de que o heliocentrismo contradiz trechos bíblicos? Cardeal e um dos trinta e três doutores da Igreja, Roberto Bellarmino (1542-1621) declarou na época:
If there were a real proof that the sun is in the center of the universe, that the earth is in the third heaven, and that the sun does not go around the earth but the earth round the sun, then we should have to proceed with great circumspection in explaining passages of Scripture which appear to teach the contrary, and rather admit that we did not understand them than declare an opinion to be false which is proved to be true. But as for myself, I shall not believe that there are such proofs until they are shown to me.
Eis que, curiosamente, o exemplo de conduta cientificamente idônea vem de um cardeal e não de Galileu. Tomás de Aquino já advertira alguns séculos antes que caso fique provado que uma interpretação bíblica contradiz a natureza, o erro está, obviamente, na interpretação. A verdade da Escritura é inviolável, mas não se pode dizer o mesmo das interpretações que dela aferimos.

Em 1624, mesmo após desobedecer a recomendação da Igreja de tratar o heliocentrismo apenas como hipótese, Galileu foi novamente recebido em Roma, dessa vez pelo próprio Urbano VIII, de quem recebeu duas medalhas por mérito científico. "Urban VIII told the astronomer that the Church had never declared Copernicanism to be heretical, and that the Church would never do so." Galileu insistiu no mesmo erro em 1632, quando publicou um diálogo ridicularizando o geocentrismo (que era apoiado, até sua morte em 1601, pelo ainda célebre astrônomo Tycho Brahe). Só então a Igreja o proibiu de escrever sobre heliocentrismo.

A versão corrente segundo a qual Galileu teria sido torturado após enfrentar, sem sucesso, a intransigência ignara de autoridades eclesiásticas não passa de uma piada de mau gosto, como se vê. Os inimigos da Igreja parecem estar sempre incomodados com tanto 'revisionismo'. Alas, o revisionismo só se faz necessário quando antes dele houve muito distorcionismo.

31 outubro, 2007

A Força Irresistível da Lógica

Numa palestra (chamada Individualism: True and False) dada na University College de Dublin, em 17 de dezembro de 1945, F. A. Hayek, constrangido com o mal emprego do termo 'individualismo', resolveu estabelecer uma divisória definitiva entre o que ele entendia por individualismos 'verdadeiro' e 'falso'. Uma das características que facilitariam essa distinção seria o credo, por parte dos falsos individualistas, no predomínio absoluto da razão humana no processo de construção da nossa cultura política. Os verdadeiros individualistas (Hayek refere-se principalmente a Edmund Burke e Alexis de Tocqueville), por outro lado, reconhecem que muito desse processo advém de tendências fora do controle e até incompreensíveis para um indivíduo isolado num determinado período histórico. O verdadeiro individualismo, então, não é aquele que atribui ao indivíduo um conhecimento transcendental das consequências de suas próprias atitudes, mas apenas aquele que acredita ser o indivíduo o mais indicado para aproximar-se desse conhecimento, quando e se ele for possível.

A princípio pode parecer estranho (principalmente para o estudante brasileiro, intoxicado desde muito cedo com odes à Ilustração) que logo um economista se posicione contra o monopólio da razão. Não é que Hayek não goste da razão ou que prefira deixar tudo ao deus-dará; apenas gostaria de impor-lhe os limites cabíveis e, diga-se, inescapáveis. Ele argumenta que o individualismo racionalista -- de um Rousseau, por exemplo -- tende apenas a práticas socialistas já que, se existe mesmo um método racional indiscutível para organizar nossas vidas, alguém vai ter de ser 'escolhido' para divisá-lo e aplicá-lo à revelia das inevitáveis discordâncias. Nesse sentido, o racionalismo é nada mais que um convite à revolução, que parte do pressuposto de que alguém suficientemente inteligente e 'racional' seria capaz de transformar dum só golpe todas as nossas instituições.

Tendo isso em mente, não fica muito difícil entender por que o triunfo da razão humana se manifesta com clareza exemplar nos movimentos totalitários do século passado, desbancando até os tão exaltados avanços científicos e tecnológicos. Hannah Arendt (1906-1975) não cansa de enfatizá-lo em sua genealogia do totalitarismo, The Origins of Totalitarianism. É curioso que figuras como Hitler e Stalin, sobre quem tanto já foi escrito, ainda figurem no imaginário popular como ditadores intempestivos e dados a mudanças repentinas de planos; seriam mentes imprevisíveis, irracionais, tresloucadas. Parece que as picuinhas domiciliares ganharam mais atenção que os vastos e meticulosos planos de dominação, engendrados e avançados com uma coerência somente encontrável em tratados de lógica:
According to Stalin, neither the idea nor the oratory but "the irresistible force of logic thoroughly overpowered Lenin's audience." The power, which Marx thought was born when the idea seized the masses, was discovered to reside, not in the idea itself, but in its logical process which "like a mighty tentacle seizes you on all sides as in a vise and from whose grip you are powerless to tear youself away; you must either surrender or make up your mind to utter defeat."
A capacidade de criar um mundo fictício e coerente em si mesmo nada tem de irracionalismo; muito pelo contrário, a abstração necessária para compor entes lógicos sem que eles existam no mundo sensível é um exercício de razão pura; aqui não há conhecimento empírico para nos auxiliar. Triângulos perfeitos não existem nem nunca existiram, mas ninguém nega a razoabilidade das definições de ângulo interno, comprimento de lado etc. e das consequências que daí advêm. Os mais incrédulos poderiam perguntar: como justificar logicamente a necessidade que o Partido tinha de acusar e punir inocentes que muitas vezes podiam provar a própria inocência? Certamente, dirão, temos aí um exemplo de vontade de poder desenfreada, uma paranóia injustificável em termos racionais. Também é comum, pra reforçar esse argumento, citar algumas esquisitices dos últimos anos de Stalin, como mandar um bedel provar sua comida por medo de envenenamento ou achar que havia algum gás letal entrando pelas frestas de seu escritório. Ou talvez o processo seja um pouco mais calculado, como sugerido por Arendt:
We are all agreed on the premise that history is a struggle of classes and on the role of the party in its conduct. You know therefore that, historically speaking, the party is always right (in the words of Trotsky: "We can only be right with and by the party, for history has provided no other way of being in the right."). At this historical moment, that is in accordance with the law of history, certain crimes are due to be commited which the Party, knowing the law of history, must punish. For these crimes, the Party needs criminals; it may be that the party, though knowing the crimes, does not quite know the criminals; more important than to be sure about the criminals is to punish the crimes, because without such punishment, History will not be advanced but may even be hindered in its course. You, therefore, either have commited the crimes or have been called by the party to play the role of the criminal -- in either case, you have objectively become an enemy of the Party. If you don't confess, you cease to help History through the Party, and have become a real enemy.
Não chega a surpreender, então, que membros da SS mantivessem lealdade irrestrita ao Reich mesmo quando descobriam que eram, por algum motivo, inimigos do Reich. Não faria sentido -- não seria lógico -- questionar a autoridade do Partido simplesmente porque circunstâncias históricas os colocaram do lado dos adversários. O encadeamento lógico do comportamento totalitário é tão rigoroso que não se pode escapar de um mundo de finalismos: todo passo, todo gesto ou palavra tem um objetivo final grandioso, o nec plus ultra da condição humana na Terra. Todos eles são inteligíveis e seu impacto pode ser cuidadosamente aferido graças à superior inteligência do novo homem. Heinrich Himmler, chefe da SS, "quite aptly defined the SS member as the new type of man who under no circumstances will ever do 'a thing for its own sake'".

Hitler, Lenin, Stalin etc., esses prodígios da lógica, acabaram ficando conhecidos por terem um raciocínio lógico pouco desenvolvido, essa que para os racionalistas é a maior das desgraças. De qualquer maneira eles devem ser lembrados como testemunhos do que a razão humana é capaz de alcançar (ou destruir). Nesse ponto acho que estamos todos de acordo: não é pouca coisa.

25 outubro, 2007

O Óbvio Ululante

Quando Milton Friedman (1912-2006) escreveu, com o auxílio de sua mulher Rose, Capitalism and Freedom (1962), ainda havia nos EUA quem duvidasse seriamente da capacidade que o mercado privado tem de dinamizar a economia mundial. No prefácio para a edição de 1982 do livro, com Ronald Reagan eleito presidente no ano anterior, já se podia falar em uma mudança generalizada de mentalidade. No prefácio para a edição de 2002, Friedman já podia declarar sem muita falsa modéstia que suas idéias libertárias, tão violentamente combatidas em 62, tinham ascendido ao nível de teoria oficial.

Friedman costumava dizer que o colapso da URSS em particular e do bloco comunista em geral fez mais que qualquer livro seu para desiludir os adeptos da economia planificada. O fato é que, apesar de hoje a economia coletivista não merecer crédito de ninguém (à exceção de Fidel Castro, Hugo Chávez e uns outros tantos luminares da inteligência mundial), a intervenção estatal na economia dos EUA ainda chega a quase 40% (contra uns 15% antes da WWII) do PIB. Como dizia o próprio Friedman, a batalha intelectual pode até ter sido ganha, mas, na prática, o paternalismo estatal ainda é uma realidade com poucas chances de ser transformada.

O livro parte do pressuposto da escola austríaca de economia (principalmente Hayek, que é citado com frequência), repetido aqui no Brasil por Roberto Campos, de que não pode haver liberdade política sem liberdade econômica. O caminho inverso, liberdade econômica sem liberdade política, é até possível (dá-nos exemplo disso a China), apesar de que a influência da primeira tende a forçar a segunda.

É nesse sentido que Friedman vê com muita desconfiança qualquer intervenção do governo na economia. Num balanço de vantagens e desvantagens da atuação estatal num determinado setor, a primeira desvantagem, anterior a qualquer consideração mais específica, é a tendência que a concentração de poder tem de limitar a liberdade individual. Ele subscrevia e repetia com entusiasmo o saying de Lord Acton que vai ao lado, Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely. A limitação à liberdade individual não se restringe, porém, ao plano econômico, apesar de ser essa a consequência mais visível e imediata. Quando o governo determina que, digamos, o trigo só pode ser vendido a determinado preço, costuma-se considerar apenas a exclusão da possibilidade que as partes interessadas tinham de negociar o trigo a um preço que lhes fosse conveniente. Ocorre que o recrudescimento do poder estatal é cumulativo e ganha impulso com novas conquistas, além de ser de difícil reversão: basta ver a resistência que figuras adeptas do laissez-faire, como Reagan, tiveram de enfrentar para diminuir minimamente a presença estatal na economia.

Tudo o que vai acima, mesmo que muitas vezes ignorado na prática, é hoje considerado o óbvio ululante no meio acadêmico. Dados o conhecimento empírico e a perspectiva histórica hoje disponíveis, nem adolescentes têm como justificar o desconhecimento da impraticabilidade da economia planificada. Mas Friedman defende a retirada da presença estatal mesmo em situações que muitos liberais a considerariam natural, como na regulamentação de diferentes profissões (até a do médico!) e no controle das drogas.

Desde já antecipo que, mesmo como admirador, não vejo muito sentido em aceitar sem maiores cuidados a visão que Friedman tinha a respeito de questões não integralmente ligadas à economia. Digo isso porque essa costuma ser a postura diante de um ancião de 94 anos que já acertou tanto. Em 2002, na cerimônia em que Friedman recebeu a Medal of Freedom, o presidente Bush -- brincando, é claro -- observou que Rose é a única pessoa que sabemos ter ganhado uma discussão com seu marido.

Sem dúvida que há argumentos econômicos favoráveis à legalização das drogas (o principal deles é a dificuldade básica que os governos de hoje e sempre têm de fazer valer as leis), mas a questão envolve fatores morais e culturais que ultrapassam o escopo meramente econômico. Quando confrontado com duas situações que se lhe afiguram economicamente equivalentes, Friedman opta de imediato por aquela que não envolva a presença estatal. Trata-se da inegavelmente necessária política do mal menor. A intenção, nesse como em qualquer outro caso, é sem dúvida boa, mas corre o risco de enveredar pelo extremo oposto do caminho que ele mesmo denunciou em 62:
A outra ameaça é bem mais sutil. É a ameaça interna vinda de homens de boas intenções e de boa vontade que nos desejam reformar. Impacientes com a lentidão da persuasão e do exemplo para levar às grandes reformas sociais que imaginam, estão ansiosos para usar o poder do Estado a fim de alcançar seus fins e confiantes em sua capacidade de fazê-lo. Entretanto, se subirem ao poder, não conseguirão realizar seus fins imediatos e, além disso, produzirão um estado coletivo diante do qual recuarão horrorizados e do qual serão as primeiras vítimas. A concentração do poder não é tornada inofensiva pelas boas intenções de quem a estabelece.

18 outubro, 2007

O Neo-Iluminista Merquior

O entusiasmo com que se lê José Guilherme Merquior (1941-1991) pela primeira vez é bem compreensível entre nós: raramente encontramos, hoje, outros nomes que se aproximem dele em termos de honestidade intelectual, inteligência e erudição. Atualmente é lembrado como simples polemista ou como 'aquele sujeito que escrevia discursos para o Collor', como se o emprego de ghost-writers por parte de políticos fosse algo novo ou degradante.

Merquior combateu com a elegância e a paciência de sempre alguns dos maiores mitos do século 20: marxismo, freudismo e formalismo (tanto literário como filosófico), sendo este último um tema recorrente de seus derradeiros anos. Já falei aqui sobre o De Praga a Paris, de 1986, acerto de contas dele com os estruturalismos e pós-estruturalismos franceses. Como não poderia deixar de ser, foi devidamente perseguido por isso, e hoje vários de seus livros nem sequer são editados, obrigando o leitor interessado a peregrinações ao sebo mais próximo.

A evolução do pensamento de Merquior fica mais clara no volume Crítica, que reúne ensaios do período 1964-1989. Enquanto alguns ídolos da juventude são gradualmente superados (principalmente Heidegger e Lucáks), cresce, cada vez mais conspícua, uma fé um tanto ou quanto misteriosa no progresso e na primazia da razão. Merquior declara-se neo-iluminista e mal consegue disfarçar (se é que tenta disfarçar) a antipatia por poetas que, reconhecidamente grandes, nutrem uma visão pessimista da modernidade. E é assim que chega a considerar o 'reacionário' T. S. Eliot apenas um grande poeta menor.

Se me permitem alguns exercícios de psicologia barata, diria ser perfeitamente natural a crescente aversão de Merquior ao esoterismo tipicamente moderno. Além do formalismo estético, argumenta ele, esse esoterismo leva invariavelmente a uma condenação em bloco da sociedade tecno-liberal moderna. É esse modernismo que condena a priori a modernidade que irrita Merquior mais que qualquer outra coisa. Não surpreendentemente, afasta-se dos 'obscurantismos' da filosofia de Heidegger, da literatura 'abissal' de Joyce e do simbolismo de Mallarmé. Eu dizia que essa aversão é natural por Merquior ter convivido tão de perto, e por tanto tempo, com o estruturalismo francês da década de 60. Para alguém que leu tudo que há pra ler de Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard et caterva e ainda conseguiu escapar de uma congestão cerebral, é apenas lógico esperar uma extrema sensibilidade a charlatanices linguísticas e a irracionalismos cabeça-de-vento.

Ocorre que, ao denunciar mui devidamente esse irracioanlismo tresloucado, Merquior parte num átimo para uma defesa da razão iluminista como elemento restaurador. Além da palavra 'razão', 'progresso' é uma das que se repetem com mais insistência em seus ensaios. Não deixa de ser curioso que o implacável crítico do marxismo, o 'ópio dos intelectuais' nas palavras de seu professor e amigo Raymond Aron, se deixe levar por vaguidades como 'marcha da civilização' ou 'inexorável progresso histórico'. Em As Idéias e as Formas, lemos:
Esta delirante culpabilização da racionalidade científica e do progresso histórico -- que mal difere, queira ou não Adorno, dos anátemas oraculares do irracionalismo de direita, em Jung ou Heidegger, por exemplo -- aponta para uma curiosa patologia do humanismo. Entre a Renascença e a Ilustração, entre Leonardo e Goethe, o humanismo ocidental era, basicamente, inclusivo: uma ideologia que incorporava o progresso social e intelectual, a Reforma, a ciência, a revolução burguesa. Em constraste com isso, muito humanismo moderno se fez excludente: repele o mundo que o cerca, excomunga as massas e a civilização.
A acusação de humanismo excludente estaria perfeitamente justificada caso estivesse dirigida a sanguessugas da modernidade à Foucault, que se nutrem de seus mais caros pressupostos apenas para condená-la com um nojinho incontido. Merquior, porém, acaba se revelando um inveterado otimista, cético de qualquer crítica sistemática dirigida contra sua querida modernidade. O ceticismo propugnado por ele, indispensável até certo ponto, atinge um paroxismo que o impede de enxergar outra coisa senão negativismo no catolicismo (a religião positiva por excelência) de T. S. Eliot ou no 'reacionarismo' de Irving Babbitt. Aliás, qualquer consideração um pouco mais demorada sobre temas transcendentais corre o risco de receber a solene desaprovação racionalista de nosso neo-iluminista.

No fim das contas a impressão que temos é que -- apesar de ter lidado de frente, e denunciado com tanto brilhantismo, o que há de mais desprezível na intelectualidade ocidental moderna -- Merquior acreditava numa redenção iminente graças ao inevitável triunfo da razão humana. Em homenagem aos dez anos da morte de Merquior, seu amigo José Mário Pereira escreveu um emocionante depoimento (leia aqui) em que é citado um episódio que me parece emblemático da passagem de seu amigo por esse mundo:
Curiosamente, sempre que saíamos do escritório do advogado, então na Praça Pio X, Merquior pedia para irmos até a igreja da Candelária. Postava-se a admirar o interior, fazendo comentários estéticos, e nunca falava em religião ou fé.
Merquior entrou na Igreja e entendeu tudo o que lá havia para ser entendido, menos as questões relacionadas a religião ou fé. A fé dele, a fé no progresso, não permitiu que ele visse que a ameaça dos que querem destruir sua Igreja é real e premente.

21 setembro, 2007

Paranóia ou Mistificação?

Escrevi há uns meses o post Duas Histórias (leia aqui), em que se faz uma comparação entre as versões de dois livros (a saber, o História para o Ensino Médio, dos brasileiros Claudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, e o Modern Times, do historiador inglês Paul Johnson) sobre a Revolução Russa. Por mais sacrílego que seja misturar Paul Johnson e Claudio Vicentino numa mesma discussão, a comparação não é de todo despropositada porque o livro de Vicentino é um dos mais utilizados em escolas de ensino médio brasileiras, inclusive na minha, uma escola particular e de inclinações católicas. Surge naturalmente a pergunta: por que diabos uma escola católica adotaria um livro abertamente marxista? Primeiro porque nunca ouvi falar de um livro didático de história, no Brasil, que não seja marxista. Segundo porque o catolicismo vagabundo de hoje nem sequer se dá ao trabalho de verificar o que estão ensinando pras suas crianças, se é que perceberia algo de errado se se desse ao trabalho.

Pois bem. O livro do Vicentino, por ter uma exposição muito grande, ainda mantém um mínimo de decoro: gramática e ortografia são respeitadas; procura-se encadear idéias, por mais absurdas que sejam, com um mínimo de respeito pela sanidade mental do leitor etc. Ainda assim não escapa de vários erros factuais, como dizer que a Revolução Russa teve apoio popular desde sempre, ou dizer que todo o poder foi transferido para o proletariado, quando na realidade estave sempre restrito a uma cúpula cada vez menos numerosa do Partido, dentre muitos outros. Coisas que, em países um pouco mais desenvolvidos, já são obviedades desde a década de 40.

Não é o caso do Nova História Crítica, do Mario Schmidt, que tem gerado tanto estardalhaço desde a publicação do artigo de Ali Kamel n'O Globo (leia aqui o artigo com trechos do livro). Aqui a mistificação é escancarada. A impressão que dá é que o autor se sente protegido pela indiferença (e/ou burrice) de pais e educadores, a ponto de estar suficientemente confortável pra propugnar toda sorte de baboseira e mentira, como defender a revolução cultural chinesa, a ditadura de Fidel Castro ou alegar que não havia desigualdades sociais na URSS. Num país onde escolas 'elitizadas' e 'católicas' adotam livros mendazes e defasados em mais de meio século, não chega a admirar que o livro de Schmidt tenha chegado, via MEC, às mãos de 750 mil alunos da rede pública. É sempre necessário que surja um caso grotesco como esse para que a esquerdopatia do ensino brasileiro volte a ser comentada, como se a análise dos livros 'melhores' (como o de Vicentino) já não fosse suficiente. Muito merecidamente, o caso já teve repercussão internacional (veja aqui). Orgulho de ser brasileiro? Erm...

Ser considerado paranóico é a sina de quem quer que critique a universidade (ou o ensino em geral) brasileiro, principalmente na área de humanas, onde o desastre é consideravelmente maior. Na última vez em que caí na besteira de discutir com um universitário (ciências sociais) esquerdinha, perguntei se eles liam José Guilherme Merquior, um dos maiores cientistas políticos brasileiros e respeitado (depois que morreu, é claro) até pela própria esquerda. Descobri que liam, sim: um trecho de 50 páginas de De Praga a Paris, livro que, en passant, foi escrito em inglês porque não havia quem quisesse publicá-lo por aqui. Já vi outro livro seu, Michel Foucault (edição esgotada), em que mostra metodicamente a fraude que foi Foucault, sendo citado por Roger Kimball, mas nunca por um brasileiro. Já que somos todos paranóicos e confundimos bananeiras com agentes comunistas, o máximo que podemos fazer é procurar por indícios de doutrinação em exames de vestibular e análogos.

É o que tem feito um dos mais notórios paranóicos do jornalismo brasileiro, Reinaldo Azevedo. Recentemente, em seu blog (v. link ao lado), ele publicou uma pequena compilação de exemplos tirados das seguintes instituições: escolas públicas do Paraná, Enem (nacional), Universidade Federal do ABC, Universidade Federal de Pernambuco e Mackenzie, além da rede pública nacional (caso do livro de Schmidt). Não seria muito difícil multiplicar os exemplos. Na USP, Gilberto Freyre foi esquecido e Florestan Fernandes é estudado com afinco. Na UFG, Freyre também foi relegado ao ostracismo. No instituto de tecnologia onde estudo o departamento de humanidades recomenda textos de Florestan Fernandes, Milton Santos e Eric Hobsbawn, mas nada de Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Roberto da Matta.

Quando Monteiro Lobato deu o título Paranóia ou Mistificação a seu famoso artigo, havia a possibilidade de que o alvo de suas críticas fosse ambos, como de fato era. Enquanto o brasileiro só conseguir enxergar mistificação em exemplos caricatos como o livro de Schmidt, o senso comum estará fadado a ser confundido com paranóia.

19 agosto, 2007

Platão vs. Aristóteles

Comecei a falar do Copleston num outro post e a coisa acabou se transformando num texto sobre o debate com o Russell. Minha intenção original era escrever sobre o livro dele (o primeiro de 9 volumes, cada um deles com umas 500 páginas), A History of Philosophy. Parece existir um consenso no sentido de considerar essa obra a melhor história da filosofia escrita em inglês. Copleston justifica a existência de 'mais uma' história da filosofia ao direcionar seu livro a seminaristas católicos, o que necessariamente implica um ponto de vista, digamos, não destrutivo em relação à filosofia antiga e principalmente em relação à medieval. Como não poderia deixar de ser, Copleston também se queixa do desprezo com que é tratado hoje o legado medieval. É aquela mania que, nas palavras de Mario Ferreira dos Santos, os franceses têm de saltar de Aristóteles a Descartes, os italianos de Aristóteles a Campanella e os alemães de Aristóteles a Kant, levantando problemas já resolvidos com séculos de antecedência.

Mas a nossa preocupação, pelo menos por enquanto, é com a filosofia antiga (de Tales a Plotino), tema desse primeito volume. Um dos aspectos mais perturbadores do período envolve, claro está, seus dois maiores nomes: Platão e Aristóteles. O afresco de Rafael que vai acima -- com Platão, à esquerda, apontando para o alto (supostamente para o mundo das Formas ou Idéias), e Aristóteles para baixo, ressaltando o caráter empírico das coisas --, apesar de coerente, parece ter gerado muita confusão com o tempo. Copleston repete com insistência que, nada obstante as muitas divergências entre ambos, não há discordância quanto a qual seria o verdadeiro objeto da filosofia: a realidade metafísica, transcendente do mundo, em oposição à mera percepção sensorial.

Assim como é comum exagerarem a enfâse que Aristóteles dá ao empírico, exagera-se também o idealismo de Platão, a ponto de hoje sua filosofia ser considerada 'abstrata' e 'distante' demais, como se o sujeito só vivesse no mundo das nuvens. Inclusive procuram justificar essa idéia com a biografia dele: Platão teria se desiludido com a vida política em geral e com a democracia ateniense em particular quando seu mestre Sócrates foi condenado à morte e se tornou um recluso dado a abstrações fantásticas. Daí que muitos interpretem a imagem acima como se Platão estivesse sugerindo, antes de mais nada, um conhecimento das Formas (modelos ideais) para que só depois esse conhecimento pudesse ser aplicado à vida prática. Por exemplo, se queremos uma constituição justa para o Brasil, precisaríamos primeiro conhecer os ideais de Justiça, Coerência, Plausibilidade etc. em sua forma límpida para só depois começar a escrever. Ora, essa interpretação pressupõe que todo legislador é nada menos que Deus: só Deus teria conhecimento suficiente das Formas pra poder tomá-las como ponto de partida. O homem deve partir de manifestações mais palpáveis (e.g., estudar o exemplo de boas constituições, entender por que outras tantas foram um fracasso) e a partir daí seguir numa via ascensional que com muito custo o levaria às Formas propriamente ditas.

A maior objeção de Aristóteles à teoria das Formas é a seperação que Platão impôs entre elas e as coisas sensíveis. Se é verdade que uma constituição é tanto melhor quanto mais se aproximar do modelo de Justiça, como podem constituição e Justiça existir separadamente? Que espécie de interação existe entre elas? Qual a relação entre as Formas e o mundo sensível em geral, qual a relação das Formas entre si? Platão parece ter se debatido com esse problema (a lacuna entre o mundo das idéias e o mundo sensível) até a morte, sem solução explícita. Não ajuda muito o fato de só terem sobrevivido seus diálogos (obras populares de divulgação); todas as transcrições de suas aulas na Academia, onde se supõe que haveria um tratamento mais sistemático desses problemas, foram perdidas. De qualquer maneira Aristóteles, que foi seu aluno na Academia durantes muitos anos, conheceria eventuais soluções platônicas caso elas existissem. Muito pelo contrário, Aristóteles não só aponta esse problema como pinta a filosofia platônica em geral com traços bem grosseiros. Copleston reconhece como válida a crítica central de Aristóteles (o problema da lacuna), mas observa que muitas outras objeções são frutos de uma incompreensão (intencional ou não) do Estagirita.

Por exemplo, Aristóteles não tinha como não saber que o próprio Platão estava ciente dessa deficiência. Tentou resolvê-la, n'O Banquete, dando a entender que as Formas seriam Idéias de Deus, cuja relação com o mundo sensível se daria através da 'imitação' ou da 'participação', apesar de os termos não serem elaborados com mais rigor. Já no Timeu lemos que as Idéias existem independentemente, antes mesmo da criação do mundo, e que o Demiurgo as teria utilizado como modelo para criar as coisas sensíveis. Aristóteles parece tão entusiasmado com a sua solução para o problema (a idéia da imanência) que acaba sendo injusto com os ensinamentos do mestre. Vejam esse exemplo. Aristóteles diz:
The Forms are supposed to explain sensible objects. But they will themselves be sensible: the Ideal Man, for instance, will be sensible, like Socrates. The Forms will resemble the anthropomorphic gods: the latter were only eternal men, and so the Forms are only "eternal sensibles".
Copleston comenta:
This is not a very telling criticism. If the Ideal Man is conceived as being a replica of concrete man on the ideal plane, in the common sense of the word "ideal", as being actual man raised to the highest pitch of development, then of course Ideal Man will be sensible. But is it at all likely that Plato himself meant anything of this kind? Even if he may have implied this by the phrases he used on certain occasions, such an extravagant notion is by no means essential to the Platonic theory of Forms. The Forms are subsistent concepts or Ideal Types, and so the subsistent concept of Man will contain the idea of corporeality, for instance, but there is no reason why it should itself be corporeal: in fact, corporeality and sensibility are ex hypothesi excluded when it is postulated that the Ideal Man means an Idea.
A primeira pergunta a ser feita é: como um gênio do porte de Aristóteles incorreria numa incompreensão tão primária? Pode-se argumentar que a noção de Formas separadas dos objetos sensíveis é tão estranha ao sistema aristotélico, segundo o qual as formas são a essência imanente das coisas (e por isso estão diretamente atreladas a elas), que esse tipo de erro seguiria por tabela. Mas seria de uma ingenuidade monstruosa supor que Aristóteles não compreendia bem a filosofia de Platão; como poderia ele ter adaptado e desenvolvido diversos pontos da herança platônica se não a tivesse compreendido pelo menos superficialmente? Parece mais razoável supor que Aristóteles, convencido de determinadas insuficiências da teoria das Formas, resolveu exagerar e/ou simplificar alguns pontos com fins polêmicos ou didáticos. Assim como dificilmente escapamos à tentação de expor uma teoria que sabemos falsa com traços mais grosseiros que o que seria aconselhável, assim pareceu lícito a Aristóteles extrapolar, às vezes indevidamente, alguns aspectos da teoria em questão. Muito mais importante é o comentário que ele faz sobre a separação entre Idéias e objetos:
It must be held to be impossible that the substance, and that of which it is the substance, should exist apart; how therefore, can the Ideas, being the substance of things, exist apart? The Forms contain the essence and inner reality of sensible objects; but how can objects which exist apart from sensibles contain the essence of those sensibles? In any case, what is the relation between them? Plato tries to explain the relation by the use of terms such as "participation" and "imitation", but Aristotle retorts that "to say that they (i.e. sensible things) are patterns and the other things share in them, is to use empty words and poetical metaphors.
Aqui a crítica parece ser válida, mas Aristóteles ainda dá a entender que as Idéias são entidades dotadas de existência física, sensível, como que para deixar patente o absurdo da teoria. Ocorre que a 'separação' platônica poderia muito bem significar uma espécie de independência (em oposição a uma separação meramente espacial) e, se é verdade que ainda resta a Platão explicar a relação entre Idéias e objetos, também é verdade que Aristóteles, ao rejeitar completamente o 'exemplarismo' platônico, fica impedido de fornecer qualquer matriz transcendental que justifique a fixidez das essências. A síntese do que há de válido em Platão e Aristóteles só veio muito mais tarde, com os filósofos cristãos. Antes, é sempre bom lembrar, de Descartes, Campanella, Kant...

17 maio, 2007

Bento 16 e Tocqueville

Dentre os odiadores da religião em geral e da Igreja católica em particular, costuma-se lembrar com um risinho de superioridade o fato de a Igreja ter perdido influência na esfera política das nações cristãs, como se isso indicasse o início de um declínio inexorável que terminaria com a total supressão da influência religiosa em nossas vidas. Ninguém precisa ser muito esperto pra perceber que a secularização do Estado moderno é condição necessária para que a Igreja sobreviva. Foi o que observou Bento 16 há uns dias, e foi o que observou o francês Alexis de Tocqueville há quase 180 anos, quando falava, no seu Democracia na América (falo desse livro depois), da contribuição do cristianismo para a formação e a manutenção daquela então nova república democrática que ele tanto admirava.

Na sessão inaugural da V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, em Aparecida, o papa Bento 16 disse o seguinte:
El respeto de una sana laicidad - incluso con la pluralidad de las posiciones políticas - es esencial en la tradición cristiana auténtica. Si la Iglesia comenzara a transformarse directamente en sujeto político, no haría más por los pobres y por la justicia, sino que haría menos, porque perdería su independencia y su autoridad moral, identificándose con una única vía política y con posiciones parciales opinables. La Iglesia es abogada de la justicia y de los pobres, precisamente al no identificarse con los políticos ni con los intereses de partido.
No primeiro volume do Democracia na América, capítulo 9 (The Main Causes Which Tend to Maintain a Democratic Republic in the United States), lemos:
When a religion seeks to base its empire only upon the desire for immortality which torments every human heart equally, it can aspire to universality but, when it happens to combine with a government, it has to adopt maxims which only apply to certain nations. Therefore, by allying itself to a political power, religion increases its authority but loses the hope of reigning over all.

As long as religion relies upon feelings which are the consolation of every suffering, it may attract the human heart to itself. When it is mixed up with the bitter passions of this world, it is sometimes forced to defend allies who have joined it through self-interest and not through love; it has to repel as enemies men who, while fighting against those allies of religion, still love religion itself. Thus, religion cannot share the material strengths of the rulers without suffering some of those animosities which the latter arouse.

(...)

Religion, by uniting with different political powers, can therefore form only burdensome alliances. It has no need of their help to survive and may die, if it serves them.

11 maio, 2007

O Deus Social

A introdução do As Formas Elementares da Vida Religiosa, clássico do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), aborda a questão da categorização do conhecimento e antecipa que as categorias têm origem social. Diferentemente dos aprioristas, que acreditam serem as categorias anteriores à experiência sensível (e que por isso têm inclusive a função de condicioná-la), e dos empiristas, que preferem acreditar que elas são construídas gradativamente a partir da experiência individual, Durkheim procura suprimir as insuficiências de ambas essas visões ao atribuir toda a capacidade criativa ao convívio social. De início a idéia não parece muito convincente (ou antes parece ser um mero deslocamento do problema: o que era a priori apriorista, ou não, passou a ser a priori social), mas ao menos temos a promessa de que a tese será abundantemente demonstrada mais adiante.

O livro se proprõe a analisar a forma religiosa mais primitiva de que temos notícia, o totemismo, principalmente o australiano. O motivo é simples: se queremos entender que impulsos teriam motivado o ser humano a desenvolver as manifestações religiosas, teremos mais probabilidade de sucesso se os analisamos em sua forma mais pura possível, isto é, em sua forma mais primitiva. É por isso também que Durkheim dá enfase à variante australiana do totemismo, citando a norte-americana, mais desenvolvida e portanto menos característica, apenas de passagem, quando ela parece capaz de esclarecer algum ponto duvidoso.

O didatismo de Durkheim é realmente admirável e é bem perceptível nos trechos descritivos, em que são delineados as crenças e os ritos totêmicos, e negativos, em que se criticam as principais concepções da religião elementar. Os capítulos iniciais são dedicados à exposição de duas delas: o animismo e o naturismo. O animismo, como se sabe, procura explicar a origem do fenômeno religioso através dos seres espirituais (almas, espíritos, deuses, anjos, demônios etc.), enquanto que o naturismo enxerga nas forças cósmicas (catástrofes naturais, astros, animais, minérios etc.) o começo de tudo. Segundo o animismo, a noção de alma teria surgido através do sonho: o homem, vendo-se a si mesmo, num sonho, em ambientes desconhecidos e com pessoas estranhas, ou até mesmo em lugares que sabe serem distantes, supõe existir dentro de si uma entidade móvel que pode percorrer grandes distâncias enquanto ele dorme. Se ele sonha com algum morto, supõe inclusive que essa entidade tem o poder de se transportar ao mundo dos mortos, sempre retornando à sua morada habitual no momento em que o sonho acaba.

Durkheim se opõe a essa concepção observando, muito propriamente, que é difícil entender como uma espécie de alucinação temporária (o sonho), tenha podido dar origem a um sistema tão abrangente e de influência tão direta na vida de todos nós. Não são poucos os que admitem que a idéia de moral, noções de direito e até de ciência têm sua origem no pensamento religioso; como explicar que aspectos que viriam a moldar o que entendemos por civilização sejam todos oriundos de uma experiência vaga e confusa como o sonho, o qual poderia, de resto, ser explicado cada um à sua maneira? A principal objeção de Durkheim ao animismo diz respeito à escassez de 'objetividade' do sonho: se a religião afeta nossas vidas de uma maneira tão direta e palpável, é inadmissível que ela tenha como origem algo além do estritamente real.

O naturismo parte para o extremo oposto, o que significa dizer que as sensações geradoras do sentimento religioso são naturais e podem ser experimentadas a todo momento: a chuva, o sol, os eclipses, a movimentação das estrelas, a mudança das estações. Durkheim reconhece a sensação de maravilhamento que os fenômenos naturais são passíveis de suscitar, mas lembra que esse posicionamento de inferioridade em relação à natureza é um produto bem tardio de nossa civilização. O homem primitivo, muito pelo contrário, deveria acompanhar com certa monotonia a passagem de dias tão parecidos uns com os outros. A impressão inicial deveria portanto ser a de uma regularidade massiva, apenas ocasionalmente perturbada por singularidades. Como atribuir caráter divino a algo que se manifesta de maneira tão desconexa e espaçada? Acresce o fato de as primeiras 'divindades' (os totens) serem animais e vegetais comuns, desprovidos de poderes excepcionais, e não forças cósmicas, que só seriam alçadas ao nível do divino bem mais tarde.

Durkheim está sempre atento aos malabarismos retóricos empregados para justificar uma determinada tese; assim, quando respondemos à pergunta "por que a natureza teria inspirado no homem primitivo a idéia do divino" com um simples "é próprio da condição humana sentir-se assim em relação à natureza", estamos apenas dando um passo para trás: poderíamos prosseguir perguntando por que isso é próprio da condição humana. Se repetirmos o processo indefinidamente chegaremos a uma de duas conclusões. A primeira é que não nos é dado conhecer a resposta, e a segunda é admitir que a tese em questão é insuficiente. Parece pouco provável que um analista tão atento às falhas dos outros seja capaz de cometer o mesmo tipo de erro. Ao propor uma alternativa para a origem das crenças totêmicas, Durkheim observa que
De uma maneira geral, não há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, pela simples ação que exerce sobre eles, a sensação do divino; pois ela é para seus membros o que um deus é para seus fiéis.
A primeira dificuldade consiste em saber o que exatamente ele entende por sociedade. Está claro que o convívio social tende sempre a alargar nossas perspectivas; a comunhão de idéias, de experiências e de sentimentos é inegavelmente fundamental para a sustentação e engrandecimento de qualquer ser humano, mas Durkheim parece querer ir bem além. A visão que ele tem do poder social é de tal maneira obscura que há inclusive uma dificuldade terminológica ao expressá-la; recorre-se com frequência a termos como 'energia', 'eletricidade', 'divindade' (sendo que, se bem lembramos, é exatamente o caráter divino da sociedade que ele pretende mostrar) etc. para descrever a influência social sobre a consciência particular.

Durkheim parece particularmente entusiasmado com o fato de o homem primitivo adentrar um estado de frenesi em vários dos rituais coletivos; para ele, isso seria indicativa de que a comunhão social tem o poder de não apenas elevar o homem acima de si mesmo, mas também de levá-lo a um estado de torpor em que nem sequer é capaz de se reconhecer. E, quando se lhe apresentam objeções, prefere supor que a origem de tanto poder é complexa demais para ser discernida no momento:
Mas a ação social segue caminhos muito indiretos e obscuros, emprega mecanismos psíquicos complexos demais para que o observador vulgar possa perceber de onde ela vem. Enquanto a análise científica não vier ensinar-lhe isto, ele perceberá que é agido, mas não por quem é agido.
Quando lembramos a principal objeção de Durkheim ao animismo, a de que toda a religião, segundo essa teoria, não passaria de uma grande alucinação, surge uma dúvida inquietante: não seria essa mesma objeção válida para a tese de Durkheim, com a diferença de que agora teríamos 'alucinações coletivas'? Ele mesmo percebe esse perigo e responde da maneira mais evasiva possível: são alucinações, mas alucinações calcadas no 'real' (a realidade social, que é inegável), seja isso lá o que for. Aceita-se de bom grado essa resposta quando se aceita a visão que Durkheim tem da sociedade, mas não é justamente essa visão que ele ainda está por provar? Chega a ser incrível que alguém tão atento às falhas alheias seja incapaz de perceber a ingenuidade do próprio raciocínio.

Um particular que ilustra bem a importância exagerada que Durkheim atribui à sociedade é o dos ritos piaculares. É sabido que os ritos dedicados aos mortos pelos primitivos da Austrália podem chegar a níveis assombrosos de violência. A mulher do morto, numa peregrinação que pode durar horas, entra num estado de desespero que a leva a queimar o próprio corpo (pernas e seios), arrancar os cabelos e arranhar a testa até que o sangue lhe escorra pelos olhos. Algumas dessas flagelações são tão intensas e prolongadas que levam à morte do indivíduo. Durkheim explica todo esse processo da seguinte maneira:
Sabe-se, por outro lado, como os sentimentos humanos se intensificam quando se afirmam coletivamente. A tristeza, da mesma forma que a alegria, se exalta, se amplifica ao repercutir de consciência em consciência, por isso acaba se exprimindo exteriormente na forma de movimentos exuberantes e violentos. Não é mais a agitação alegre que observávamos há pouco: são gritos, urros de dor. Cada um é arrastado por todos; produz-se algo como um pânico de tristeza. Quando a dor chega a esse grau de intensidade, junta-se a ela uma espécie de cólera e exasperação. Sente-se a necessidade de quebrar, destruir alguma coisa. As pessoas se voltam contra si mesmas ou contra os outros. Golpeiam-se, ferem-se, queimam-se, ou então se lançam contra alguém para golpeá-lo, feri-lo e queimá-lo. Foi por isso que se estabeleceu o costume de se entregar, durante o luto, a verdadeiras orgias de torturas.
A primeira suspeita que se tem ao ler esse trecho é que ele parte de um conhecimento psicológico do homem primitivo que nos é completamente estranho. Poderíamos pensar no convívio coletivo como uma espécie de atenuante para a dor; as pessoas, em vez de partir para a destruição, poderiam muito bem consolar-se mutuamente, mitigando qualquer impulsivo violento que viesse a surgir. É provável que tudo isso seja completamente inviável em se tratando da mente primitiva, mas Durkheim tampouco se dá ao trabalho de explicar por que sua suposição escolhe o caminho contrário. Em verdade, a partir de determinado momento, a 'sociedade' serve como elemento explicativo para todo e qualquer pequeno mistério que lhe apareça pela frente. Desde que o Formas Elementares foi publicado (1917), chegou-se à conclusão (Frazer) de que o totemismo não é a forma religiosa mais antiga. Essa descoberta, se verdadeira, obviamente invalida argumentações que se sustentem nesse fato (como a última objeção de Durkheim ao animismo), mas essas argumentações têm ao menos o mérito de manter uma coerência interna. Já a panacéia social de Durkheim está muito além de qualquer refutação factual.

A imagem que Durkheim tem da religião como um todo é curiosa: ao mesmo tempo em que ele nos faz um tremendo favor ao jogar por terra idéias modernas que desmecerem irracionalmente o pensamento religioso (ao observar, por exemplo, que a mentalidade secular atual ainda é carregada de aspectos religiosos, ou ao mostrar que a própria lógica científica tem sua origem na religião), ele empacota a coisa toda e a subordina a uma entidade verdadeiramente sobrenatural, a tal sociedade. Se julgamos encontrar uma alternativa ao enfatizar a existência de cultos individuais, totens individuais etc., Durkheim é rapido em lembrar que "as forças religiosas às quais eles [os indivíduos] se dirigem não são mais que formas individualizadas de forças coletivas." Toda e qualquer religião só deixa de ser uma alucinação, só passa a ter uma existência propriamente dita, quando se manifesta socialmente. Uma noção tão restrita do que seria a realidade só poderia levá-lo à seguinte conclusão:
Mas esses aperfeiçoamentos metodológicos não são suficientes para diferenciar a ciência da religião. Sob esse aspecto, ambas perseguem o mesmo objetivo: o pensamento científico é tão-só uma forma mais perfeita do pensamento religioso. Parece natural, portanto, que o segundo se apague progressivamente diante do primeiro, à medida que este se torne mais apto a desempenhar a tarefa.
Ou seja: a religião só tem por que existir enquanto a ciência não se desenvolve completamente, como se essa crença na potencialidade ilimitada da ciência não fosse, ela mesma, religiosa. Durkheim se propõe a estudar as origens da religião para concluir que ela não passa de uma ciência mais estabanada, que se posiciona à frente da ciência genuína apenas para ser ratificada ou corrigida mais adiante; em breve não precisaremos mais dela. Passados menos de 100 anos, é bom saber que não precisamos mais de Durkheim.

05 maio, 2007

Documentário: Nadie Escuchaba

"Ninguém escutou" é o típico apelo do teórico da conspiração. Não é à toa que muitos ainda encaram a revolução cubana exatamente assim, como uma grande teoria da conspiração. Quando muito, admitem que houve algo de errado, deixando claro que os abusos não excedem o que se observa numa ditadurazinha qualquer. Chegará o dia em que tudo ficará claro (para quem quer, já chegou) e as justificativas terão de ser 'levemente' alteradas.

O que há de mais interessante no Nadie escuchaba, e não sei bem se é intencional, é o discurso incrédulo de alguns ex-revolucionários, hoje contra-revolucionários. A incredulidade permanece mesmo depois de 10, 15, 20 ou até 25 anos de prisão. São todos intelectuais, na acepção do termo que já discutimos aqui. Perguntam-se candidamente por que o PC russo, de que eram seguidores fiéis, não veio lhes socorrer enquanto estavam encarcerados. Creditam a desgraceira em que se tornou a revolução a um acidente de percurso, um detalhe que poderia muito bem ser evitado. Daí a incredulidade: não conseguem entender por que tiveram de sofrer por tanto tempo, já que tudo que fizeram foi discordar em algum detalhe com a alta nomenklatura do partido. Repete-se aqui, com uma homogeneidade quase monótona, o que já sabíamos da 'corte' stalinista: companheiros prendendo companheiros. Sob pena de irem também eles para o xadrez (ou coisa pior) caso mostrem alguma relutância.

O fascínio que os ideais revolucionários exerce nessa gente não se apagou mesmo depois de tantos anos. Podemos pensar num sentimentalismo inarredável (é o que Hayek sugere) para explicar tanta insistência. O mesmo ocorre com os intelectuais que assistem de fora... a lista é interminável. Foucault acompanhou com entusiasmo a experiência iraniana; Garcia Marquez e Saramago nada vêem de errado em Fidel, assim como Susan Sontag não via; Edmund Wilson não escondia sua admiração por Lenin, Hemingway tampouco; H. G. Wells e Bernard Shaw, a princípio, não viam risco algum na figura de Hitler; Harold Laski e E. H. Carr chegaram a elogiar entusiasticamente a URSS stalinista. Consumada a catástrofe, transferem suas esperanças para outra experiência macabra. Cuba foi, por muito tempo, a menina dos olhos de vários intelectuais desiludidos com as experiências soviética e chinesa. Não aprenderam nada.

24 fevereiro, 2007

Duas Histórias (1)

Inauguro com esse post um ramo do conhecimento chamado 'história comparada'. Se é mesmo verdade que, como Aristóteles dizia, 'História é o que o historiador faz', passemos a comparar duas delas: a primeira é de responsabilidade conjunta de Cláudio Vincentino e Gianpaolo Dorigo, autores do História Para o Ensino Médio - História Geral e do Brasil, que utilizei durante todo o ensino médio; a segunda é a de Paul Johnson, em seu Modern Times - The World From the Twenties to the Nineties. O primeiro tema escolhido é a Revolução Russa.

Na versão tupiniquim a mendacidade começa logo no primeiro parágrafo, num quadrinho chamado Para Pensar Historicamente:
Inicialmente comparada à Revolução Francesa, por caracterizar uma libertação do país dos grilhões absolutistas, adaptando-se às exigências sociais e políticas do século XX, a Revolução Russa, a nosso ver, não teve paralelo histórico. Diferentemente do que aconteceu na Revulução de 1789, não foi a burguesia russa que assumiu o poder. Foram os líderes do proletariado, que comandaram o processo revolucionário, forçando uma ruptura social e política inédita (...). A partir disso, podemos nos fazer algumas perguntas: a transformação revolucionária teria sido insuficiente? Permaneceram estruturas e comportamentos incompatíveis com os anseios revolucionários? O colapso da União Soviética teria decorrido do que foi feito ou do que deixou de ser feito durante o processo revolucionário?
Bom, não vou comentar o tom de melancolia contida, principalmente nas últimas três perguntas, com o fato de a Revolução não ter obtido sucesso a longo prazo. Cabe realmente saber se, como a dupla sugere, a Revolução teria 'adaptado' o país às 'exigências' sociais e políticas do século XX e se foram realmente os líderes do proletariado que comandaram o processo revolucionário. Em tempo: em se tratando de livros de história de ensino médio, revolução é sinônimo de adaptação (não pode haver adaptação que se dê por outros métodos), e as tais 'exigências', essas entidades quase sobrenaturais, provêm diretamente do determinismo histórico de Marx. Antes de tentar responder a essas perguntas, sigamos adiante com a versão brasileira.

Num trecho referente ao governo de Lenin, ficamos sabendo que
As mudanças nas estruturas tradicionais de poder, entretando, ativaram a oposição dos mencheviques e czaristas (que passaram a ser chamados de russos brancos). Apoiados pelas potências aliadas, receosas da propagação da revolução de caráter popular pelo mundo, as duas facções mergulharam o país numa sangrenta guerra civil (...).
Surgem, aqui, mais duas questões: a Revolução tinha mesmo caráter popular? E, mesmo que tivesse, foram os mencheviques e czaristas, essas duas facções malvadas, os responsáveis pela guerra civil sangrenta? Outro detalhe é que a polícia política revolucionária, a Tcheca, criada ainda sob os auspícios de Lenin, só vem a ser mencionada na seção referente a Stalin. Falando na seção de Stalin, a única imagem que o livro traz nessa parte é uma foto do metrô de Moscou, com a seguinte caption: "Foi durante o segundo plano quinquenal, que visava (sic) acelerar o desenvolvimento, que se construiu o metrô de Moscou."

Passemos para a versão de Johnson. Quanto às alegações de que a Revolução teve, desde o início, um caráter popular, Johnson observa sobre Lenin:
He had no real power-base in Russia. He had never sought to create one. He had concentrated exclusively on building up a small organization of intellectual and sub-intellectual desperadoes, which he could completely dominate. It had no following at all among the peasants. It had a few adherents among the unskilled workers. Lenin's intransigence had driven all the ablest socialists into the Menshevik camp.
O fato de Lenin, por puro oportunismo (já que não tinha apoio popular), ter criado o slogan 'todo poder aos sovietes' parece ter sido evidência suficiente, para a dupla brasileira, de que o proletariado de fato dirigiu o processo revolucionário. A realidade é que o processo de tomada de decisões, na medida em que isso ia se tornando possível, ficou a cargo de um reduzido grupo de desperadoes. A Revolução foi de fato levada a cabo por camponeses, que já eram em número de 103,2 milhões em 1913, contra no máximo 15 milhões de membros do 'proletariado' (na acepção mais larga do termo). A advertência de Engels segundo a qual a pior coisa que pode acontecer a um líder revolucionário é chegar ao poder quando as condições para a Revolução ainda não estão 'maduras' não parece ter diminuído a pressa de Lenin.

Resta saber de onde surgiu a violência. A dupla tupiniquim dá a entender que mencheviques e czaristas começaram a lambança, mas, para a nossa surpresa, o próprio Lenin parece discordar dessa visão:
Believing, as he did, that violence was an essential element in the Revolution, Lenin never quailed before the need to employ terror. From the French Revolution he could quote Robespierre: 'The attribute of popular government in revolution is at one and the same time virtue and terror, virtue without which terror is fatal, terror without which virtue is impotent. The terror is nothing but justice, prompt, severe, inflexible; it is thus an emanation of virtue.'
Por algum motivo que escapa ao nosso entendimento, Vicentino e Dorigo também se esquecem de mencionar os crimes praticados pela Tcheca, antes mesmo que Stalin chegasse ao poder. Os 'grilhões' absolutistas, por outro lado, são pintados com tintas macabras. Não se sabe o porquê, já que
The Tsar's secret police, the Okhrana, had numbered 15 000, which made it by far the largest body of its kind in the old world. By contrast, the Cheka, within three years of its establishment, had a strenght of 250 000 full-time agents. Its activities were on a correspondingly ample scale. While the last Tsars had executed an average of seventeen a year (for all crimes), by 1918-19 [ou seja, sob Lenin] the Cheka was averaging 1 000 executions a month for political offences alone.
Aqui termina o nosso primeiro exercício de 'história comparada'. Como diria o Cobrador de Rubem Fonseca: só rindo.

10 fevereiro, 2007

Um Homem em Silêncio

Pegando o embalo do post anterior, achei que seria boa idéia dar um exemplo de uma personalidade tipicamente silenciosa. John Calvin Coolidge (1872-1933) foi o trigésimo presidente dos EUA (1923-29) e até hoje é visto com maus olhos pela historiografia oficial americana. Apesar de a jazz age ter sido um período de progresso vertiginoso para os americanos (os anos 50 é a única outra época que consegue competir em termos de entusiasmo), até recentemente muitos viam a frieza de Coolidge - e seu laissez-faire - como responsável pela crise de 29. Como se sabe, a realidade é bem mais complicada, e já há quem argumente que o intervencionismo de seus sucessores (Hoover e Roosevelt) prolongou uma crise que, como a de 1920, poderia ter desaparecido em um ano.

Pode-se dizer tranquilamente que Coolidge foi o presidente mais consistente na história dos EUA: ao deixar o cargo, avaliou que Perhaps one of the most important accomplishments of my administration has been minding my own business. Realmente, o discurso de Coolidge parece ter sido o último suspiro genuinamente laissez-faire na história da humanidade: um suspiro, diga-se, que às vezes dá a impressão de ser gostosamente preguiçoso, mas que é consequência de uma 'filosofia' muito bem pensada e definida. A verdade é que, como Eisenhower algumas décadas mais tarde, Coolidge gostava de dar a impressão de que era pouco sofisticado ou até ingênuo.

Detestava comprar a crédito. Aprendeu na loja do pai que quem não tem dinheiro (vivo) não deveria se meter a fazer compras. Quando os termos do tratado de Versailles forçaram a Alemanha a quitar suas dívidas com a Inglaterra, que por sua vez devia aos EUA, que por sua vez emprestaram aos alemães para que eles tivessem condições de pagar os ingleses (num processo cíclico que ficou mundialmente famoso pela sua inutilidade), Coolidge justificou a pressa com um lacônico They hired the money, didn't they?

Ficou nacionalmente conhecido em 1919 ao esmagar a greve da polícia de Boston: There is no right to strike against the public safety by anybody, anywhere, anytime. Alguns anos mais tarde foi eleito presidente com os slogans Law and Order, Keep Cool with Coolidge, Coolidge or Chaos e The chief business of the american people is business. Não chega a surpreender que seu apelido (de que gostava muito) tenha sido Silent Cal. Na campanha de 1924, notou: I don't recall any candidate for president that ever injured himself very much by not talking. Também é conhecido por observar que The things I never say never get me into trouble. Em sua autobiografia, confessou que a regra que segue com mais veemência consists in never doing anything that someone else can do for you.

Em agosto de 1927, Coolidge chamou 30 jornalistas para a Casa Branca e, depois de avisar que The line forms on the left, entregou para cada um deles um pequeno papel em que se lia I do not choose to run for president in 1928. Essa decisão não deixa de ser estranha: a essa altura, Coolidge ainda era querido por todos. A verdade é que ele sabia, como qualquer outra pessoa suficientemente informada à época, que o progresso não poderia continuar para sempre. Cal says there's a depression coming, nas palavras de Grace, sua esposa. O próprio Coolidge complementa: I know how to save money. All my training has been in that direction. The country is in a sound financial condition. Perhaps the time has come when we ought to spend money. I do not feel I am qualified to do that.

Limitado? Pode até ser. Mas muitas das lições de Coolidge ainda merecem ser repetidas:
Government cannot relieve from toil. The normal must take care of themselves. Self-government means self-support... Ultimately, property rights and personal rights are the same thing... The prime element in the value of all property is the knowledge that its peaceful enjoyment will be publicly defended. Without this legal and public defence the value of your tall buildings would shrink to the price of the waterfront of old Carthage or corner-lots in ancient Babylon... History reveals no civilized people among whom there was not a highly educated class and large aggregations of wealth. Large profits means large payrolls. Inspiration has always come from above.

18 janeiro, 2007

A Origem da Tragédia Berliniana

No ensaio que abre o volume The Proper Study of Mankind, intitulado The Pursuit of the Ideal, Isaiah Berlin (1909-1997) declara que
At a certain stage in my reading, I naturally met with the principal works of Machiavelli. They made a deep and lasting impression upon me, and shook my earlier faith. I derived from them not the most obvious teachings - on how to acquire and retain political power (...) - but something else.
Que outros ensinamentos não tão óbvios seriam esses? A que exatamente ele se refere com earlier faith? A resposta será dada com mais detalhes no ensaio The Originality of Machiavelli, em que Berlin chama nossa atenção para a distinção básica proposta por Maquiavel, a distinção entre o tipo romano e o tipo cristão. Maquiavel desde sempre deixa claro que prefere um Estado nos moldes da República Romana ou do início do Império, e não vê como virtudes tipicamente cristãs - humildade, aceitação do sofrimento, esperança de uma vida eterna após a morte - possam levar o homem a esse ideal. A despeito do grande desacordo existente entre os comentadores do pensador florentino, parece existir um consenso quanto a esse ponto em específico: Maquiavel em nenhum momento tenta nos convencer de que valores cristãos são 'inferiores' ou de qualquer maneira repreensíveis a priori (apesar de ele ainda ser tido por muitos como um anti-cristão exacerbado); apenas acredita que eles são incompatíveis com uma determinada organização social, uma organização (forte e estável) que ele deseja e acredita ser possível ver reestabelecida entre os seus.

Berlin não demora a apontar o caráter revolucionário dessa suposta incompatibilidade: desde (pelo menos) Platão estávamos - e de certa maneira estamos até hoje - acostumados a pensar em termos de um ideal único, um fim glorioso em que culminaria toda cogitação verdadeiramente 'inteligente' ou 'lógica' ou 'racional'. Admite-se inclusive a possibilidade de que não é dado ao ser humano alcançar esse fim, mas isso não implica sua não-existência. Voltaire afirma que o governo ideal será divisado univocamente por quem quer que se dê ao trabalho de analisar a questão com suficiente cuidado e racionalidade (o seu famoso bom senso), e Comte se pergunta por que deveríamos aceitar dissidências (ou heresias) em questões políticas se não as aceitamos na Física ou na Matemática. Temos aí a origem da tragédia berliniana: Maquiavel parte a rocha da conhecimento, inicialmente maciça e aparentemente indestrutível, em dois pedaços mutuamente incompatíveis:
If what Machiavelli believed is true, this undermines one major assumption of Western thought: namely that somewhere in the past of the future, in this world or the next, in the church or the laboratory, in the speculations of the metaphysician or the findings of the social scientist, or in the uncorrupted heart of the simple good man, there is to be found the final solution of the question of how men should live. If this is false, the idea of the sole true, objective, universal human ideal crumbles. The very search for it becomes not merely Utopian in practice, but conceptually incoherent.
Cada metade da rocha deu origem a muitas outras, obviamente menores e ainda mais diferentes entre si - mas esse, é claro, não foi um passo empreendido por Maquiavel. É ao comentar a obra do alemão Johann Herder (1744-1803), no Herder and the Enlightenment, que Berlin fala pela primeira vez em pluralismo. Uma consequência de ordem prática desse pluralismo é que, se reconhecemos que não há somente um objetivo final legítimo, há uma brutal divisão de esforços. É natural supor dedicação exclusiva e inquebrantável a um ideal que sabemos verdadeiro e único: por ele sacrificaríamos até nossas próprias vidas. Mas eis que Berlin (ou, antes dele, Giambattista Vico e Johann Herder) distingue uma profusão de alternativas igualmente plausíveis e que não raro são tragicamente incompatíveis entre si. O próprio John Stuart Mill admitia que devemos restringir a liberdade individual dos cidadãos (através das leis) para que não descambemos numa sociedade incapaz de garantir qualquer liberdade, por mais sufocada que seja. Troca-se um pouco de liberdade pela possibilidade de viver pacificamente em sociedade, e o nobre ideal de liberdade nem por isso passa a ser menos nobre.

Em vez de esforço exclusivo na perseguição de um único fim, o que Herder propõe é a existência de perspectivas culturais incomensuráveis. Incomensuráveis, mas não imperscrutáveis, e é exatamente nesse particular que Vico, Herder e Berlin se distanciam do relativismo (tal como o termo é empregado hoje em dia). A esse respeito Berlin não poderia mais claro:
'I prefer coffee, you prefer champagne. We have different tastes. There is no more to be said.' That is relativism. But Herder's view, and Vico's, is not that: it is what I should describe as pluralism - that is, the conception that there are many different ends that men may seek and still be fully rational, fully men, capable of understanding each other and sympathising and deriving light from each other, as we derive it from reading Plato or the novels of medieval Japan - worlds, outlooks, very remote from our own.
O esforço não é mais exclusivo, mas de maneira alguma diminui: muito pelo contrário, sabemos por experiência própria que poucas coisas são mais difíceis que penetrar os recessos mais íntimos de qualquer cultura que nos seja distante. Se queremos compreender o povo egípcio, os costumes egípcios ou a arte egípcia, precisamos primeiro entender - ainda que superficialmente, e ainda que ela nos pareça, hoje, particularmente repulsiva - a mentalidade egípcia como um todo. A tragédia berliniana não se cansa de refrescar nossa memória quanto às dificuldades inerentes a esse processo, mas, diferentemente do relativismo ou do multiculturalismo, ao menos admite a possibilidade de persegui-lo com um mínimo de sucesso. Acusar Berlin de relativismo (algo longe de ser incomum) não é, então, apenas uma falha circunstancial: trata-se de negar o fundamento mais básico da doutrina pela qual ele é mais conhecido. Se somos capazes de entender e derive light de culturas tão diferentes da nossa é porque há algo em comum entre todas elas. De fato, ainda somos todos humanos.

18 dezembro, 2006

A Sociologia da Igreja

We intend, rather, to establish whether and to what extent religious influences have in fact been partially responsible for the qualitative shaping and the quantitative expansion of that "spirit" across the world, and what concrete aspects of capitalism culture originate from them.
Essa pequena síntese já nos deixa entender que a tese central do The Protestant Ethic and the "Spirit" of Capitalism, clássico do sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), nem sequer aborda a questão do surgimento do capitalismo enquanto forma de organização econômica. Weber lembra repetidas vezes que o capitalismo se estende até os recantos mais longínquos de nossa memória histórica. Egito e Babilônia já o conheciam, e seria uma tremenda estupidez negar a natureza essencialmente capitalista dos grandes centros comerciais italianos durante o período renascentista. Como se vê, o objetivo de Weber é bem mais estreito, mas nem por isso muito menos complicado: ele pretende traçar as origens do "espírito capitalista" tal como será abundantemente definido ao longo de seus ensaios. Assim como qualquer termo empregado ad hoc (segundo o próprio autor) para descrever uma realidade histórica complexa, o "espírito capitalista" não pode ser definido de maneira definitiva; trata-se de um paradigma, um "modelo ideal", que só poderá ser compreendido integralmente ao final da investigação.

Weber cita Benjamin Franklin na tentativa de ilustrar o tal "espírito". Este se refere à sistematização e a otimização de nosso trabalho, como se reconhecêssemos nele uma vocação divina. A grande novidade se refere ao fundo ético presente nessa postura: de fato, não seria muito difícil encontrar, muito antes da reforma protestante, exemplos que se encaixam perfeitamente nesse modelo, com a diferença, alas!, de que esses exemplos eram impulsionados por motivos que nem de longe correspondem a nossa área de interesse. Explica-se: o desejo desenfreado por acúmulo de dinheiro e riquezas em geral, obtido possivelmente através da disciplina no trabalho, também existe desde que o homem é homem. O surgimento de um novo estilo de vida que entende essa racionalização de esforços não como meio de suprir demandas utilitaristas (na acepção mais vil do termo), mas como uma necessidade, um norte ético e um fim em si mesmo, é, segundo argumenta Weber, a própria encarnação do "espírito capitalista" em nosso cotidiano. As implicações da implementação desse espírito na esfera econômica dispensa comentários; cumpre investigar, então, suas origens.

É mais ou menos óbvio que o capitalismo, tal como hoje se apresenta, dispensa motivos religiosos para explicar seu funcionamento. Isso não significa, claro está, que o tal "espírito" revolucionário descrito por Weber não tenha raízes religiosas. Weber enxerga no calvinismo (e nas seitas por ele influenciadas) os preceitos dogmáticos que, uma vez em contato com o mundo secularizado, teriam contribuído para o desenvolvimento do "espírito". O significado corrente da palavra alemã Beruf ("calling", "vocação", "chamado") remonta à tradução, sob a responsabilidade de Lutero, da Bíblia. Nada obstante, a teoria da predestinação (que, como veremos, tem uma relação íntima com o "espírito"), é essencialmente calvinista. Segundo nos conta Calvino, Deus, do alto de sua glória, decide de antemão quem são os "escolhidos" e quem são os "danados". Seria de uma puerilidade tipicamente humana supor que nossos atos nesse mundo poderiam influenciar a decisão divina, que, precisamente por ser divina e anterior a nossa existência, não pode de maneira alguma ser alterada, ainda que paremos de fumar e salvemos um mico-leão dourado por dia. A mente contemporânea provavelmente reagiria a esse terrível determinismo com um to hell with it, mas, numa época em que a salvação da alma tinha uma importância maior que a do futebol nos dias que correm, eram poucos os que ousariam ser tão relaxados a respeito.

Que escolha resta ao calvinista extremado, que se sabe com o destino inalienavelmente selado antes mesmo de sair das fraldas? A primeira consequência parece ser um sentimento exasperante de solidão: se é verdade que ainda vale a máxima latina "não há salvação fora da igreja", sabe-se também que esse preceito adquiriu, com o calvinismo, um viés negativo: de fato, não há salvação fora da igreja, mas nada garante que dentro dela será diferente. O fiel pode, no máximo, certificar-se de que é um dos escolhidos (assim como Calvino estava certo de que o era) através de uma total submissão a sua "vocação". Todos os nossos esforços aqui na Terra não seriam suficientes para demover Deus de sua posição original (sabemos que a mera sugestão é absurda), mas é de se esperar que os escolhidos ajam como tais, isto é, que façam de suas vidas o melhor proveito possível. Do ponto de vista econômico, isso significa sucesso contínuo e inquebrantável, sem pausas para a fruição mundana (altamente condenável) das vantagens conquistadas. Agora entendemos bem por que o rufião antigo ou o usurário medieval nada têm que ver com o "espírito" na acepção dada por Weber.

Weber evita qualquer juízo de valor referente ao corpus dogmático por ele analisado; restringe-se apenas às implicações concretas, para o comportamento humano, do surgimento desse novíssimo "espírito". Ainda assim, saúda-nos com o julgamento proferido por John Milton acerca do Deus calvinista: May I go to hell, but such a God will never compel my respect. O leitor mandrião pode respirar aliviado: ainda que vá para o inferno, certamente irá com numerosa companhia.

Resta comentar o conceito de innerworldly asceticism (em oposição ao otherworldly asceticism), constantemente empregado por Weber para descrever o "novo" capitalista. Ele observa que
If one should wish to apply these concepts, however, then apart from the observations already made, a number of others, which readily present themselves, could even suggest that the supposed antithesis between "unworldliness", "asceticism", and religious piety, on the one hand, and participation in capitalist commerce, on the other hand, might in fact amount to an inner affinity.
É precisamente esse o paradoxo desenvolvido pelo dogma calvinista: o mesmo asceticismo que com os monges católicos servia de mote para uma abstração do mundo material é, agora, transplantado para o mundo secularizado na forma de uma meticulosidade inarredável no cumprimento do "destino" ou "vocação" de cada um. É o que Weber chama de asceticismo protestante. A necessidade de "testar-se a si mesmo" através do trabalho duro e disciplinado que a reforma protestante (liderada pelo calvinismo) incutiu em seus seguidores representa, conclui Weber, fator determinante (mas não único, e esse é um ponto enfatizado à exaustão) para o desenvolvimento do estilo de vida responsável pela propulsão econômica de regiões como a atual Holanda, Inglaterra, sul da França e, last but not least, Estados Unidos. David Landes, numa tentativa crua mas não inexata de resumir a contribuição de Weber para a sociologia da religião, afirma que Max Weber was right. If we learn anything from the history of economic development, it is that culture makes almost all the difference.