27 setembro, 2006

O Problema da Indução

O Princípio da Indução Finita (PIF) é um artifício comumente empregado quando se quer demonstrar um resultado previamente conhecido. É um procedimento que, mesmo restrito à matemática, causa certa estranheza aos não-iniciados. Prova-se uma propriedade por indução quando essa propriedade é válida para o caso inicial (n = 1) e quando a suposição de que é também válida para um caso genérico (n = k) nos leva à validade do caso seguinte (n = k + 1). Se k = 1, a validade do primeiro caso (que é verificável ou dado) nos leva à validade do segundo. A partir do segundo chegamos ao terceiro, e assim por diante. Exemplo: quer-se mostrar por indução a seguinte identidade: ln(an) = n . ln(a).

(i) A identidade é verdadeira para n = 1 pois está claro que ln(a1) = ln(a) = 1 . ln(a).

(ii) Suponhamos que ela é verdadeira para n = k, isto é: ln(ak) = k . ln(a).

(iii) Vejamos o que acontece com o caso seguinte, partindo do lado esquerdo da igualdade: ln(ak+1) = ln(ak . a) = ln(ak) + ln(a) = k . ln(a) + 1 . ln(a) = (k + 1) . ln(a).

Usamos apenas a propriedade do produto de logaritmandos [ ln(a . b) = ln(a) + ln(b) ] e a suposição enunciada em (ii). Chega-se, assim, à conclusão de que a identidade é válida para qualquer n. Até aqui, tudo muito simples e intuitivo. Começam a surgir problemas quando se quer estender essa noção indutiva à filosofia. A conexão parece óbvia: se a força gravitacional funcionou hoje, ontem e sempre, funcionará também amanhã. Ocorre que esse raciocínio não resiste nem à análise puramente matemática da coisa. Provemos, por indução, que a gravidade funcionará amanhã. O caso inicial é verdadeiro, já que percebo claramente que ela está a funcionar hoje. Suponhamos o mesmo para um dia genérico k. O que me permite concluir que ela estará intacta no dia k + 1? Nada. Quando muito, a probabilidade, mas nesse caso já teríamos deixado há muito o campo rigoroso da demonstração analítica.

O tratamento que Karl Popper dá à idéia de ciência reflete exatamente essa rejeição ao inducionismo. Só poderá ser ciência aquilo que admitir sua própria falibilidade. Não deixa de ser curioso que a mente científica, indissoluvelmente associada à busca da verdade, seja assim pautada pela possibilidade mesma da ausência de verdade; pelo engano, pela 'mentira'. Nesse sentido, a física corpuscular de Newton é genuinamente científica porque resguardou a possibilidade de sua própria 'destuição': enunciou arbitrariamente coisas que mais tarde se revelariam falsas ou apenas parcialmente verdadeiras. A contribuição de Einstein não é menos científica: parte do pressuposto, questionabilíssimo, de que a velocidade da luz independe do referencial tomado, além de valer, no máximo, aproximadamente 3.108 m/s. Toda a Relatividade está construída em cima disso.

Essa confusão entre inducionismo e ciência pode levar a erros constrangedores. O comentário que Gustavo Corção faz sobre uma tese de Euryalo Cannabrava é bem ilustrativo:
Um curioso exemplo da falta de precisão científica em que incide certa espécie de filosofia cientificista, pode ser colhido na página setenta e quatro da tese que o Sr. Euryalo Cannabrava apresentou no seu concurso. Depois de muitas considerações tortuosas sobre a diferença que existe entre a linguagem científica e a linguagem poética, diz ele o seguinte:

"Cabe aqui perguntar se a frase "L'Amore que muove il sole e l'altre stelle" poderá ser considerada uma proposição. A fim de responder a essa pergunta, é necessário resolver preliminarmente se o seu enunciado será falso ou verdadeiro. Sob o ponto de vista da linguagem científica "L'Amore que muove il sole e l'altre stelle" se considera falso. o que move o sol e as estrelas não é o amor, mas o que está expresso na lei de Kepler, de acordo com a qual os astros descrevem, na sua órbita, uma elipse de que o sol ocupa um dos focos."

Diz o autor que não é o amor que move o sol e as estrelas, é o que está expresso na lei de Kepler. Ora, essa proposição, apesar das aparência, é muito menos científica do que o verso de Dante. Essa proposição é falsa. As leis de Kepler exprimem apenas como se movem os astros e não o que os move. Quando o grande astrônomo enuncia que os planetas descrevem elipses em que os quadrados dos tempos de revolução são proporcionais aos cubos dos eixos maiores, a causa eficiente, aquilo que move, não entra de modo algum em seu enunciado. E basta esse pequeno detalhe para me autorizar a dizer que a frase "o que move o sol e as estrelas é o que está expresso na lei de Kepler..." seria admissível na boca de um desprevenido bombeiro hidráulico que acabasse de ler o último número de Seleções, mas é imperdoável na tese de um candidato à cátedra de filosofia. Essa frase revela um irrecuperável escript de lourdeur, uma absoluta ausência de precisão cientifica, e sobretudo uma total incapacidade filosófica.

Se o autor daquela frase tivesse dito "leis de Newton" em lugar de leis de Kepler, o erro de sua proposição seria menos aparente, porque aquelas leis, embora ainda sejam expressões de modalidade, incluem uma referência à causa próxima da interação dos corpos celestes. Os corpos se atraem na proporção direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias. Cinqüenta anos depois do grande Kepler, o imenso Newton virá dar maior unidade à mecânica celeste. Mas ainda não se pode dizer com propriedade que o que move o sol e as estrelas é o que está expresso na equação de Newton. A gravitação universal é um fato físico, e a lei de Newton descreve como agem os corpos dentro dessa realidade física que em si mesma é distinta dos símbolos matemáticos. A realidade das causas mais profundas que movem os astros escapa ao tratamento matemático e pertence ao domínio propriamente filosófico pelo qual o Sr. Cannabrava nutre tamanha aversão. Posso convir que uma pessoa seja agnóstica e que leve seu positivismo até o ponto de se desinteressar pelas causas profundas. Neste caso, porém, deve dizer: eu não sei o que é que move os astros, só sei que eles se movem assim...
As 'leis' de Kepler, louváveis como são, representam um exercício de simples inducionismo: um exercício de encontrar um modelo que esteja de acordo com as observações experimentais, ainda que não se tenha idéia da causa física por trás do modelo. A descrição de Newton vai além porque insere elementos fisicamente palpáveis (massa, distância), e é nesse sentido que se pode dizer que as leis de Newton 'demonstram' as leis de Kepler. Mas, se as leis de Kepler são realmente leis, por que precisam de demonstração? O termo é evidentemente inadequado para o caso de Kepler, mas não é tão simples perceber que tampouco serve para o de Newton. Culpem o inducionismo.