22 outubro, 2006

Rousseau ou A Criança Mimada

O volume Intellectuals do historiador, jornalista, ex-pintor etc. britânico Paul Johnson reúne esboços biográficos das figuras pivotais da intelectualidade ocidental a partir do século 18. O livro tem por objetivo investigar o lado mais íntimo desses que se arvoraram à posição de líderes espirituais e de reformadores da ética e da moral. Johnson observa que, com o declínio generalizado das instituições religiosas no século 18, surge a figura do intelectual secular: aquele que supõe encontrar em si mesmo todos os pressupostos necessários para servir de mentor da humanidade. Essa liderança extravasa os limites do meramente intelectual; envereda também pelos caminhos tortuosos do comportamento íntimo. Cumpre saber, então, se esses novos gurus têm credibilidade para tanto.

O primeiro capítulo é dedicado a ninguém menos que Jean-Jacques Rousseau, o queridinho oficial do Iluminismo europeu. A sequência de depoimentos perturbadores acerca de Rousseau é tão massiva que o leitor não pode deixar de se perguntar por que diabos ainda se discute seus escritos políticos (todos eles tingidos de um proto-socialismo que hoje em dia não ilude nem pastores de ovelhas), quando seria bem mais interessante e recompensador ater-se a seu comportamento privado.

Rousseau acreditava ser a própria encarnação da generosidade, da ética e das boas maneiras. Sendo isso uma verdade que todos deveriam forçosamente aceitar, algo conhecido a priori, ele se sentia à vontade para afirmar que I have things in my heart which absolve me from being good-mannered. Essa petulância toda não poderia ter outro desfecho que não querelas intermináveis com quem quer que lhe disputasse a posição de guardião da verdade. Johnson observa que
He quarreled, ferociously and usually permanently, with virtually everyone with whom he had close dealings, and especially those who befriended him; and it is impossible to study the painful and repetitive tale of these rows without reaching the conclusion that he was a mentally sick man.
A sugestão de um desequilíbrio mental causa certo estranhamento a princípio, mas só a princípio. Todas as características de uma mente perturbada vão sendo cuidadosamente reveladas, incluída entre elas a velha mania de perseguição. Acompanhemos o que dizia Rousseau sobre seus supostos perseguidores (uma trama internacional na qual qualquer um poderia estar envolvido):
They will build me an impenetrable edifice of darkness. They will bury me alive in a coffin... If I travel, everything will be prearranged to control me wherever I go. The word will be given to passengers, coachmen, innkeepers... Such horror of me will be spread on my road that at each step I take, at everything I see, my heart will be lacerated.
Da mesma maneira podemos interpretar sua obsessão com a própria saúde que, de resto, era bem melhor do que fazia crer. Rousseau via a si mesmo como um órfão indefeso (é certo que perdeu a mãe muito cedo, mas suas relações com o pai não eram das mais amistosas), enviado ao mundo para nos livrar da influência putrefata do dinheiro e da ganância, e que por isso mesmo não deveria nem poderia ser contrariado. Esse alto ideal só poderia ser atingido com uma submissão completa do homem frente ao Estado, que cuidaria de nossos interesses mais 'sórdidos'. Esses laivos autoritários (e totalitários) não são menos pronunciados em seu discurso pessoal. Ao tentar se esquivar das muitas acusasões que lhe eram imputadas, teve tranqulidade suficiente para dizer que
I have said the truth. If anyone knows facts contrary to what I have just said, even if they were proved a thousand times, they are lies and impostures... [whoever] examines with his own eyes my nature, my character, morals, inclinations, pleasures, habits, and can believe me to be a dishonest man, is himself a man who deserves to be strangled.
Semelhante imprecação nos força a entrever o que esse homem seria capaz de aprontar na eventualidade de ser alçado ao poder por um regime revolucionário. Esse comportamento tipicamente infantil, infelizmente, não era só palavrório. Sua incapacidade de manter compromissos e de assumir qualquer tipo de responsabilidade o levou a abandonar todos os seus cinco filhos num orfanato cujo índice de mortandade era sabidamente (inclusive por ele mesmo) altíssimo.

O egoísmo e a mania de grandeza que lhe eram característicos poderiam ter sido fatais se não fosse seu talento como orador, polemista e escritor popular. Esses traços tão detestáveis de seu caráter, que de ordinário serviriam para decretar seu fracasso enquanto figura pública, acabaram sendo ratificados e exacerbados pelos aduladores de plantão e pelos endinheirados que, envergonhados com sua própria superioridade financeira, sentiam a necessidade de apadrinhar o primeiro 'intelectual' que lhes aparecesse. Daí que Jean-Jacques Rousseau, que não mereceria ser mentor intelectual nem da lavanderia lá de casa, tenha se transformado nessa figura monstruosamente influente e hipnótica.