28 dezembro, 2008

Por um Natal sem direitos

Natal e os chamados direitos humanos aparecem com frequência na mesma frase: todos têm direito a um Natal feliz, sem fome, sem frio etc. Fiquei pensando: por quanto tempo a humanidade pôde passar o Natal sem ouvir falar em direitos humanos? A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, é de 1948. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dos facinorosos franceses, é de 1789. A Declaração de Independência dos EUA é de 1776 e a Carta de Direitos inglesa é de 1689. Acho que não seria exagero concluir, então, que por pelo menos 1500 anos (dC) a idéia de que o ser humano já nasce com direito a isso ou àquilo soaria estranha aos ouvidos mais benevolentes. E, nada obstante, foi nesse período que inventaram o hospital e a universidade pública.

Acho que poucas coisas comprometem mais a felicidade que o pretenso direito à felicidade. Se me aparecem com um papel garantindo o meu direito à felicidade irrestrita, qualquer existência aquém de um paraíso na Terra vai me parecer uma tremenda usurpação. Os americanos foram mais modestos (e mais felizes) ao garantir apenas o direito à procura da felicidade, que aliás pode ser tão medonha quanto se queira.

A mania de garantir direitos a torto e a direito cairia por terra se se dessem ao trabalho de analisar o problema pelo outro lado, o dos deveres. Se eu tenho direito à felicidade, alguem tem o dever de concretizá-la e, fora o meu anjo da guarda, nunca ouvi falar de semelhante cargo. Pior que a impraticabilidade da idéia são as doses cavalares de ressentimento que ela inspira, o ressentimento que Nietzsche quis imputar justamente àqueles que se opunham a ela, os que inventaram a caridade não por dever (no sentido legal), mas por princípio.

Desejo um bom Natal a todos: não que vocês tenham direito a um bom Natal, mas porque desejo que assim seja.

18 dezembro, 2008

Ainda o Cristaldo ou A compartimentalização da inteligência

O Janer Cristaldo chega a níveis de idiotia que eu mesmo julgava improváveis. Ele se refere ao Reinaldo Azevedo como 'recórter tucanopapista hidrófobo' desde a polêmica da tradução do texto papal sobre a condição do divorciado dentro da Igreja Católica. A birra dessa vez (procure os textos no blog, aqui) é com um texto que Azevedo escreveu, para a última Veja, 'tecendo loas ao stalinista' Graciliano Ramos.

Confundir vida e obra de um autor é suficientemente constrangedor até pra quem não se diz jornalista. Cristaldo não é burro a esse ponto, e quem já leu dois ou três de seus textos (os que não tratam de religião!) sabe disso. Mas, alas, quando ele deixa de tratar de política e passa a tratar de religião, é como se Pelé deixasse de jogar pra comentar futebol, ou como se Stephen Hawking deixasse a física de lado pra bater uma bola (não que Cristaldo seja tão bom cronista político assim; o que vale é o contraste). Até aí nada de muito estranho; poderíamos supor bloqueio mental ou algo do tipo. O problema é que, quando se trata de religião, o bloqueio mental é generalizado.

Mas e daí?, esses últimos posts são sobre Graciliano Ramos, não sobre religião. Ocorre que o Cristaldo não consegue mais deixar o Azevedo em paz depois que o Azevedo defendeu o papa. Reitero: não fosse o fatídico episódio papal, Cristaldo continuaria mantendo o silêncio de sempre em relação ao colunista de Veja.

A compartimentalização da inteligência (alguém já deve ter inventado um termo melhor pra isso) é a capacidade que alguns têm de alocar zero de inteligência pra algumas áreas do conhecimento. Especialização não é bem sinônimo porque o especialista não precisar ignorar o complementar de sua especialização. Também não se trata de inépcia congênita: ninguém ficaria irritado com um sujeito que nasceu com péssimo senso de orientação, péssima visão espacial ou dificuldade pra decorar regras de ortografia; lida-se com essas dificuldades desapaixonadamente, como quem fecha um buraco num muro ou uma cárie num dente.

Por outro lado, que fazer de alguém que discorre razoavelmente sobre história e/ou política e/ou economia e/ou filosofia e desata a repetir asneiras quando o assunto é religião? Não são áreas tão desconexas assim; o bloqueio mental é antes psicológico que congênito. Pode ser também um preconceito elevado a teoria, um grão de ignorância que se aloja desgraçadamente no cérebro do indivíduo e que é pouco a pouco recoberto por camadas de desinformação, obtusidade e arrogância até se tornar um tumor purulento e malcheiroso. A imagem é nojenta: a realidade retratada também.

16 dezembro, 2008

Nota adicional sobre Capitu

Diogo Mainardi fala da série Capitu em sua última coluna. Alguns trechos:
Nada nele recorda o "Dom Casmurro" de Machado de Assis, apesar de reproduzir diálogos do romance. Na série, Bentinho aparece estranhamente caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do ator que desempenha seu papel. Qual é o melhor candidato a Muttley? O agregado José Dias. (...) A série Capitu tem um aspecto circense. É Machado de Assis encenado por Orlando Orfei. É Bentinho imitando Arrelia no picadeiro de Fausto Silva: "Como vai, como vai, vai, vai? Eu vou bem, muito bem, bem, bem". Luiz Fernando Carvalho usa uma linguagem grotesca, afetada, espalhafatosa, cheia de contorcionismos e de malabarismos.
A coisa é mesmo heterodoxa. Mainardi esqueceu de mencionar que deram um jeito de enfiar versões de músicas do Pink Floyd e do Black Sabbath (!) na trilha sonora, que o cabelo do Bentinho jovem tem estatura digna de um black power, nada obstante ele ser branco e seminarista, e que o sujeito que interpreta José Dias, logo o alinhadíssimo José Dias, tem um jeito marcadamente afeminado. Vi tudo isso num só episódio.

Eu chutaria que a racionalização da patifaria como um todo é a dificuldade de adaptar obras do Machado. O brasileiro tende a associar criatividade e festa intimamente; se uma obra é mesmo muito criativa e sobrevive aos tempos, é necessário uma adaptação que desmonte todos os padrões cênicos usuais, de preferência com muita dança, algazarra e cores espalhafatosas. No episódio que vi, Escobar não parava de dançar. O que significa isso?

Parece que é ou isso ou adaptações mornas, como as que fizeram do Memórias Póstumas e do Primo Basílio. Todos querem um pouco da glória da pouca literatura em língua portuguesa que deu certo, mas boa inspiração apenas não opera milagres. Talvez precisemos de um temperamento um pouco menos brasileiro.

14 dezembro, 2008

Finalmente a Economia

Reparei outro dia que nunca escrevi sobre a economia chamada real. Segundo consta, a economia real trata não de abstrações generalizantes, sistemas de idéias etc., mas dos resultados que afetam a vida do cidadão comum. A princípio a distinção parece meio absurda: um sistema de idéias, caso aceito e implementado, é exatamente o que vai cedo ou tarde afetar a vida do cidadão comum. Outros restringem o termo mais ainda, dando a entender que economia real trata apenas das operações econômicas mais básicas, como compra de roupas e/ou alimentados, excluíndo entidades mais complexas (bancos, governos) e suas atividades. Vou usar o termo como sinônimo de práxis econômica, aquilo que os agentes econômicos (incluo bancos etc.) efetivamente fazem, a despeito das idéias que julgam ou dizem seguir -- nos casos em que julgam ou dizem seguir alguma idéia.

Só fui me dar conta da utilidade dessa distinção muito recentemente. Aconteceu quando começaram a me perguntar se quem trabalha em banco necessariamente venera Hayek e Friedman, se é costume colocar bustos de von Mises ou de Adam Smith nas salas de reuniões e por aí vai. 'Eles preferem a escola austríaca ou a de Chicago?' Às primeiras perguntas, respondo sempre que não, que o pessoal prefere o Benjamin Franklin, mas só porque ele aparece na cédula de 100 dólares. À última, respondo que nenhuma das duas, não por haver objeções palpáveis, mas porque ninguém se deu ao trabalho de conhecê-las direito. São esquerdistas, então? Também não, apenas não se preocupam com a economia que não é a real (a escolha do termo é particularmente feliz porque a economia que não é a real é tratada como irreal mesmo, tema para conversa em botecos ou para contos de fadas).

Acho que nada é menos conclusivo em termos de posicionamento no espectro político do que questões puramente econômicas. Ou melhor: nada deveria ser menos conclusivo. Isso porque economia pode até não se resumir a matemática (a inclusão de fatores psicológicos, porém, vai por sua conta e risco), mas os números num balanço ou num fluxo de caixa são tão números quanto os que vão numa hipotenusa ou num polinômio. O que quero dizer, se ainda não ficou claro, é: quando os números estão ruins e existe inteligência e disposição, dá-se um jeito, seja você um rothbardiano, keynesiano ou stalinista. Se o stalinista executa alguns dissidentes no processo e dá um jeito de coletar pra si mesmo todos os benefícios já é outra história. Aos que acham que simplifico a coisa indevidamente, basta lembrar que von Mises provou a impraticabilidade do sistema de precificação socialista com argumentos puramente matemáticos: caso fosse possível (nao é) escrever todas as equações diferenciais que regem o preço de uma banana, não seria possível resolvê-las, nem com os supercomputadores de hoje. Daí que não se possa estabelecer o preço do que quer que seja sem transformar a economia num jogo de cartas marcadas (para beneficiar nós sabemos quem).

O parágrafo anterior deve ser suficiente pra explicar o meu desinteresse pela economia dita real. A problemática sempre me pareceu operacional demais (ainda que complexa demais, como de fato é) pra que me fosse possível fazer algum comentário além do óbvio ululante. Se a crise secou o crédito interbancário, seca também o crédito para as empresas que tomam recursos dos bancos. O banco deixa de emprestar não porque o CFO é rothbardiano, keynesiano ou stalinista, mas porque não tem outra opção (a menos que esteja disposto a quebrar).

Não estou em condições de julgar se a distância entre as esferas da economia (a real e a 'irreal') é benéfica ou não para o universo daqueles que apenas querem ganhar a vida no mercado. O que me parece claro é que ela explica pelo menos em parte a completa estupefação diante da crise daqueles que em tese estão na posição de explicá-la*. Se a economia é, ou deveria ser, inútil para nos posicionar em qualquer tipo de espectro ideológico, ela, ou a clivagem que existe dentro dela, serve ao menos pra ilustrar a nossa tendência de achar que idéias não têm consequências (foi preciso que alguém escrevesse um livro com esse nome, for Christ's sake). Não vejo abuso de terminologia em associar a crença de que idéias têm consequências ao conservadorismo, mais precisamente à convicção de que o papel impresso tem outra serventia que não a monetária.

* Conversando com o sócio de uma empresa de gestão financeira, ainda outro dia, tive a felicidade de descobrir que o 'modelo do Estado não-invervencionista caiu por terra com essa crise'. Como um modelo que está fora de vigência há quase um século pôde cair por terra agora é matéria a ser decifrada por sábios de uma geração vindoura.

11 dezembro, 2008

Machado de Assis, um Brasileiro

Eu andava com idéias de escrever sobre o mau português que se fala no Brasil quando chegou até mim uma entrevista que o Napoleão Mendes de Almeida, o afamado gramático, concedeu à Veja em 1993 (leia aqui). Nela ele diz que a TV talvez seja o maior difusor do português torto que conhecemos tão bem. Fato é que, hoje, a TV já não pode fazer muita coisa: falar em português correto é mais constrangedor que gaguejar ou lançar generosos perdigotos por aí.

Vi ontem um episódio da série Capitu, baseada no Dom Casmurro de Machado. Os diálogos simplesmente não soam naturais, assim como não soam naturais os diálogos de todas as outras obras baseadas em livros do Machado, ou em qualquer outro livro da época. Todas essas adaptações estão fadadas ao fracasso imediato porque o brasileiro admite como absurda a possibilidade de ouvir um discurso com pronomes devidamente posicionados. Mas e daí, fazer o quê? A culpa é dos atores que se esforçaram (imagina-se o quanto) pra decorar as linhas?

O problema é que o abismo entre o português falado e o escrito é, mesmo hoje, intransponível. Tome o mais idiota dos adolescentes norte-americanos e ficará claro que o inglês falado (incluindo os usuais abusos: like, you know...) não está tão distante do inglês acadêmico. A estrutura das frases ao menos é a mesma; os solecismos mais comuns, os de ortografia, são obviamente imperceptíveis na linguagem oral. Já ao falante brasileiro ficam proibidas construções tão banais quanto 'eu a vi' ou 'segurei-lhe a mão', sob pena de um olhar mais ou menos enviesado.

Enquanto no inglês identifica-se a linguagem formal principalmente pela riqueza vocabular e pela correção ortográfica, identifica-se o mesmo em português por construções meramente corretas. Mesóclise, então, nem pensar, apesar de ser bem sabido que ela é às vezes insubstituível (não fosse, gente como Graciliano Ramos não a usaria). Regência correta de termos menos recorrentes já é luxo descabido, demonstração quase certa de arrogância.

E é assim que os personagens de nosso maior escritor (quando aparecem fora de seus livros) não nos parecem apenas diferentes, como seria natural esperar de gente que morreu há mais de um século, e que é como os personagens de Dickens ou Conrad devem parecer ao inglês hodierno. Eles nem sequer parecem brasileiros e, se realmente o foram, o certo é que há uma grande catástrofe nos separando.

04 dezembro, 2008

Estilo

Fico imaginando sobre o que eu escreveria caso tivesse de escrever toda semana, ou todo dia (provavelmente já fiz isso por alguns curtos períodos, mas nunca por obrigação). As alternativas mais batidas não são muito atraentes. São elas, que eu saiba: repisar piadas/tiradas que sabidamente funcionaram um dia, invertendo essa ou aquela circunstância; comentar notícias de jornal, com o cuidado de mostrar que cada notícia é evidência adicional de uma tese maior sua enunciada desde há muito; comentar notícias de jornal. O problema das notícias de jornal é que em geral tratam de gente desinteressante e, pior, gente viva (ou recém-matada).

É preciso muito talento pra falar com interesse do que se pode ver aqui e agora. Uma ilha que eu possa ver e visitar pode até ser bem bonita, mas provavelmente não voa ou é povoada por cavalos inteligentes como nos contos de Gulliver. Já vi tempestades fortes, mas nunca uma com efeitos magnetotemporais como no conto de Edgar Poe. A mania moderna de devassar tudo até os mínimos detalhes, discriminando e contabilizando tudo, parece tornar o ofício de escrever mais difícil. Ainda bem que não vivo disso.

Se eu vivesse disso, e considerando que não tenho talento para discorrer agradavelmente sobre coisas banais (quem não se lembra das escarradeiras floridas de Nelson Rodrigues?), recorreria àquelas pequenas excentricidades que ainda dão laivos de pessoalidade ao texto; algo que eu pudesse sacar da algibeira assim que me faltasse assunto melhor. Poderia ser um terceiro mamilo, um parente filiado ao PC do B ou o hábito de usar tênis all-star. Nenhum defeito é tão constrangedor quando você é o primeiro a confessá-lo.

Não é nem necessário que seja defeito; pode ser também uma virtude inútil, um conhecimento desnecessário. Há quem estude vinhos, quem aprenda a fazer sushi. Eu resolvi estudar ciências exatas. Está claro que as ciências exatas estão longe de ser inúteis (o mundo seria bem menos miserável se todos dominassem as quatro operações), mas são para mim, pelo menos tudo aquilo que me chegou depois do primeiro semestre da faculdade. Resolvi estudar o assunto como quem aprende a fazer sushi. Deu certo: acabei gostando.

Agora, alem de saber um pouco sobre a radiação Hawking e entender a demonstração que o vigésimo presidente dos Estados Unidos, James Garfield, propôs para o teorema de Pitágoras, posso rir da cara dos embusteiros. Rir de embusteiros, e denunciá-los devidamente, parece ser um dos maiores bônus de aprofundar-se em qualquer área do conhecimento. Projeções econômicas que precisam ser adaptadas diariamente e que desprezam solenemente variáveis importantes são motivo de risada pra quem estudou cálculo. Simulações da atmosfera que desprezam o efeito das nuvens pra 'provar' o aquecimento global são motivo de risada pra quem estudou transferência de calor.

Eis aí: já que não podemos mais rir de bruxas e gnomos, riamos de nós mesmos.

14 novembro, 2008

Ó, Khronos; Ó, Paciência!

Uma pessoa (a menos que pobre) que não tem tempo pra fazer o que gosta é muito provavelmente idiota; uma pessoa que faz questão de dizer que não tem tempo pra fazer o que gosta é certamente idiota.

Se você franze o sobrolho quando um idiota diz, na sua frente, que não tem tempo pra fazer o que gosta, ele diz que na realidade (ou seja, antes estávamos no mundo dos sonhos, não na realidade) tem tempo de sobra pra fazer o que gosta porque gosta de tudo que faz. A intenção parece ser poder atirar pra todos os lados: aos que se querem mui importantes por estarem sempre ocupados, os idiotas se dizem também ocupados, sem tempo pra respirar e cansadíssimos; aos que preferem aproveitar a vida, os idiotas se dizem satisfeitos por passar todo o tempo fazendo algo que há minutos era estafante e insuportável.

Esses acessos de hiperatividade surgem, creio eu, de uma espécie de megalomania: a idéia de que estamos sempre a um passo de mudar o mundo. 'Mudar o mundo', 'fazer a diferença' etc. é uma questão de vontade, não de capacidade. Quando a turma do 'fazer a diferença' se reúne (e eles adoram se reunir), é para candidamente nos informar sobre a importância do tempo, sobre como 'otimizar' esforços, eliminar desperdícios, 'enxugar' a rotina etc., tudo, é claro, com aquele jargão corporativo-newage-bacaninha.

Tudo isso é muito curioso, principalmente porque não há lugar em que se perca mais tempo que nessas reuniões. Minha curiosidade mórbida me levou a verificar pessoalmente essa impressão que carrego desde o berço, quando começava a berrar e apertar veementemente um chocalho quando via um ongueiro distribuindo panfletos na praia. Visitem a página do Reunes (aqui) e vejam por quê. Observem a terminologia: 'empreendedorismo social', 'intercâmbio de idéias', 'poder transformador do jovem' e por aí vai. Dos palestrantes, nenhum seria capaz de definir esses termos sem se valer de outros mais abstratos ainda. Acho que um dos critérios mais seguros pra constatar o esvaziamento de uma idéia é constatar o esvaziamento da terminologia com que ela é expressa. Esses termos podem até ter tido significado palpável algum dia, mas hoje se reduziram a slogans polarizadores.

Reproduzo aqui o profile de um dos palestrantes, Edgard Gouveia Júnior:
[É] arquiteto e urbanista, graduado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, SP, Brasil, 1993; pesquisador do Instituto TIBÁ – Tecnologia Intuitiva (?) e Bio-arquitetura (??), 1993-1996; pós-graduado em Jogos Cooperativos (???), Universidade Monte Serrat, 2003; professor da pós-graduação da Universidade Monte Serrat, 2004-2007 no curso Desenvolvendo Comumunidades; consultor e palestrante internacional nas áreas de protagonismo juvenil, empoderamento molecular e comunitário (????) e Jogos Cooperativos; facilitador do Projeto Cooperação; Co-fundador e Presidente o Instituto Elos – BR; membro da rede internacional Berkana Exchange, 2006-2007; Fellow Ashoka, 2006.
O leitor mentalmente são começa a se perguntar uma série de perguntas, como por que diabos uma universidade em Santos se chama Monte Serrat, em que consistiria um curso chamado Desenvolvendo Comunidades, desde quando 'protagonismo juvenil' se transformou em área do conhecimento e outras tantas. E quanto à tecnologia intuitiva? O que significa isso? Só é tecnologia intuitiva a tecnologia que os estudantes forem capaz de intuir? E se os estudantes forem todos umas bestas?

Não parece razoável que toda uma geração se deixe levar por uma tergiversação de tão baixa qualidade. Se são esses os luminares que devem nos dizer o que fazer com nosso tempo, estaremos melhor dormindo.

01 novembro, 2008

The Hippopotamus

And when this epistle is read among you, cause that it be read also in the church of the Laodiceans.

The broad-backed hippopotamus
Rests on his belly in the mud;
Although he seems so firm to us
He is merely flesh and blood.

Flesh and blood is weak and frail,
Susceptible to nervous shock;
While the True Church can never fail
For it is based upon a rock.

The hippo's feeble steps may err
In compassing material ends,
While the True Church need never stir
To gather in its dividends.

The 'potamus can never reach
The mango on the mango-tree;
But fruits of pomegranate and peach
Refresh the Church from over sea.

At mating time the hippo's voice
Betrays inflexions hoarse and odd,
But every week we hear rejoice
The Church, at being one with God.

The hippopotamus's day
Is passed in sleep; at night he hunts;
God works in a mysterious way --
The Church can sleep and feed at once.

I saw the 'potamus take wing
Ascending from the damp savannas,
And quiring angels round him sing
The praise of God, in loud hosannas.

Blood of the Lamb shall wash him clean
And him shall heavenly arms enfold,
Among the saints he shall be seen
Performing on a harp of gold.

He shall be washed as white as snow,
By all the martyr'd virgins kist,
While the Truch Church remains below
Wrapt in the old miasmal mist.

20 outubro, 2008

Paranoia Darwiniensis

Há alguns assuntos que são verdadeiros destruidores de reputações: penso principalmente em aquecimento global e darwinismo. A essa altura, dos textos escritos sobre esses assuntos, 90% são bobagens e 9,9% obviedades. Só de vislumbrar os termos num artigo já tenho vontade de bocejar (se você descobriu uma espécie de formiga africana que confirma espetacularmente a teoria darwiniana, ótimo; se descobriu outra que a refuta com espetáculo comparável, ótimo também). Foi assim que me arrastei pelas páginas do excelente Darwinian Fairytales -- Selfish Genes, Errors of Heredity, and Other Fables of Evolution, do filósofo australiano David Stove. Em vários momentos o livro se aproxima perigosamente (e Stove é o primeiro a reconhecê-lo) dos 9,9% mencionados acima. A verdade é que, não fosse a condição patológica referida no título desse post, livros como o de Stove não precisariam ser escritos.

Mas isso é dizer pouco: não fossem os cacoetes mentais X e Y, os livros A, B, C etc. também não precisariam ter sido escritos. O fato, por mais melancólico que seja reconhecê-lo, é que os cacoetes existem e prosperam num ritmo nada menos que estupefaciente. Não vou nem comentar os mais famosos (e antigos), cuja origem remonta ao próprio Darwin (ou, antes dele, Malthus), como a idéia de que uma população cresce indefinidamente se não lhe são impostas restrições de alimentação, ou aquela outra, mais absurda ainda, segundo a qual qualquer traço que não contribui para a propagação da espécie será dizimado cedo ou tarde. Não se pode argumentar 'contra' isso, pode-se apenas observar que a realidade, a humana pelo menos, nem se aproxima do modelo proposto. Essas idéias são tão ridículas que se você resolver apresentá-las a algum darwinista (isto é, alguém que se julga darwinista), a resposta mais provável será 'ah, Darwin não acreditava nisso realmente', ou 'ah, ninguém realmente acredita nisso', o que nos obriga a colher citações do tipo Every single (!) organic being around us may be said to be striving to the utmost to increase in numbers ou [W]e may feel sure that any (!) variation in the least degree (!) injurious would be rigidly destroyed, ambas do A Origem das Espécies. Deixei o erro mais grotesco para o final: segundo Darwin, a seleção natural e a luta pela sobrevivência são de tal maneira furiosas que of the many individuals of any species (!) which are periodically born, but a small number can survive (também do Origem). Darwin teria mudado de idéia se tivesse visitado a maternidade do hospital mais próximo.

Nosso puppet-darwinista, perturbado com a evidência textual, passaria então para a próxima resposta-padrão, que consiste em dizer que Darwin acertou no geral e errou nos detalhes, e que os darwinistas atuais corrigiram oportunamente os deslizes do barbudo. Não só isso não é verdade como é o oposto da verdade: neodarwinistas, sociobiólogos etc. não se contentam com ratificar a ortodoxia darwiniana; insistem em extrapolá-la. As diferenças estão basicamente no nível de detalhamento: com as contribuições mendelianas à genética foi possível colocar os genes na jogada. Se antes era a sobrevivência e a reprodução da espécie, ou de um indivíduo da espécie, que guiavam a seleção natural, agora é a sobrevivência e a 'reprodução' dos genes que levam a responsabilidade. Nasce aí o gene egoísta de Richard Dawkins (que na realidade, segundo nos informa Stove, é idéia original de G. C. Williams).

Emprestei o livro para um colega no intervalo da aula e, lidas 25 páginas, o sujeito me volta com um 'o autor é ignorante demais', ignorante na acepção de brutal. Realmente Stove é implacável, e parece ter um prazer especial em espedaçar as teorias de Dawkins. Quem quer que leia um esboço da teoria do gene egoísta reconhece de imediato que se trata de um símile, que Dawkins não poderia acreditar que um gene possa ser dotado de atributos como inteligência, egoísmo etc. Nosso senso comum funciona perfeitamente aí; de fato, Dawkins afirma expressamente que se trata apenas de uma terminologia mais prática. Mas, a menos que Stove tenha forjado as citações que pinçou do The Selfish Gene, não há como acreditar nisso. Nós nos esforçamos para emprestar alguma sanidade ao Dawkins, mas o danado não colabora. Vejam só o que ele nos diz: [W]e are... robot-vehicles blindly programed to preserve the selfish molecules known as genes; [W]e are manipulated to ensure the survival of [our] genes; [T]he fundamental truth [is] that an organism is a tool of DNA; [L]iving organisms exist for the benefit of DNA. Edward Wilson, que de tanto observar insetos ficou tão maluco quanto Dawkins, afirma que [T]he individual organism is only the vehicle [of genes], part of an elaborate device to preserve and spread them... The organism is only DNA's way of making more DNA.

Pergunta simples: seria possível manipular seres humanos sem ser mais inteligentes que eles? Eu manipulo furadeiras, lápis, latinhas de Coca-Cola etc. e, apesar de minhas evidentes limitações, não hesitaria em dizer que sou mais inteligente que todas essas coisas. Parece claro que, se Wilson e Dawkins estão certos, os genes não só são egoístas (na acepção usual da palavra) como são mais inteligentes que seres humanos! E nós achando que macacos e golfinhos eram os que mais se aproximavam, hem?

Stove declara logo no prefácio que não é religioso (e que não é cristão por considerar o cristianismo incompreensível, o que é apenas parcialmente verdadeiro). Como bom polemista que era, deve ter cansado de debater o assunto com gente até bem mais inteligente que Dawkins; não admira, então, que saiba reconhecer uma natureza religiosa assim que a encontra. O nono capítulo, ou ensaio, de seu livro é chamado A New Religion, a religião de Richard Dawkins e dos sociobiólogos em geral (segundo consta, a teoria do gene egoísta é consenso entre eles). Não é monoteísta porque os genes são muitos, mas ao menos são invisíveis como o Deus cristão. O impulso de resposibilizar uma entidade de inteligência infinitamente superior pelo andamento das coisas terrenas, algo que imaginávamos só ocorrer em algumas religiões, é traço característico também desses novos darwinistas, sociobiólogos ou darwinistas aloprados. O capítulo seria com muita probabilidade o melhor do livro, não fosse o sugestão, ainda que velada, de que a absurdidade desses últimos atesta absurdidade nas religiões de fato. A única desvantagem de uma boa imagem é que ela pode nos levar longe demais.

O livro de Stove não é de filosofia, a despeito da tag Philosophy/Sciense em seu verso. Em vez de falar em precedência ontológica pra rejeitar a idéia de que o gene pode ser mais inteligente que o humano, Stove se limita a uma argumentação que não exige muito da imaginação do mais ávido materialista. Trata-se do já bem familiar exercício de confrontar teoria e realidade física. Menos divertido, mas mais que suficiente.

10 outubro, 2008

Ceticismo Juvenil

Somos particularmente burros durante a adolescência porque não chegamos a saber muito sobre coisa alguma, mas já deixamos de não saber nada. Esse pouco de conhecimento é a perdição de muita gente; alguns permanecem adolescentes até morrer. É natural ocorrer de esse pouco de conhecimento incluir o fato de que é possível, com mais ou menos habilidade, mentir, enganar, lubibriar. Trata-se de mecanismo de defesa tão poderoso quanto perigoso: se sabemos pouco sobre algo e não queremos ser enganados, basta duvidar. Nasce assim o ceticismo juvenil, que duvida de tudo menos do ceticismo em si.

Não se costuma tentar justificar filosoficamente o ceticismo; aceitam-no de bom grado porque é cômodo e porque nos livra do estigma de 'crédulo' ou 'ingênuo' (nada mais constrangedor!). O exemplo disso na política brasileira é evidente: 'todo político é ladrão' porque é difícil verificar quem não é ladrão em meio a tantos ladrões. Essa preguiça mental é adulada por gente até inteligente como o Diogo Mainardi, ainda que ele o faça por motivos humorísticos. Só se pode levar a sério um cético que duvida do próprio ceticismo, já que não existe motivo concebível (além da comodidade, claro) para tirá-lo da jogada.

É durante a adolescência que várias verdades carregadas candidamente desde a infância são questionadas pela primeira vez. Isso não seria ruim se não fôssemos tão preguiçosos e não optássemos pela saída mais fácil: duvidar. Não chega a impressionar que quem é ateu decide ser ateu por essa época, mas quem dirá que 16 é a idade ideal pra esse tipo de decisão? 25 também não é, mas aos 25 não se tem a metade da convicção de alguém de 16.

Poderia haver combinação mais burra que preguiça e convicção? Quem levaria a sério alguém que duvida veementemente da natureza ondulatória da luz sem nunca ter estudado eletromagnetismo? Esse princípio de autoridade, tão óbvio quanto saudável, inexiste fora da área de exatas sabe-se lá por quê. Tanto que quem é de exatas (e isso inclui desde a faculdade de engenharia até a Royal Society) se sente perfeitamente capacitado pra debater o sexo dos anjos. Acho que quando Tomás de Aquino disse que há dois caminhos para a verdade, o da razão e o da fé, ele quis dizer que a ignorância pode, sim, ser uma benção (e não num sentido pejorativo): certamente a intuição metafísica de qualquer empregada doméstica é melhor que a do Edward Wilson, ainda que elas não saibam o que é um cromossomo ou intuição metafísica.

Fico imaginando como seria um tempo em que a ciência não fosse a única esperança de credibilidade intelectual. Joãozinho interpelaria uma roda de amigos com a resolução de uma equação diferencial parcial pelo método da separação das variáveis e seria zombado porque, ora vejam, aquilo estava em completo desacordo com as lições dos sábios escolásticos. Ainda que reconhecendo o absurdo, eu poderia chamar o Joãozinho de lado e, dando-lhe um tapinha nas costas, perguntar: 'viu como é bom?'

27 setembro, 2008

A Excelente Sensação de Estar Sem Pressa

Uma das sensações mais prazerosas que o ser humano pode experimentar é a de estar perfeitamente sem pressa. Talvez isso sirva como uma versão urbana/contemporânea do Nirvana budista. Percebi-o ontem no metrô, quando, apesar de não ter hora pra chegar em casa, mal podia esperar para que o rapaz dos avisos (70% dos atrasos são causados por gente obstruindo as portas... será que fizeram um estudo estatístico ou inventaram esse número na cara dura?) calasse a boca, e para que aquela gente toda tomasse seu rumo e me deixasse mais espaço.

Fui expulso do meu nirvana particular de uma hora pra outra: num instante, metrô vazio e em movimento, pensava eu em coisas agradáveis e inofensivas, como o porquê de o gambá ser tão bonitinho em desenhos animados se na vida real ele é um rato gigante e grotesco. Num outro, metrô parado, lotado e calorento, já não conseguia pensar questões fundamentais como a do gambá e só me perguntava se o rapaz dos avisos realmente tinha que falar tão alto. A mudança abrupta me fez perceber o que eu estava perdendo.

Estamos sem pressa quando o mundo parece girar numa órbita particularmente interessante, quando os instantes se sucedem uns aos outros com um ar donairoso e quase sonolento, dizendo 'olá, com licença', sem atraso ou antecipação. Não queremos que o dia ou o mês acabe, não queremos mudar de emprego ou de namorada, não queremos que a fila ande mais rápido ou que a garçonete acerte seu pedido pela primeira vez na vida. Queremos apenas olhar em redor e poder pensar: assim está bem.

14 setembro, 2008

Os Prazeres e os Dias

Marcel Proust tem um livrinho de textos aleatórios chamado Os Prazeres e os Dias. Li há algumas anos e não gostei muito, mas há nele declarações que acabaram por tornar-se celébres, como a de que a conversa é o passatempo do homem sem imaginação. Num outro texto ele declara que não entende a necessidade de viagens; pode imaginar e apreciar qualquer paisagem de dentro do seu quarto, imaginando-a. Os que não têm uma imaginação tão privilegiada, como eu e você, viajam e apreciam tudo em primeira mão. Mas é verdade que nós ao menos tentamos imaginar como a viagem vai ser; aliás, é bem provável que a tentiva dê a idéia da viagem. Quem está certo sobre o Rio de Janeiro: Nelson Rodrigues, Tom Jobim, ou o carioca mala que mora ao lado? etc.

Percebi com muito atraso que já não se viaja mais assim, ou pelo menos que não é o usual entre gente da minha idade. Hoje a idéia é visitar o leste europeu, o sudeste asiático e alguma ilha obscura e ver no que dá. Já pensou em visitar o Marrocos sem nem saber qual é a capital de lá? Pois é, nem eu. Mas é preciso, dizem, ter esse conhecimento de 'mundo', que de tão vago não poderia mesmo ter outro nome. É mais importante saber que rio corta os montes trans'Alpinos nas coordenadas 51.66, 0.05 (porque esse rio pertence a um país onde as baladas bombam mesmo, cara) a saber por que rota Vasco da Gama alcançou as Índias ou por onde chegou a ajuda francesa na guerra civil americana.

Suspeito que todo esse esforço, que praticamente equivale à criação de uma nova disciplina (chamemo-la de geografia adolescente, ou geografia mochileira), tem como objetivo final um pouco de orgulho próprio, principalmente se envolve a tradicional alfinetada nos americanos. A primeira das duas únicas pretensões intelectuais que o mochileiro tem é provar que o americano não sabe geografia; a segunda é mostrar que a sabedoria aumenta com a distância. São os dois únicos momentos em que, contrariando a própria natureza, o mochileiro exige certa seriedade dos ouvintes.

A segunda é mais interessante e merece um comentário: a distância, seja espacial ou temporal, exerce mesmo certo fascínio. Só que o fascínio advém do desconhecido, e o mochileiro procura o contrário disso. Ele viaja o mundo de ponta a ponta à procura de alguém que seja inteligente o suficiente para entendê-lo, isto é, alguém que seja exatamente como ele. Subvertendo a lógica da aventura clássica, o mochileiro sai bravamente à procura do que é perfeitamente conhecido. Proust estaria certo se estivesse se referindo a isso.

31 agosto, 2008

Sailing to Byzantium

THAT is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
- Those dying generations - at their song,
The salmon-falls, the mackerel-crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre*,
And be the singing-masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.

Minha intenção original era falar do filme dos Cohen (que a essa altura já popularizou, ou algo perto disso, o poema acima) mas, como geralmente ocorre, resolvi desviar o tema. Revendo o post em que colei poemas do Yeats (aqui), percebi que não colei esse, não sei bem por quê. Detesto ter que admitir, mas só fui reparar que ele tinha algo de especial depois de ver o filme. Um pretexto possível é que a temática se repete em vários outros poemas; outro, mais plausível, é que sou um leitor distraído de poesia. Mas vá lá.

Também é estranho eu não ter reparado nele porque o tema da velhice me interessa (nós não entendemos os mais velhos e o mais velhos, ao menos os que têm algo na cabeça, se envergonham pelos jovens). O velho-narrador, tanto no poema quanto no filme, prefere não passar julgamento sobre o mundo atual e simplesmente se declara incompatível com ele. Bom ou ruim, o certo é que our country não tolera mais a velhice, ou os velhos modos. A única passagem do poema em que o narrador ensaia uma objeção é o final da primeira estrofe: caught in that sensual music, all neglect monuments of unaging intellect. Todo o espetáculo da vida e da corruptibilidade da vida (whatever is begotten, born, and dies), apesar de muito bacaninha, pode nos levar a esquecer o que há de incorruptível, eterno, espiritual etc.

Nesse contexto o velho é coisa insignificante, mero declínio de algo que deve por força recomeçar. A menos, é claro, que um grande esforço (espiritual, já que a essa altura não se pode mais depender do corpo pra nada) seja empreendido no sentido de superar a decadência da matéria: unless soul clap its hand and sing, and louder sing. O problema é que a juventude, a mesma que tendia a negligenciar os monumentos do eterno, está fadada a falhar pois, segundo o narrador, não há escola para semelhante matéria que não o estudo das coisas mesmas que eles negligenciam: nor is there singing school but studying monuments of its own magnificence. É por isso que o velho decide ir para Bizâncio, espécie de monte Parnaso aos que têm sede do eterno. Bizâncio aparece em vários outros poemas do Yeats como símbolo de fertilidade cultural, mas nesse em particular (não lembro se é o único) há que considerar também seu aspecto sagrado: the holy city of Bizantium.

Na terceira estrofe começa a oração do narrador, que vai até o final do poema. Aqui a intenção é livrar-se de vez das vestes mortais (this dying animal) com o auxílio dos sábios da cidade. Na última estrofe o distanciamento é completo, não só do que é humano mas de tudo que é mortal: I shall never take my bodily form from any natural thing. Graças a um esclarecimento do próprio Yeats ficamos sabendo a que se refere a alusão a um imperador sonolento: "I have read somewhere that in the Emperor's palace at Byzantium was a tree made of gold and silver, and artificial birds that sang." Parece claro que o objetivo final do narrador é sair da esfera de influência do tempo, a ponto de ele mesmo poder passar a vida a falar das desventuras daqueles que não tiveram a mesma sorte: to sing... of what is past, or passing, or to come.

E o filme? O filme (ou melhor, o livro de Cormac McCarthy em que ele é baseado) serve como reconhecimento do fato de que a preocupação dos 'bons', hoje, é antes de tudo sobreviver. Queixar-se de falta de sofisticação cultural ou de falta de consideração pelos mais antigos ja é coisa bem pueril nesse contexto. Tommy Lee Jones, o 'velho' do filme, diz não saber o que pensar de tanta violência, mas já não são só os velhos que não sabem. É engraçado observar como qualquer preocupação, para se dizer moderna, transforma-se numa questão de sobrevivência. Pelo menos em termos de imaginação os primitivos somos nós.

17 agosto, 2008

Disk Sto. Agostinho

Você está pensando em prestar um concorridíssimo exame de teologia na faculdade mais próxima (de que diabos estou falando?) ou simplesmente não quer passar vergonha perante aqueles que ainda se importam com o assunto? Disk Sto. Agostinho.

Escalopilda dos Santos, de Teresina, Piauí, quer saber se Deus também tem braços e pernas, um nariz e dois olhos etc., já que leu em sua Bíblia (aquela edição para 'estudos femininos' (?)) que o homem foi criado à imagem de Deus. Sto. Agostinho responde:
Não sabia que Deus é espírito e que não possui membros com medidas de comprimento e largura; nem é matéria, porque a matéria é menor em sua parte que no seu todo. Ainda que a matéria fosse infinita, seria menor em alguma de suas partes, limitada por certo espaço, do que na sua infinitude; nem se concentra inteira em qualquer parte, como o espírito, como Deus. Ignorava totalmente que princípio havia em nós, segundo o qual existimos, e por que se diz na Sagrada Escritura que fomos feitos à imagem de Deus.
Romerito José, de Orós, Ceará, ouviu dizer que o último papa se desculpou por não sei que atitude de um papa antigo e quer saber como isso pode, já que aprendeu da avó que a justiça divina é imutável e eterna. Sto. Agostinho responde:
Assim fazem aqueles que se irritam ao ouvir dizer que noutros tempos se permitia aos justos o que agora lhes é vedado, e que Deus deu ordens diversas segundo as circunstâncias de tempo, estando todos sujeitos à mesma justiça. Esses tais não vêem como, no mesmo dia, na mesma casa, o que convém a um membro não convém a outro, o que há pouco era permitido já não é agora; certos atos que eram lícitos e até prescritos aqui, agora são lá proibidos e punidos. Por acaso a justiça é desigual e mutável? Não, os tempos que ela preside não caminham da mesma forma, e justamente por isso se denominam tempos. Os homens -- cuja vida terrana é breve -- são incapazes de harmonizar as razões válidas em séculos passados e de outros povos, que escapam à sua experiência, com os dados que a própria experiência lhes fornece. Eu não conhecia, não percebia todas essas coisas.
Regina Casé, repórter da Globo e especialista em favelas, quer saber de onde vem o mal. Segundo Regina, os moradores da periferia são particularmente virtuosos e criativos, de maneira que os crimes da região representam para ela um grande enigma. Sto. Agostinho responde:
Vi claramente que as coisas corruptíveis são boas. Não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, ou se não fossem boas. Se fossem absolutamente boas, não seriam corruptíveis. E se não fossem boas, nada haveria o que corromper. A corrupção de fato é um mal, porém não seria nociva se não diminuísse um bem real. Portanto, ou a corrupção não é um mal, o que é impossível, ou -- e isto é certo -- tudo aquilo que se corrompe sofre uma diminuição de bem. Mas privadas de todo bem, deixariam inteiramente de existir. Mas haverá maior absurdo do que afirmar que as coisas se tornariam melhores perdendo todo o bem? Portanto, se são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas. E aquele mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância. Porque, se fosse, seria um bem.
Disk Sto. Agostinho.

04 agosto, 2008

O Deus Idiota do Rock

Depois ainda dizem que eu implico com rockeiros. Deve ser porque não lêem entrevistas como a que Chris Martin, vocalista do Coldplay, deu à Veja semana passada. Dos muitos assuntos que pessoas potencialmente idiotas (categoria em que todos os rockeiros estão inseridos, ainda que, ou talvez por isso mesmo, tenham um PhD em Stanford) devem evitar, Martin deve ter abordado quase todos.

A primeira idiotice, tão comum que chega a ser aceitável, é dizer que não ouve os próprios discos porque a incessante busca pela perfeição etc. Pode até ser verdade, mas isso não se diz numa entrevista. Não 100 anos depois de já ter ficado claro que esse tipo de comentário não passa de pedantismo barato. A segunda é comentar as eleições americanas. Esse assunto deveria ser proibido entre 'artistas'. Mas Martin se supera: "Apóio Obama porque sou inteligente." É claro que, se tivesse dito que apóia McCain porque é inteligente, a resposta teria sido igualmente idiota. Depois dispara os juízos de sempre: Obama tem a mente mais aberta (seja isso o que for) etc. Quando apontam uma aparente contradição, a resposta também é a de sempre: parece, mas não é. Porque eu acho que sim.

Há mais. Leiam aqui.

30 julho, 2008

Estética Cristã

12. And it was told king David, saying, The Lord hath blessed the house of Obededom, and all that [pertaineth] unto him, because of the ark of God. So David went and brought up the ark of God from the house of Obededom into the city of David with gladness.

13. And it was [so], that when they that bare the ark of the Lord had gone six paces, he sacrificed oxen and fatlings.

14. And David danced before the Lord with all [his] might; and David [was] girded with a linen ephod.

15. So David and all the house of Israel brought up the ark of the Lord with shouting, and with the sound of the trumpet.

16. And as the ark of the Lord came into the city of David, Michal, Saul's daughter, looked through a window, and saw king David leaping and dancing before the Lord; and she despised him in her heart.

17. And they brought in the ark of the Lord, and set it in his place, in the midst of the tabernacle that David had pitched for it: and David offered burnt offerings and peace offerings before the Lord.

18. And as soon as David had made an end of offering burnt offerings and peace offerings, he blessed the people in the name of the Lord of hosts.

19. And he dealt among all the people, [even] among the whole multitude of Israel, as well to the women as men, to every one a cake of bread, and a good piece [of flesh], and a flagon [of wine]. So all the people departed every one to his house.

20. Then David returned to bless his household. And Michal the daughter of Saul came out to meet David, and said, How glorious was the king of Israel to day, who uncovered himself to day in the eyes of the handmaids of his servants, as one of the vain fellows shamelessly uncovereth himself!

21. And David said unto Michal, [It was] before the Lord, which chose me before thy father, and before all his house, to appoint me ruler over the people of the Lord over Israel: therefore will I play before the Lord.

22. And I will yet be more vile than thus, and will be base in mine own sight: and of the maidservants which thou hast spoken of, of them shall I be had in honour.

23. Therefore Michal the daughter of Saul had no child unto the day of her death.
Já aconteceu mais de uma vez de eu receber como resposta, logo após ter criticado o entusiasmo desenfreado de alguns cultos protestantes, os versículos acima, do segundo livro de Samuel (sexto capítulo). Ou isso ou o quarto provérbio do 14, Provérbios: Where no oxen are, the crib is clean: but much increase is by the strength of the ox.

A idéia, como parece ficar claro, é que se quisermos espalhar a palavra de Deus pode ser necessário suportar certa dose de aviltamento; abrir mão de um ou outro tipo de dignidade terrena; despir-se das vestes reais e ter com o povão. A opinião pública, dirão com razão, não é o nosso Deus. Ou isso ou a esterilidade (pelo menos na King James Bible, a causalidade fica explicitada com o 'therefore' do verso 23).

O provérbio fala da nossa muito comum mania de 'limpeza', da força que se desperdiça em nome dela. O culto mais febril seria uma maneira de libertar-se das convenções, da opinião pública etc. e deixar patente que há uma mensagem que todos podem e devem conhecer.

A interpretação do primeiro trecho me parece perfeita, tanto que nada tenho a acrescentar. O problema com a leitura do provérbio é que, assim como normalmente acontece com leituras de comparações envolvendo animais, ela não considera que não somos animais. O boi vai sempre fazer sujeira, mas nós não necessariamente. Aceita-se de bom grado a sujeira do boi porque ele não poderia fazer diferente.

Está claro que, dependendo da situação, a sujeira pode ser necessária, estejamos nós falando de bois ou humanos. Nesses casos não há o que objetar. Mas seria o culto um desses casos? Essa conversa de que o culto amalucado seria uma maneira de libertar-se da opinião pública soa como qualquer discurso de afirmação: um tanto ridículo. Se a intenção é dar à opinião pública a sua devida importância (pouca ou nenhuma), por que diabos pautar o culto (que, de resto, é dirigido a Deus, não a nós) em nome dela? É mais ou menos como sujeito que não quer acordar às 10 horas e ajusta um aviso sonoro, altíssimo, às 10 horas: 'lembrar de não acordar às 10 horas'.

Não sou a priori avesso ao entusiasmo, apesar de achar que a circunspecção tem tudo a ver com esses momentos (pelo jeito não só eu, a julgar pelas composições sacras desde sempre até 100 anos atrás) -- lembrando que Davi não estava num culto dominical, mas comemorando por um bom, e excepcional, motivo. Sou avesso, sim, a velhos e marmanjos saltitando ao som de um rock'n'roll evangélico improvisado. É no mínimo curioso ter de avisar isso logo aos cristãos, herdeiros da maior tradição estética de que se tem notícia. É a nossa crise de esquecimento em uma de suas manifestações mais melancólicas.

18 julho, 2008

Histórico de Preguiça

Este blog tem um belíssimo histórico de preguiça. Procurei escrever uma ode ao ócio a cada vez que ficava de férias (aqui e aqui). Está claro que isso não poderia durar para sempre.

Agora que minhas férias foram sacrificadas, posso ao menos verificar algo de que desconfiava desde há muito: o sujeito ocupado demais pensa muito pouco. Claro que esse meu 'ocupado' diz respeito a ocupações hodiernas; Tucídides não pensou menos por ter participado da guerra do Peloponeso, antes o contrário.

As ocupações hodiernas são as que primam pela rotina, pela homogeneização, pela sistematização. A linguagem par excellence dessa nova realidade não poderia ser outra que não a linguagem de programação computacional. É o artifício que nos permite repetir indefinidamente um processo relativamente simples, sem risco de erro. Ocorre que a repetição não deixa de existir, apenas foi automatizada. Digo isso porque o funcionário está sempre sob a impressão de que tudo quanto é repetitivo é feito pelo computador, enquanto aquilo que exige espontaneidade e criatividade continua sob a jurisdição do homem. Ora, nem tudo que ainda não foi automatizado exige criatividade; muitas dessas coisas só não foram automatizadas porque ainda não surgiu alguém que soubesse fazê-lo. E a tendência é que esse alguém surja num futuro próximo.

O fato é que, no white-collar job, mesmo as tarefas ditas mais nobres são, no fundo, de natureza repetitiva. Desgraçadamente, a mente humana parece se refestelar na repetição: imprime-se um ritmo e não se fala (pensa) mais nisso. Não parece muito difícil concluir que uma tal rotina leva fatalmente ao esquecimento (o contrário do que Nietzsche entendia por memória quando dizia que o homem superior é aquele de mais larga memória). Filosofia, para Ortega y Gasset, consiste mais ou menos no constante processo de tomada de decisões que nossas vidas nos sugerem. Essas sugestões podem ser percebidas ou não, e, ao que parece, só as percebemos quando não há mais jeito.

É bem verdade que o ócio pode (estranho seria se não pudesse) levar a uma inanição mental igual ou pior. Mas pelo menos não leva a esse caminho necessariamente. Já a correria do escritório não nos deixa outra alternativa que não seguir correndo. E o que é pior: ao final do dia, ainda resta a impressão de que o tempo foi bem aproveitado. Alas, se o aproveitamento for medido em bits, não estaremos errados.

08 julho, 2008

A Perversão Feminina

A mulher está sempre à procura de boas maneiras de esconder sua perversão. Isso faz sentido: a mulher tem todo o direito de ser pervertida, só não tem direito de deixar que os outros o percebam. É natural esperar que numa época de mau gosto generalizado os estratagemas mais comumente utilizados pelas mulheres também sejam de mau gosto.

Um dos mais batidos é o cinema. Nunca (OK, pelo menos não num futuro próximo) vai ser constrangedor dizer numa mesa de bar que tal ou qual filme de Woody Allen, Almodóvar ou Bertolucci é uma maravilha (por mais que o filme seja uma porcaria). Woddy Allen, reconhecendo a necessidade premente que a mulher tem de expressar sua perversão por canais socialmente aceitáveis, escreve roteiros em que a putaria rola solta e ainda posa de intelectual. Já perceberam que só mulheres e gays admiram Allen como escritor?

Por mais que os tempos se modernizem a mulher vai sempre resguardar uma distância de segurança em relação ao homem. A mulher só poderá declarar publicamente que aprecia filmes pornográficos quando o homem inventar algum divertimento ainda mais tosco. Isso parece injusto, mas imaginem a desgraça que adviria caso resolvessem mudar as regras: as únicas razões de ser da união heterossexual seriam anatômicas (elas sozinhas são determinantes, mas estão longe de ser as únicas).

Ontem vi uma atriz pornô sendo malhada no programa da Luciana Gimenez. Se até o programa da Luciana Gimenez ainda vê algo de censurável na pornografia (não que isso seja coerente com o conteúdo do resto do programa), o mundo não está perdido.

24 junho, 2008

Fight Club

Inventei de rever esse filme ontem porque me asseguraram que ele seria mais que simples diversão (como se isso fosse ruim). Cheguei à mórbida conclusão de que ou ele é tomado como simples diversão ou estamos danados.

Quando nos informamos sobre a impressão que o filme deixou nas pessoas, em adolescentes principalmente, percebemos que ela é quase sempre de concordância irrestrita. O próprio narrador (Edward Norton) diz que é 'dificil discordar' da lógica de Tyler Durden quando este ameaça a vida de um balconista que não seguiu seu sonho de ser veterinário. Quando a seita passa a arquitetar pequenos atentados terroristas, a sensação de 'ops, fomos longe demais' só aparece quando um membro do grupo (Bob) é baleado.

Não li o livro de Chuck Palahniuk que deu origem ao filme e por isso não sei até que ponto vai a 'redenção' final do narrador. No filme, ela é meramente instintiva: destruir prédios corporativos, depredar patrimônio público e vandalizar a cidade é 'demais', devemos parar. O filme consegue o prodígio de fazer com que a audiência simultaneamente concorde com Tyler Durden até o final e simpatize com o 'basta' do narrador. Quem está errado, afinal?

Mais ou menos como quem lê Crime e Castigo e se esquece da segunda parte (o castigo), quem vê esse filme tende a só lembrar a revolta de Durden. Se nos pedissem uma citação que define o filme:
Man, I see in Fight Club the strongest and smartest men who've ever lived. I see all this potential, and I see it squandered. God damn it, an entire generation pumping gas, waiting tables; slaves with white collars. Advertising has us chasing cars and clothes, working jobs we hate so we can buy shit we don't need. We're the middle children of history, man. No purpose or place. We have no Great War. No Great Depression. Our Great War's a spiritual war…our Great Depression is our lives. We've all been raised on television to believe that one day we'd all be millionaires, and movie gods, and rock stars. But we won't. And we're slowly learning that fact. And we're very, very pissed off.
Não digo que essa memória fragmentária não faz justiça ao filme: a revolta de Durden é realmente a parte mais atraente do filme (assim como o crime de Raskolnikov é a parte mais atraente do livro), ou, como eu dizia no início, boa diversão. A partir do momento em que se quer tratá-la como algo mais, surge uma série de perguntas meio enfadonhas e totalmente óbvias, do tipo: 'por que os membros do Fight Club são the smartest men who ever lived?' 'O que impede homens tão inteligentes de deixarem de ser frentistas ou garçons?' 'Qual seria uma ocupação digna no entender de alguém cujo maior feito é coordenar uma seita terrorista?'

A guerra deles (membros do Fight Club) não é bem espiritual, ou melhor, eles apenas gostariam que ela fosse. O culto à resistência à dor tenta, creio eu, emprestar algum elemento de ascetismo oriental, mas a pancadaria funciona muito mais como válvula de escape do que como princípio disciplinador. Isso fica claro quando lembramos que o narrador passou a dormir como um bebê depois que criou o clube.

A impressão final é a de que todo o desenrolar do filme é consequência de uma maciça crise de ennui do narrador. A negação do material (a princípio a crítica ao materialismo cego é simpática aos olhos de qualquer pessoa normal) não os leva à afirmação do espiritual, mas à negação de tudo. Como pode alguém ser avesso ao materialismo ao mesmo tempo em que confessa que o mundo se resume à matéria? É a teologia do nada, vulgo niilismo. O pior é que esse tipo de coisa ainda nos impressiona.

19 junho, 2008

De Olhos Bem Fechados

Sempre vi com certa suspeita a manutenção de hábitos reconhecidamente excêntricos. Falo de coisas do tipo dormir em pé, malhar de madrugada ou substituir água por coca-cola. Num mundo em que todo mundo quer ser único (isso é absurdo, já que é óbvio que somos únicos), esses hábitos, ainda mais quando alardeados aos quatro ventos, parecem forçação de barra. Mas eis que quis o destino que eu adquirisse um.

Meu hábito excêntrico é gostar de dormir com a luz acesa. Não é tão raro assim; tenho pelo menos uns dois colegas que também gostam. Fico pensando (por muito tempo) em algo que justifique isso não porque acho que exista algo que justifique, mas porque é divertido. A explicação canônica é que dormir de luz acesa se assemelha a dormir de dia, e dormir de dia é sempre bom, pelo menos quando não se faz isso normalmente. Outra explicação é que se tem a impressão de estar sempre alerta (parece que a luz não permite que seu sono se aprofunde), e eu sempre quis ter um sono como o daqueles cowboys que dormem com um olho aberto.

Uma coisa é certa: a luz prolonga o período de torpor contemplativo que antecede o sono propriamente dito. Já cheguei a várias decisões momentosas nesses períodos e quero crer que elas não teriam sido possíveis caso eu tivesse perdido consciência minutos antes. Exemplos de algumas dessas decisões: cortar o cabelo no dia seguinte, passar a comer frutas, estudar algum assunto, chegar a um diagnóstico para a atual condição da humanidade etc.

Outra vantagem são os sonhos. Passei a sonhar bem mais depois que resolvi deixar a luz acesa. São sempre sonhos de uma luminosidade sempiterna. De ontem pra hoje sonhei com uma moça de dentes branquíssimos, tão brancos que eu tinha de encolher os olhos pra poder enxergá-los; eles emitiam aqueles raios de luz em forma de flecha. O sol também tem presença recorrente: a lâmpada cilíndrica vai se achatando e ficando mais robusta até se transformar numa esfera perfeita. O mais comum, porém, são as cenas de guerra. Já sonhei que estava numa praia (sol a pino) em que a única barraca era a minha, e havia um sujeito só pra me servir cerveja. De repente vários carros-anfíbio surgiam na costa e soldadinhos pulavam deles, destruindo todo o cenário logo atrás de mim. Também já participei de várias batalhas em descampados ensolarados. Gostaria de sonhar com a luz que cegou Dante no Paraíso, por isso mantenho a luz acesa.

10 junho, 2008

Fetiche Libertário

As muitas restrições impostas arbitrariamente à liberdade humana fizeram, imagino eu, com que se criasse o fetiche libertário. Ou isso ou imaginar que imposições naturais, como o nome ou o sexo com que nascemos, já seriam suficientes pra criá-lo. Excetuando nossa época, em que cirurgias de mudança de sexo são financiadas pelo Estado, o consenso parece indicar que esse tipo de rebelião é ridículo. Parando pra pensar, muito do que nos é mais essencial nunca foi oferecido como opção.

Nomear personagens é dificuldade de quase todo escritor; o que se espera é que o nome soe como se tivesse sido imposto pela Realidade, não pelo arbítrio de quem escreve. Tudo o que nos interessa num personagem interessante é o que está fixo nele. Um personagem que é só potência pra mudar não é um personagem, é um boneco sem nome. Lord Jim só me interessa até hoje porque nunca conseguiu esquecer o dia em que abandonou o S. S. Jedah. Se conseguisse não seria menos humano, mas não haveria motivo pra escrever um livro sobre ele.

Sempre me acusam de determinismo ou conformismo quando falo dessas coisas. Em verdade só me oponho ao determinismo oposto, o de achar que nada pode ficar determinado. A liberdade que se enaltece em panfletos políticos não é, infelizmente, negativa: ela é movimento puro, daí que resulte destrutiva muitas vezes. A pedra não deixa de ser livre por não se mexer; deixa de sê-lo por não poder se mexer. Hoje não somos tão livres pra obedecer (pensem nas mulheres) ou pra permanecer inertes (pensem nos jovens). Por que o movimento libertário se recusa a apadrinhar os obedientes e os inertes?

Acho que uma pedra contribui mais para a felicidade humana que o ministro Temporão. Uma pedra não faz bobagens e é até capaz de nos divertir de quando em vez. Eu vou além da pedra: critico o ministro Temporão. É muito gratificante poder sanar um pouco de minha dívida para com a humanidade com essas poucas linhas. E o que é melhor: não precisei mudar em nada.

01 junho, 2008

Marcha da Maconha

É, eu sei que estou bem um mês atrasado. Na verdade eu nem pretendia comentar o assunto não fosse uma série de pequenas coincidências. Por ocasião do fim do Wunderblogs, resolvi conhecer alguns dos blogs de lá, já que só conhecia o do Alexandre. Visitei primeiro o do FDR, talvez na esperança inconsciente de ver o Delano sendo malhado publicamente. Não encontrei nada do tipo, mas tem muita coisa interessante por lá. Esse post, porém, chamou minha atenção por afirmar que Reinaldão Azevedo acha que quem defende a legalização das drogas devia ser preso. Depois fui conhecer o blog do Filthy McNasty, de que também gostei, e que também traz um post sobre o assunto: esse aqui. McNasty está de acordo com FDR e ainda comenta a respeito da idéia de uma lei contra a apologia ao crime.

Fui atrás de ler os posts do Reinaldo Azevedo quase certo de que ele tinha exagerado mesmo (já tive a mesma impressão em outras ocasiões). Não vi exagero nenhum. O Azevedo não acha que quem defende a legalização das drogas deve ser preso; ele acha que quem vai às ruas incentivando o consumo de drogas deve ser preso. Eu também acho, e parece que a maioria das famílias brasileiras acha o mesmo. Tanto FDR quanto McNasty vêem nisso cerceamento da liberdade de expressão, mas quem disse que a liberdade de expressão não deve ser regulada? O sujeito que entra na C&A pelado pra protestar contra os altos preços das roupas deve ser tolerado? O maconheiro que passa na minha rua cantando as maravilhas da maconha deve ser tolerado? No meu entender, não.

Espero que isso não pareça um simples jogo de palavras: ser a favor da legalização das drogas é diferente de participar de uma passeata. Escrever um artigo expondo dados favoráveis à legalização (assim como fizeram Milton Friedman e inúmeros outros) é diferente de empunhar cartazes melodramáticos. Convenhamos, o ônus da prova está do lado de lá da cerca legal. Ninguém mais que os defensores da legalização tem o dever de informar com cuidado a população. No site da Marcha da Maconha, porém, não consigo encontrar uma única nota sobre os danos que a erva pode causar à saúde de quem fuma. Quando confrontam números, é de maneira leviana (no ritmo do post passado, fico sem saber se se trata de burrice ou de má-fé): por exemplo, ao lembrar que o álcool ou o tabaco matam mais que a maconha ou a cocaína. Ora, se o status legal de uma substância é tão irrelevante a ponto de não influir sobre o número de consumidores (é essa a resposta que recebemos ao lembrar que o tabaco mata mais porque é mais consumido), por que organizar uma passeata pela legalização?

McNasty declara finalmente que a lei [contra a apologia ao crime] essencialmente cerceia o direito de o cidadão dizer o que pensa. Na verdade ela cerceia o direito de o cidadão dizer o que pensa da maneira que ele bem entender. Não sei de onde surgiu essa idéia maluca segundo a qual a liberdade de expressão deve sobrepujar todo o resto. Isso corresponde a dizer que idéias, ou a maneira com que são apresentadas, não têm consequências, ou, se têm, devem ser desprezadas frente aos caprichos do opinador. Até os liberais mais exaltados estavam cientes do equilíbrio precário entre a liberdade individual e a ordem coletiva. Como diria Richard Weaver, ideas have consequences, e as consequências no caso da legalização das drogas estão longe de ser desprezíveis.

31 maio, 2008

Como e Por Que Discutir

Diferentemente do que pensava Schopenahuer, a maior motivação pra participar de um debate não é a perspectiva de vencê-lo, é a perspectiva de ver seu oponente derrotado. Pode parecer a mesma coisa, mas às vezes a necessidade de desacreditar a opinião do outro é bem mais premente que fazer prevalecer a sua própria. Se não me engano foi Oscar Wilde (discordo dele quase sempre, mas era um sujeito inteligente) quem disse que é a insipidez do argumento alheio que mantém a discussão viva.

É claro que Wilde queria dizer (ou ao menos é o que ele queria que entendêssemos) que uma opinião insípida, ainda que verdadeira, deve ser combatida. Isso, obviamente, é bobagem de quem quer soar bacaninha. É preciso ter disciplina de espírito até pra concordar com o ministro Eros Grau, ou com o ministro Ricardo Lewandowski. Ambos vêem o óbvio na questão da pesquisa com células-tronco: a arrogância da ciência. É pena que apontem uma origem tão esdrúxula pra essa arrogância (ela seria um véu para acobertar os interesses do, brr, Mercado). A burrice analítica, porém, não compromete a primeira impressão, essa sim completamente verdadeira.

A frase do Wilde é aproveitável quando é usada no sentido do Teorema da Autoridade Invertida, de que já falei aqui. A tacanhice da argumentação alheia é apenas indício de falsidade. Ufa, Fulano discorda de mim. Quem nunca teve esse tipo de alívio?

É por essas e outras que sempre senti falta de uma interpretação (brr) psicológica para o debate. Pode parecer ingenuidade, mas ainda acredito na esperança de aprendizado (aliás, se, como queria Schopenhauer, todo debate tem como objetivo a 'vitória', por que o dele seria uma exceção?). Minha experiência pessoal parece confirmar essa esperança: nunca mudei de idéia sobre questões fundamentais lendo livros; os livros só sedimentaram de vez a mudança. O ser humano está sempre seguindo indícios mais ou menos claros, e por algum motivo eles aparecem com mais frequência numa conversa com o vizinho do que num tratado de teologia. A única exceção que consigo pensar agora é o Orthodoxy, do Chesterton, mas bem que esse livro parece a cópia de um grande debate, não?

É graças a essa ingenuidade latente (de que me orgulho) que não posso fugir à pergunta: por que Fulano acredita nisso? Ignorância, má-fé ou eu que estou errado? Quando Sam Harris rejeita o argumento da contingência de Leibniz com um mero 'isso é fugir do problema', podemos pensar em ignorância e má-fé simultaneamente. Ignorância porque muita gente realmente acha que recorrer à única solução possível de um problema é fugir do problema. Isso corresponde a dizer que, sendo os catetos de um triângulo retângulo 3 e 4, concluir que a hipotenusa vale 5 representa uma fuga. E má-fé porque Harris lembra triunfante que o argumento não prova a existência do Deus cristão, quando é notório que essa nunca foi a intenção do argumento. Se bem que, pensando bem, talvez ele não saiba disso. Viram que complicado!

O problema dos comunistas não é menos intrigante. Na época de Hayek era mais plausível acreditar que os defensores do socialismo desistiriam da idéia assim que enxergassem suas consequências. O próprio Hayek sugere isso inúmeras vezes no Road to Serfdom. Mas e hoje? Como diferençar os meramente tapados dos genuinamente picaretas? Os casos extremos são de análise fácil, mas a banda intermediária, bem difusa, está longe de poder ser desprezada. Vai que há almas bem intencionadas lá por dentro. Eles precisam da nossa paciência.

30 maio, 2008

Cientistas Cristãos (2)

6. Nicolaus Copernicus (1473-1543)

Copérnico, sendo católico, foi o primeiro astrônomo a formular a teoria do heliocentrismo (De revolutionibus orbium coelestium, 1543). Assim como Galileu depois dele, Copérnico foi recebido com entusiasmo em Roma por suas teorias. A principal hipótese dele, porém, estava errada: o sol não é o centro do universo, é o centro do sistema solar apenas.

7. Galileu Galilei (1564-1642)

Ver aqui.

8. Blaise Pascal (1623-1662)

Pascal ainda é, creio eu, considerado o pai da teoria de jogos ou teoria das probabilidades. Na física, a contribuição principal foi na hidrostática, com o chamado princípio de Pascal: uma pressão aplicada a um fluido incompressível é transmitida integralmente para o restante do fluido (princípio da prensa hidráulica). Em meios não-científicos, ele é principalmente lembrado pela aposta de Pascal (Pascal's wager), que consiste em afirmar que, Deus existindo ou não, é sempre preferível acreditar que Ele existe. O ceticismo moderno mal consegue esconder sua revolta contra esse tipo de raciocínio.

9. Isaac Newton (1643-1727)

Está claro que Newton dispensa apresentações. O que nem todo mundo sabe é que ele se dedicava a experimentos de alquimia a à religião tanto quanto à mecânica. Também estudou óptica por muito tempo, e é natural que tivesse uma explicação mecanicista para o fenômeno da luz (a qual, para ele, era formada por pequenas partículas que eram desaceleradas ou aceleradas ao serem refratadas para um meio mais ou menos denso). A resistência que a teoria ondulatória da luz teve de enfrentar deve-se, em parte, ao grande prestígio de Newton.

10. Max Planck (1858-1947)

É considerado o fundador da teoria quântica (e um dos últimos a acreditar nela). Estudando a radiação emitida por um corpo negro, Planck chegou à conclusão de que a energia devia ser quantizada, mas preferiu assumir que sua análise estava errada a admitir essa hipótese. Só mudou de idéia mais tarde. Na expressão matemática utilizada para calcular a energia de um fóton (E = hf), aparece h, a constante de Planck. A mesma constante (só que reduzida) também aparece no cálculo de incertezas no princípio da incerteza de Heisenberg.

28 maio, 2008

Memória de Cabeleireiro

Por que o cabeleireiro sempre pergunta como você usa seu cabelo se ele teve oportunidade de ver isso quando você chegou lá? Supõem eles que usamos penteados diferentes só pra ir visitá-los?

25 maio, 2008

Assalto na Dutra

Bom, preferia não ter de ser assaltado pra poder verificar, ainda que pra um espaço amostral extremamente exíguo, uma dessas teses que gostamos de esfregar na cara dos outros numa mesa de bar. A primeira tese é a de que o povo (na acepção mais amorfa e generalizante possível) é em essência direitista, o que equivale a dizer que é natural ser de direita assim como é natural perder os dentes de leite, ficar calvo ou interessar-se pelo sexo oposto. A segunda tese, meio óbvia e decorrente da primeira, é a de que o povo brasileiro não sabe se expressar politicamente. Se soubesse, teríamos pelo menos um partido de direita.

Fui assaltado hoje pela manhã voltando de São Paulo pra São José dos Campos, no mesmo ônibus que sempre tomo. O sujeito subiu num dos pontos do caminho (aliás, por que é mesmo que esses ônibus de linha param nos pontos?) e sacou uma arma que eu gostaria de poder descrever em detalhes, mas não conheço nada a respeito. Vovós suspirando, crianças chorando e todo mundo tentando esconder objetos de valor. Consegui esconder minhas coisas à exceção do telefone celular, que resolvi meter no saco estendido diante de mim pra não levantar suspeitas (meninas, não adianta ligar, não vou poder atender). As imprecações do assaltante são as mesmas que vemos nas novelas: 'Motorista, sem gracinhas ou eu passo chumbo'; 'Quem esconder dinheiro leva bala' etc.

Mas esse assaltante era diferente, ao menos dos poucos que tive a infeliz oportunidade de observar em ação. Estava nervoso demais, falava alto demais. Se tivesse tido um pouco mais de paciência poderia ter levado vários outros celulares, relógios, iPods e alianças sem risco adicional. Saiu apressado, meio envergonhado. Já na porta, pronto pra descer, virou e disse:

-- Não sou ladrão. Meu filho está com câncer e não posso pagar o tratamento. Vocês me perdoem. Me perdoem e fiquem com Deus.

Mentira? É até provável, apesar de que o sujeito poderia ter simplesmente ido embora calado. A reação dos passageiros, porém, pareceu unânime: era mentira e, mesmo que não fosse, não justificava o assalto. Ônibus de linha não deveria parar nos pontos da estrada. E o pessoal que mora longe da rodoviária? Pega o circular antes; gasta mais mas garante a segurança de todos. O que segura a sociedade, disse outro, é a família; um familiar de cabeça fria poderia ter aconselhado o pai desesperado e evitado o assalto. Não se deve julgar, mas que está errado, está. Essa interpretação do crime surgiu naturalmente, sem qualquer esforço analítico. Por que ela não sai de dentro do ônibus?

17 maio, 2008

A Carne é Forte

Existem várias coisas que eu gostaria de melhorar em minha vida e que, se fossem jogadas contra mim num juízo final hipotético, o máximo que eu poderia fazer seria baixar a cabeça e resignar-me às agruras penitenciais. Curiosamente, comer carne não é uma delas, e acho cada vez mais difícil encontrar um argumento de ordem ética que me faça mudar de idéia. Trata-se de uma daquelas felizes ocasiões em que interesse pessoal e consciência limpa andam de mãos dadas.

Nesse sentido, é reconfortante ler artigos de vegetarianos inteligentes como o de Taylor Clark da Slate: Vegetarian myths, debunked. O título do artigo, porém, não faz o menor sentido. Antes pelo contrário, Clark mostra que os 'mitos' não são mitos, que eles existem mesmo, mas que não se aplicam a ele em específico. Clark não perderia tempo dizendo que gosta de bacon ou que não revira os olhos ao avistar um prato de carne se isso não fosse de alguma maneira notável. Acho inclusive que a maioria dos vegetarianos pensa como ele. Mas, convenhamos: daqueles que não pensam assim, quantos são vegetarianos? Alguém já viu um não-vegetariano dizendo que um hambúrguer de carne é nojento?

A verdade é que nós fazemos parte de vários pequenos grupos e é impossível responder por todos os nossos colegas. Imaginem se eu tivesse de justificar toda besteira cometida por um cristão, cearense, estudante de engenharia ou ouvinte de rock! Infelizmente, muitas vezes ocorre (e muitas vezes não é fácil evitá-lo) de você cair num grupo em que a idiotia predomina ou pelo menos tem voz forte. A idiotia pode até não predominar entre vegetarianos, mas o 'discurso' oficial do vegetarianismo é idiota. E esse discurso, nem adianta espernear, não foi construído por carnívoros implicantes; ele vem de dentro.

A parte do artigo de Clark que mais reflete essa idiotia é aquela em que ele diz estranhar a desfaçatez dos que comem carne suína e ainda assim paparicam seus bichos de estimação. Haveria aí uma incompatibilidade inarredável, uma hipocrisia típica dos que não pararam 5 minutos pra pensar no que fazem. Essa idéia parte de um sentimento louvável: o de benevolência. Também acho que os animais devem ser tratados com benevolência. Aliás, é o mesmo que Platão dizia, com a diferença de que ele incluía escravos entre os animais. A divergência começa precisamente aqui: eu acredito que seja possível comer carne (ou até caçar) sem deixar de ser benevolente com os animais; Stanley Clark vê uma dose de crueldade em cada McLanche Feliz, ainda que seja uma crueldade diluída em displicência.

O argumento pela belevolência com animais não é bem de ordem ética: como poderíamos falar em ética em relação a seres que não fazem idéia do que isso seja, que, mais, não fazem idéia nenhuma? Nesse momento algum ativista lembra que tirar proveito dos animais é duplamente cruel exatamente por isso. Se estendemos essa lógica às plantas, mais indefesas ainda, ouvimos que as plantas não sentem dor. Se perguntamos se não haveria problema em matar um porco anestesiado, ouvimos que os animais são diferentes das plantas. Ora, isso é bem verdade! Então por que não reconhecer que animais (irracionais) e seres humanos são diferentes também?

Não acho que seja necessário falar em cristianismo (alma, inteligência divina etc.) pra que essa diferença fique bem clara. O fato é que o porco tem uma existência meramente instintiva: ele não pretende emagrecer pra conquistar uma porquinha no chiqueiro vizinho, ele não faz planos que não estejam direcionados à satisfação de uma necessidade imediata. A existência de um porco está inteiramente projetada sobre o agora, é como um ponto sobre a linha dos tempos. Um acidente ou uma morte repentina não vai nem pode frustrar nada porque não havia nada pra ser frustrado; o sofrimento de seus companheiros é também instintivo e nem sequer existiria se fosse de alguma maneira prejudicial à espécie.

A maneira com que os ativistas à Peter Singer falam guarda uma similitude meio sinistra com a tal heartlessness of ideas: estima-se o conceito de humanidade em vez de se estimar o homem concreto; estima-se a comunidade animal em vez de se estimar animais específicos. É claro que Clark está a anos-luz de distância de um Singer, mas é esse raciocínio que o faz estranhar eu gostar de animais e ainda assim não ver problemas em comer carne. O pressuposto é o de que, por ambos pertencerem à comunidade animal, ambos merecem a mesma atenção. Ora, a atenção que qualquer animal merece é, pelo menos, a mínima necessária para que não sofra inutilmente. O que vier além disso depende de uma relação pessoal que nada tem a ver com a comunidade animal tomada em bloco. Estamos falando de um animal, não do Animal.

10 maio, 2008

Cientistas Cristãos (1)

As figuras que vão abaixo são todas muito conhecidas, mas o fato de serem cristãos aparece com alguma surpresa. O exemplo mais característico é o de Leibniz, que só é lembrado entre o populacho por ter inventado o cálculo e por uma caricatura grotesca de autoria do Voltaire. Depois de cada blurb vou colocar uma citação do sujeito que relacione a ciência a algum princípio cristão.

1. Gottfried Leibniz (1646-1716)

Não sei até que ponto isso é surpreendente, mas foi Leibniz quem inventou o sistema binário de números. Isso faz com que ele possa ser chamado, para usar o termo predileto dos historiadores da ciência, de pai da engenharia de computação. As contribuições à engenharia mecânica são várias: projetou bombas e prensas hidráulicas, submarinos, relógios, máquinas a vapor etc. Esse pessoal mais antigo ficava entediado e ia construir pirâmides. É assombroso. Quanto ao cálculo: a notação que usamos hoje para diferencial, integral etc. foi invenção de Leibniz. Não se trata apenas de uma notação, mas de um método (em oposição ao método geométrico de Newton). O resultado é que praticamente não há grandes contribuições ao cálculo vindo de anglo-saxônicos (excetuando Taylor e Maclaurin) durantes os séculos 17 e 18.

In whatever manner God created the world, it would always have been regular and in a certain general order. God, however, has chosen the most perfect, that is to say, the one which is at the same time the simplest in hypothesis and the richest in phenomena.

2. James Prescott Joule (1818-1889)

A idéia de ver calor como uma forma de energia parece óbvia hoje, como usualmente ocorre com as grandes descobertas. A coisa é de tal importância que o Joule passou a ser uma unidade derivada do sistema internacional de unidades (SI), a unidade de energia.

After the knowledge of, and obedience to, the will of God, the next aim must be to know something of His attributes of wisdom, power, and goodness as evidenced by His handiwork.

3. Johannes Kepler (1571-1630)

O trabalho de Kepler foi muito mais de observação (e de paciência) do que propriamente analítico. As chamadas três leis de Kepler (não podem ser chamadas de leis, mas isso é outro assunto) -- formato das órbitas, tempo/área de varredura e relação entre período e eixo de órbita -- só vieram a ser demonstradas matematicamente com o advento da dinâmica de Newton. Parece que ninguém mais que o Kepler levou a sério essa disposição de observar, e com isso aprender algo da, obra divina.

Great is God our Lord, great is His power and there is no end to His wisdom. Praise Him you heavens; glorify Him, sun and moon and you planets. For out of Him and through Him, and in Him are all things... We know, oh, so little. To Him be the praise, the honor and the glory from eternity to eternity.

4. Michael Faraday (1791-1867)

Diferentemente do Kepler, cujo mérito maior foi de observação empírica, Faraday teve insights teóricos que soam ainda mais impressionantes se levamos em conta que a matemática da época era bem limitada e que mesmo dessa matemática ele conhecia pouco. A lei da indução magnética de Faraday (que é uma das quatro equações de Maxwell) é, segundo consta, uma das leis de mais difícil 'visualização' na Física, ainda que se disponha de um ferramental matemático adequado. Menos conhecidas são suas contribuições como químico: descobriu o benzeno (o velho benzeno) e mexia com polímeros.

Speculations? I have none. I am resting on certainties. 'I know whom I have believed and am persuaded that He is able to keep that which I have committed unto Him against that day.'

5. James Clerk Maxwell (1831-1879)

Maxwell conseguiu sintetizar o eletromagnetismo inteiro em quatro equações simples (lei de Gauss, lei de Gauss para o magnetismo, lei da indução de Faraday e lei circuital de Ampère). Tudo sai daí. Lembra aquela expressãozinha para refração de um raio de luz entre meios com índice de refringência diferentes? Era empírica até ser demonstrada por uma equação de Maxwell (Snell, então, era uma espécie de Kepler da óptica geométrica). A primeira fotografia colorida (apresentada por ele mesmo na Royal Institution) foi possível graças a contribuições suas à análise de cores. On top of that, mexia com termodinâmica estatística (que é a que deve ser utilizado se quisermos resultados realmente precisos) e é considerado o pai da teoria de controle.

Almighty God, Who has created man in Thine own image, and made him a living soul that he might seek after Thee, and have dominion over Thy creatures, teach us to study the works of Thy hands, that we may subdue the earth to our use, and strengthen the reason for Thy service; so to receive Thy blessed Word, that we may believe on Him Who Thou has sent, to give us the knowledge of salvation and the remission of our sins. All of which we ask in the name of the same Jesus Christ, our Lord.

05 maio, 2008

Somos Livres?

Eu digo que sim, e pensei que fosse coisa óbvia. Estive conversando com uns amigos sobre livre-arbítrio e vi que não é bem assim (refiro-me à obviedade). Parece que uma vez mais o desenvolvimento desproporcional de uma área do conhecimento (conhecimento científico) tem gerado confusões. A comparação mais comum que ouço nesse contexto é a de um sistema de simulação computacional cujas variáveis são todas criadas e manipuladas pelo usuário. O usuário tem conhecimento de e poder sobre todas as variávies; é o Deus do sistema.

O absurdo dessa comparação é evidente: ela leva diretamente à conclusão de que o ser humano é tão livre quanto uma pedra. Mas é sabido que uma pedra, quando solta, cai sempre; eu, como humano, posso levantar, deitar, correr etc. Quando perguntamos ao autor da comparação se somos como a pedra, ele responde que não, que somos mais complicados: há uma miríade de impulsos nervosos que percorrem várias sinapses em poucos milissegundos e coisa e tal. Do ponto de vista filosófico, porém, essa complexidade fisiológica não acrescenta nada; seríamos apenas uma pedra que transmite milhares de sinais antes de cair. Basta pensar no mecanismo de apagar a vela do bolo na antiga abertura do Castelo Rá-Tim-Bum. Funcionalmente há mais complexidade naquilo do que num simples sopro? A mentalidade cientificista, mantendo uma coerência quase cega, só admite conceder qualquer complexidade aos entes se essa complexidade for também científica.

Um sintoma engraçado dessa maneira de pensar são os estudos que dizem ter desvendado essa ou aquela habilidade cognitiva por terem detectado atividade intensa na região setentrional esquerda do córtex cerebral. Usualmente, bastaria falar em causa e efeito pra acabar com a confusão, mas a mentalidade cientificista exige analogias mecânicas: é como se um grupo de pessoas se reunisse numa sala e acendesse as luzes do recinto. Da percepção bem óbvia de que há movimento lá dentro partimos pra conclusão de que sabemos do que eles conversam; mais ainda, conhecemos o princípio que lhes concede a própria fala.

Outra maneira de ver o problema: digamos que a vontade de comer rapadura excite o lóbulo direito do cérebro. Os indivíduos A e B estão com fome e, o que é pior, vieram do sertão cearense. Como justificar o fato de que A resolveu comer a guloseima e B não? Porque B é religioso e seu Messias proibiu a ingestão de rapadura, sob pena de prejudicar o desempenho sexual dos hereges. A disciplina e a piedade religiosas, diz-se, são dirigidas por determinada atividade neurológica. O indivíduo C, seguidor da mesma religião e também cearense, resolveu comer a rapadura ainda assim porque teve uma visão em que o anjo Sebastião, vestido com a camisa do vovô, afirmava ser a abstinência de rapadura uma grande bobagem e que deveria haver, por isso, um cisma na Igreja, restringindo o território sagrado dos comedores de rapadura à margem oriental do rio Banabuiú, território bastante propício ao plantio da cana-de-açúcar.

Segundo os cientificistas, as peripécias desenvolvidas no parágrafo anterior são fruto de mecanismos causais simples (determinadas impressões causadas por impulsos elétricos geraram a visão do anjo). Essa hipótese fica provada porque, caso danificássemos o lóbulo direito do ser humano, nada do que vai acima teria acontecido. Isso equivale a dizer que tudo que é necessário pra que algo aconteça é também suficiente pra que algo aconteça. Isso equivale a dizer que uma fuselagem sem asas e sem motor pode, estando parada, alçar vôo. Eu também acho que pode, mas uso o termo certo: milagre.

04 maio, 2008

Ora, Vírgulas!

Quando eu era criança tive de ler um livro chamado Ora, Vírgulas! no colégio. Não lembro os detalhes, mas contava o assombroso caso de uma cidade em que todas as vírgulas resolvem desaparecer. Os livros das bibliotecas, das escolas etc. ficam todos sem vírgulas, mais ou menos como numa versão light do último parágrafo de Ulysses. As crianças, claro, começam a perceber a importância das vírgulas e por aí vai.

Hoje, quando encontro uma pontuação que me desagrada, tenho vontade de vituperar: ora, vírgulas! Não quero dizer com isso que o problema seja sempre falta de virgulas; pode ser o contrário, pode ser um ponto-e-vírgula que deveria aparecer e não apareceu. Semana passada, estava lendo um livrinho do Paulo Francis, o ótimo Francis, e não parava de gritar 'ora, vírgulas!; ora, vírgulas!' enquanto socava a cama. Meu pai viu e perguntou: 'mas, filho, ele não ficou direitista antes de morrer?' O efeito terapêutico, porém, é altamente recomendável: algo como o Serenity Now! do pai do George no Seinfeld.

Confesso que nunca li romances do Jorge Amado (comecei uns três e desisti), mas já dirigi uns brados a textos dele, que Deus o tenha. Tenho um exemplo à mão: 'Ainda não consigo determinar as razões por que a obra de Campos de Carvalho não prosseguiu em sua carreira internacional. São coisas que acontecem, mais que inexplicáveis, infelizes.' Essa acumulação apressada de informações é algo de que todos nós, quando crianças, já fomos vítimas. Penso logo num pequerrucho fazendo um montinho de sujeira e jogando-o pra debaixo do tapete, displicente e bonachão.

Boa pontuação, para não falar em estilo, é a cortesia do prosador. É como se ele fosse espalhando rampas e escadinhas pelo caminho pra evitar estacadas desagradáveis. Deviam enfiar essa analogia em algum livrinho de produção de textos.