27 setembro, 2008

A Excelente Sensação de Estar Sem Pressa

Uma das sensações mais prazerosas que o ser humano pode experimentar é a de estar perfeitamente sem pressa. Talvez isso sirva como uma versão urbana/contemporânea do Nirvana budista. Percebi-o ontem no metrô, quando, apesar de não ter hora pra chegar em casa, mal podia esperar para que o rapaz dos avisos (70% dos atrasos são causados por gente obstruindo as portas... será que fizeram um estudo estatístico ou inventaram esse número na cara dura?) calasse a boca, e para que aquela gente toda tomasse seu rumo e me deixasse mais espaço.

Fui expulso do meu nirvana particular de uma hora pra outra: num instante, metrô vazio e em movimento, pensava eu em coisas agradáveis e inofensivas, como o porquê de o gambá ser tão bonitinho em desenhos animados se na vida real ele é um rato gigante e grotesco. Num outro, metrô parado, lotado e calorento, já não conseguia pensar questões fundamentais como a do gambá e só me perguntava se o rapaz dos avisos realmente tinha que falar tão alto. A mudança abrupta me fez perceber o que eu estava perdendo.

Estamos sem pressa quando o mundo parece girar numa órbita particularmente interessante, quando os instantes se sucedem uns aos outros com um ar donairoso e quase sonolento, dizendo 'olá, com licença', sem atraso ou antecipação. Não queremos que o dia ou o mês acabe, não queremos mudar de emprego ou de namorada, não queremos que a fila ande mais rápido ou que a garçonete acerte seu pedido pela primeira vez na vida. Queremos apenas olhar em redor e poder pensar: assim está bem.

14 setembro, 2008

Os Prazeres e os Dias

Marcel Proust tem um livrinho de textos aleatórios chamado Os Prazeres e os Dias. Li há algumas anos e não gostei muito, mas há nele declarações que acabaram por tornar-se celébres, como a de que a conversa é o passatempo do homem sem imaginação. Num outro texto ele declara que não entende a necessidade de viagens; pode imaginar e apreciar qualquer paisagem de dentro do seu quarto, imaginando-a. Os que não têm uma imaginação tão privilegiada, como eu e você, viajam e apreciam tudo em primeira mão. Mas é verdade que nós ao menos tentamos imaginar como a viagem vai ser; aliás, é bem provável que a tentiva dê a idéia da viagem. Quem está certo sobre o Rio de Janeiro: Nelson Rodrigues, Tom Jobim, ou o carioca mala que mora ao lado? etc.

Percebi com muito atraso que já não se viaja mais assim, ou pelo menos que não é o usual entre gente da minha idade. Hoje a idéia é visitar o leste europeu, o sudeste asiático e alguma ilha obscura e ver no que dá. Já pensou em visitar o Marrocos sem nem saber qual é a capital de lá? Pois é, nem eu. Mas é preciso, dizem, ter esse conhecimento de 'mundo', que de tão vago não poderia mesmo ter outro nome. É mais importante saber que rio corta os montes trans'Alpinos nas coordenadas 51.66, 0.05 (porque esse rio pertence a um país onde as baladas bombam mesmo, cara) a saber por que rota Vasco da Gama alcançou as Índias ou por onde chegou a ajuda francesa na guerra civil americana.

Suspeito que todo esse esforço, que praticamente equivale à criação de uma nova disciplina (chamemo-la de geografia adolescente, ou geografia mochileira), tem como objetivo final um pouco de orgulho próprio, principalmente se envolve a tradicional alfinetada nos americanos. A primeira das duas únicas pretensões intelectuais que o mochileiro tem é provar que o americano não sabe geografia; a segunda é mostrar que a sabedoria aumenta com a distância. São os dois únicos momentos em que, contrariando a própria natureza, o mochileiro exige certa seriedade dos ouvintes.

A segunda é mais interessante e merece um comentário: a distância, seja espacial ou temporal, exerce mesmo certo fascínio. Só que o fascínio advém do desconhecido, e o mochileiro procura o contrário disso. Ele viaja o mundo de ponta a ponta à procura de alguém que seja inteligente o suficiente para entendê-lo, isto é, alguém que seja exatamente como ele. Subvertendo a lógica da aventura clássica, o mochileiro sai bravamente à procura do que é perfeitamente conhecido. Proust estaria certo se estivesse se referindo a isso.