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21 agosto, 2009

Mudança de endereço

Por motivos técnicos, o endereço do Parnaso mudou. Agora é mntparnaso . blogspot, e não mtparnaso . blogspot. O endereço antigo redireciona pra cá, mas atualizem aí. Até.

19 junho, 2009

Breakfast

Percebi essa semana que o simples termo breakfast desperta minha fome. Estava folheando a esmo um volume de estórias curtas do Fitzgerald e encontrei o seguinte parágrafo:
This is a story of the Washington family as Percy sketched it for John during breakfast.
A perspectiva de ouvir uma estória interessante em meio a croissants e panquecas já é bastante animadora. O café-da-manhã deve exercer uma atração especial sobre mim porque geralmente não sinto fome pela manhã. É bom que os pães de queijo, a geléia, as frutas, os sucos, o café e o leite, o bolo, as torradas etc., todos imaginários, permanecem intactos, adornando um sonho em forma de banquete potencial. Sempre que encontrá-los, poderei perguntar:
Hello Breakfast, may I buy you again, tomorrow?

24 abril, 2009

Links

Por muito tempo tive o esquisito (e, parece, ingrato) hábito de escrever num blog sem acompanhar blogs de outras pessoas. Conheci vários recentemente e percebi que há links para o Parnaso em alguns deles. Tardou mas resolvi retornar o favor: se você me linkou e ainda não está aparecendo aqui ao lado, é só me avisar. Até.

20 abril, 2009

E o jantar?

Aproveito o momento amargo, de derrota, para declarar minha simpatia pelo tricolor paulista. Ontem, no Morumbi, tomei o cuidado de ficar o mais distante possível da(s) torcida(s) organizada(s). Fiz bem, mas ainda tive a oportunidade de verificar como o torcedor brasileiro é ingrato: os supostos heróis do início do jogo eram os mesmos 'filhos da puta' do final.

Enquanto os mais exaltados xingavam jogadores e familiares do juiz, as mulheres, percebendo que o jogo estava perdido, batiam fotos para os filhos e discutiam sobre o que teriam para o jantar. São más torcedoras, mas priorizam o que há de realmente importante nesta vida.

06 fevereiro, 2009

Interregnum

Gostaria de poder dizer que tenho um motivo nobre pra estar escrevendo pouco -- emprego novo, fundação de uma ONG pela defesa das criancinhas da Palestina ou organização de uma conferência sobre empreendedorismo social --, mas a verdade é que, sem móveis, fica desconfortável digitar por muito tempo. O pior disso tudo é que me surgem idéias geniais, originalíssimas, que escapolem convenientemente antes que apareça a disposição pra escrever. Vai então um post sobre o jornalismo brasileiro.

14 janeiro, 2009

RIP, Neuhaus


I weep, rather, for all the rest of us. As a priest, as a writer, as a public leader in so many struggles, and as a friend, no one can take his place. The fabric of life has been torn by his death, and it will not be repaired, for those of us who knew him, until that time when everything is mended and all our tears are wiped away. -- Joseph Bottum

12 janeiro, 2009

Smoking is the new gay

Depois que li esse post fiquei com vontade de dizer que smoking is the new gay. É divertido acompanhar a postura das pessoas diante de características marginais, como fumar, ser conservador, ser judeu etc. Vivemos um momento auspicioso nesse sentido: para quem nasceu no intervalo que vai do final da 2a. grande guerra até meados dos anos oitenta, anti-semitismo (deve ter perdido o hífen, mas dane-se) é absurdo inconteste até pra quem se limita a visitar o cinema nas horas vagas. O bombardeio de obras sobre o Holocausto nos ensina a encará-lo como algo inefável, coisa de maluco mesmo. Faça esse experimento: pergunte a um transeunte qualquer sobre a origem do anti-semitismo; se ele for além da ladainha sobre grandes corporações, concentração de dinheiro e financiamento de guerras, dê-se por satisfeito. Não sei se é só nas ocasiões em que a oportunidade tentadora de malhar a política externa americana aparece (na cabeça dessa gente, EUA = Israel) ou se é algo mais geral, mas até essa aversão instintiva ao anti-semitismo parece estar desaparecendo. Isso mesmo: o governo brasileiro já pode equiparar judeus e nazistas e passar incólume, sem que judeus sovinas saiam cobrando dívidas em carne humana por aí.

Segundo nos conta Hannah Arendt, houve um tempo em que não havia nada mais charmoso que ser judeu -- evidentemente, antes de eles serem de fato odiados. Compreende-se bem: é o charme do diferente, da minoria, do excêntrico. O próprio Disraeli, também ele judeu, teria (ainda não tenho opinião formada sobre ele) contribuído com a pantomima. Pois bem: smoking is the new gay, e isso significa despertar um conjunto amplo mas não ilimitado de reações, a depender do momento histórico, assim como acontece com o gay ou com o conservador. O conservador desperta incredulidade no Brasil de hoje; já nas plantations da Virginia do início do séc. 19, era só mais um. O gay nessas mesmas plantations era um pária; hoje é acolhido e festejado em toda parte, assim como o escravo de ontem é hoje recebido no ensino superior a despeito de seu mérito intelectual. Fico me perguntando, assim como Romerito José inquiria Sto. Agostinho, se chegará a época em que fumantes e conservadores (ou judeus, uma vez mais) serão mandados para o forno, isto é, se tudo muda o tempo todo.

Se não muda, podemos estar certos de que não é graças à constatação, a qual todos os homens chegariam independentemente, de que existem valores atemporais. Alguns poucos chegam a essa constatação e nos fazem o favor, na medida de seus talentos, de incuti-las no imaginário popular. Forçoso é dizer: guiamo-nos por preconceitos bem mais do que estamos dispostos a reconhecer (e vejam que desastre se assim não fosse, se tívessemos de esperar que cada um formasse sua idéia sobre cada bloco civilizacional). Coleridge dizia, e sabemos por experiência, que nem nas classes mais privilegiadas da mais grandiosa civilização seria razoável encontrar mais que alguns poucos dedicados à especulação filosófica. O otimismo dos philosophes parece particularmente ingênuo numa época em que até aritmética básica aterroriza muitos ditos letrados. Os raros momentos em que o homem consegue erguer-se um pouco pra observar sua condição miserável certamente não são obra da tão alardeada Razão. No dizer de Disraeli (de novo ele), It was not Reason that besieged Troy; it was not Reason that sent forth the Saracen from the Desert to conquer the world; that inspired the Crusades; that instituted the Monastic orders; it was not Reason that produced the Jesuits.

O triunfo da imaginação sobre a razão fica evidente se repassamos as idéias que ressoam com mais intensidade entre as intelligentsias: a visão apocalíptica de Marx, os sonhos de Freud, o caos de Derrida. Todas elas têm um quê de inebriante e difuso e, apesar de procurarem se apresentar como flores da racionalidade, são só isso: visões. Visões que dependem de uma imaginação muito poderosa pra fazê-las sobreviver a despeito da e muitas vezes em oposição à racionalidade que dizem representar. Mais que pesquisas científicas desacreditando os males que o fumo causa à saúde, a turma dos fumantes precisa de alguém que nos lembre por que houve um tempo em que era fashionable fumar.

04 dezembro, 2008

Estilo

Fico imaginando sobre o que eu escreveria caso tivesse de escrever toda semana, ou todo dia (provavelmente já fiz isso por alguns curtos períodos, mas nunca por obrigação). As alternativas mais batidas não são muito atraentes. São elas, que eu saiba: repisar piadas/tiradas que sabidamente funcionaram um dia, invertendo essa ou aquela circunstância; comentar notícias de jornal, com o cuidado de mostrar que cada notícia é evidência adicional de uma tese maior sua enunciada desde há muito; comentar notícias de jornal. O problema das notícias de jornal é que em geral tratam de gente desinteressante e, pior, gente viva (ou recém-matada).

É preciso muito talento pra falar com interesse do que se pode ver aqui e agora. Uma ilha que eu possa ver e visitar pode até ser bem bonita, mas provavelmente não voa ou é povoada por cavalos inteligentes como nos contos de Gulliver. Já vi tempestades fortes, mas nunca uma com efeitos magnetotemporais como no conto de Edgar Poe. A mania moderna de devassar tudo até os mínimos detalhes, discriminando e contabilizando tudo, parece tornar o ofício de escrever mais difícil. Ainda bem que não vivo disso.

Se eu vivesse disso, e considerando que não tenho talento para discorrer agradavelmente sobre coisas banais (quem não se lembra das escarradeiras floridas de Nelson Rodrigues?), recorreria àquelas pequenas excentricidades que ainda dão laivos de pessoalidade ao texto; algo que eu pudesse sacar da algibeira assim que me faltasse assunto melhor. Poderia ser um terceiro mamilo, um parente filiado ao PC do B ou o hábito de usar tênis all-star. Nenhum defeito é tão constrangedor quando você é o primeiro a confessá-lo.

Não é nem necessário que seja defeito; pode ser também uma virtude inútil, um conhecimento desnecessário. Há quem estude vinhos, quem aprenda a fazer sushi. Eu resolvi estudar ciências exatas. Está claro que as ciências exatas estão longe de ser inúteis (o mundo seria bem menos miserável se todos dominassem as quatro operações), mas são para mim, pelo menos tudo aquilo que me chegou depois do primeiro semestre da faculdade. Resolvi estudar o assunto como quem aprende a fazer sushi. Deu certo: acabei gostando.

Agora, alem de saber um pouco sobre a radiação Hawking e entender a demonstração que o vigésimo presidente dos Estados Unidos, James Garfield, propôs para o teorema de Pitágoras, posso rir da cara dos embusteiros. Rir de embusteiros, e denunciá-los devidamente, parece ser um dos maiores bônus de aprofundar-se em qualquer área do conhecimento. Projeções econômicas que precisam ser adaptadas diariamente e que desprezam solenemente variáveis importantes são motivo de risada pra quem estudou cálculo. Simulações da atmosfera que desprezam o efeito das nuvens pra 'provar' o aquecimento global são motivo de risada pra quem estudou transferência de calor.

Eis aí: já que não podemos mais rir de bruxas e gnomos, riamos de nós mesmos.

14 novembro, 2008

Ó, Khronos; Ó, Paciência!

Uma pessoa (a menos que pobre) que não tem tempo pra fazer o que gosta é muito provavelmente idiota; uma pessoa que faz questão de dizer que não tem tempo pra fazer o que gosta é certamente idiota.

Se você franze o sobrolho quando um idiota diz, na sua frente, que não tem tempo pra fazer o que gosta, ele diz que na realidade (ou seja, antes estávamos no mundo dos sonhos, não na realidade) tem tempo de sobra pra fazer o que gosta porque gosta de tudo que faz. A intenção parece ser poder atirar pra todos os lados: aos que se querem mui importantes por estarem sempre ocupados, os idiotas se dizem também ocupados, sem tempo pra respirar e cansadíssimos; aos que preferem aproveitar a vida, os idiotas se dizem satisfeitos por passar todo o tempo fazendo algo que há minutos era estafante e insuportável.

Esses acessos de hiperatividade surgem, creio eu, de uma espécie de megalomania: a idéia de que estamos sempre a um passo de mudar o mundo. 'Mudar o mundo', 'fazer a diferença' etc. é uma questão de vontade, não de capacidade. Quando a turma do 'fazer a diferença' se reúne (e eles adoram se reunir), é para candidamente nos informar sobre a importância do tempo, sobre como 'otimizar' esforços, eliminar desperdícios, 'enxugar' a rotina etc., tudo, é claro, com aquele jargão corporativo-newage-bacaninha.

Tudo isso é muito curioso, principalmente porque não há lugar em que se perca mais tempo que nessas reuniões. Minha curiosidade mórbida me levou a verificar pessoalmente essa impressão que carrego desde o berço, quando começava a berrar e apertar veementemente um chocalho quando via um ongueiro distribuindo panfletos na praia. Visitem a página do Reunes (aqui) e vejam por quê. Observem a terminologia: 'empreendedorismo social', 'intercâmbio de idéias', 'poder transformador do jovem' e por aí vai. Dos palestrantes, nenhum seria capaz de definir esses termos sem se valer de outros mais abstratos ainda. Acho que um dos critérios mais seguros pra constatar o esvaziamento de uma idéia é constatar o esvaziamento da terminologia com que ela é expressa. Esses termos podem até ter tido significado palpável algum dia, mas hoje se reduziram a slogans polarizadores.

Reproduzo aqui o profile de um dos palestrantes, Edgard Gouveia Júnior:
[É] arquiteto e urbanista, graduado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, SP, Brasil, 1993; pesquisador do Instituto TIBÁ – Tecnologia Intuitiva (?) e Bio-arquitetura (??), 1993-1996; pós-graduado em Jogos Cooperativos (???), Universidade Monte Serrat, 2003; professor da pós-graduação da Universidade Monte Serrat, 2004-2007 no curso Desenvolvendo Comumunidades; consultor e palestrante internacional nas áreas de protagonismo juvenil, empoderamento molecular e comunitário (????) e Jogos Cooperativos; facilitador do Projeto Cooperação; Co-fundador e Presidente o Instituto Elos – BR; membro da rede internacional Berkana Exchange, 2006-2007; Fellow Ashoka, 2006.
O leitor mentalmente são começa a se perguntar uma série de perguntas, como por que diabos uma universidade em Santos se chama Monte Serrat, em que consistiria um curso chamado Desenvolvendo Comunidades, desde quando 'protagonismo juvenil' se transformou em área do conhecimento e outras tantas. E quanto à tecnologia intuitiva? O que significa isso? Só é tecnologia intuitiva a tecnologia que os estudantes forem capaz de intuir? E se os estudantes forem todos umas bestas?

Não parece razoável que toda uma geração se deixe levar por uma tergiversação de tão baixa qualidade. Se são esses os luminares que devem nos dizer o que fazer com nosso tempo, estaremos melhor dormindo.

10 outubro, 2008

Ceticismo Juvenil

Somos particularmente burros durante a adolescência porque não chegamos a saber muito sobre coisa alguma, mas já deixamos de não saber nada. Esse pouco de conhecimento é a perdição de muita gente; alguns permanecem adolescentes até morrer. É natural ocorrer de esse pouco de conhecimento incluir o fato de que é possível, com mais ou menos habilidade, mentir, enganar, lubibriar. Trata-se de mecanismo de defesa tão poderoso quanto perigoso: se sabemos pouco sobre algo e não queremos ser enganados, basta duvidar. Nasce assim o ceticismo juvenil, que duvida de tudo menos do ceticismo em si.

Não se costuma tentar justificar filosoficamente o ceticismo; aceitam-no de bom grado porque é cômodo e porque nos livra do estigma de 'crédulo' ou 'ingênuo' (nada mais constrangedor!). O exemplo disso na política brasileira é evidente: 'todo político é ladrão' porque é difícil verificar quem não é ladrão em meio a tantos ladrões. Essa preguiça mental é adulada por gente até inteligente como o Diogo Mainardi, ainda que ele o faça por motivos humorísticos. Só se pode levar a sério um cético que duvida do próprio ceticismo, já que não existe motivo concebível (além da comodidade, claro) para tirá-lo da jogada.

É durante a adolescência que várias verdades carregadas candidamente desde a infância são questionadas pela primeira vez. Isso não seria ruim se não fôssemos tão preguiçosos e não optássemos pela saída mais fácil: duvidar. Não chega a impressionar que quem é ateu decide ser ateu por essa época, mas quem dirá que 16 é a idade ideal pra esse tipo de decisão? 25 também não é, mas aos 25 não se tem a metade da convicção de alguém de 16.

Poderia haver combinação mais burra que preguiça e convicção? Quem levaria a sério alguém que duvida veementemente da natureza ondulatória da luz sem nunca ter estudado eletromagnetismo? Esse princípio de autoridade, tão óbvio quanto saudável, inexiste fora da área de exatas sabe-se lá por quê. Tanto que quem é de exatas (e isso inclui desde a faculdade de engenharia até a Royal Society) se sente perfeitamente capacitado pra debater o sexo dos anjos. Acho que quando Tomás de Aquino disse que há dois caminhos para a verdade, o da razão e o da fé, ele quis dizer que a ignorância pode, sim, ser uma benção (e não num sentido pejorativo): certamente a intuição metafísica de qualquer empregada doméstica é melhor que a do Edward Wilson, ainda que elas não saibam o que é um cromossomo ou intuição metafísica.

Fico imaginando como seria um tempo em que a ciência não fosse a única esperança de credibilidade intelectual. Joãozinho interpelaria uma roda de amigos com a resolução de uma equação diferencial parcial pelo método da separação das variáveis e seria zombado porque, ora vejam, aquilo estava em completo desacordo com as lições dos sábios escolásticos. Ainda que reconhecendo o absurdo, eu poderia chamar o Joãozinho de lado e, dando-lhe um tapinha nas costas, perguntar: 'viu como é bom?'

27 setembro, 2008

A Excelente Sensação de Estar Sem Pressa

Uma das sensações mais prazerosas que o ser humano pode experimentar é a de estar perfeitamente sem pressa. Talvez isso sirva como uma versão urbana/contemporânea do Nirvana budista. Percebi-o ontem no metrô, quando, apesar de não ter hora pra chegar em casa, mal podia esperar para que o rapaz dos avisos (70% dos atrasos são causados por gente obstruindo as portas... será que fizeram um estudo estatístico ou inventaram esse número na cara dura?) calasse a boca, e para que aquela gente toda tomasse seu rumo e me deixasse mais espaço.

Fui expulso do meu nirvana particular de uma hora pra outra: num instante, metrô vazio e em movimento, pensava eu em coisas agradáveis e inofensivas, como o porquê de o gambá ser tão bonitinho em desenhos animados se na vida real ele é um rato gigante e grotesco. Num outro, metrô parado, lotado e calorento, já não conseguia pensar questões fundamentais como a do gambá e só me perguntava se o rapaz dos avisos realmente tinha que falar tão alto. A mudança abrupta me fez perceber o que eu estava perdendo.

Estamos sem pressa quando o mundo parece girar numa órbita particularmente interessante, quando os instantes se sucedem uns aos outros com um ar donairoso e quase sonolento, dizendo 'olá, com licença', sem atraso ou antecipação. Não queremos que o dia ou o mês acabe, não queremos mudar de emprego ou de namorada, não queremos que a fila ande mais rápido ou que a garçonete acerte seu pedido pela primeira vez na vida. Queremos apenas olhar em redor e poder pensar: assim está bem.

14 setembro, 2008

Os Prazeres e os Dias

Marcel Proust tem um livrinho de textos aleatórios chamado Os Prazeres e os Dias. Li há algumas anos e não gostei muito, mas há nele declarações que acabaram por tornar-se celébres, como a de que a conversa é o passatempo do homem sem imaginação. Num outro texto ele declara que não entende a necessidade de viagens; pode imaginar e apreciar qualquer paisagem de dentro do seu quarto, imaginando-a. Os que não têm uma imaginação tão privilegiada, como eu e você, viajam e apreciam tudo em primeira mão. Mas é verdade que nós ao menos tentamos imaginar como a viagem vai ser; aliás, é bem provável que a tentiva dê a idéia da viagem. Quem está certo sobre o Rio de Janeiro: Nelson Rodrigues, Tom Jobim, ou o carioca mala que mora ao lado? etc.

Percebi com muito atraso que já não se viaja mais assim, ou pelo menos que não é o usual entre gente da minha idade. Hoje a idéia é visitar o leste europeu, o sudeste asiático e alguma ilha obscura e ver no que dá. Já pensou em visitar o Marrocos sem nem saber qual é a capital de lá? Pois é, nem eu. Mas é preciso, dizem, ter esse conhecimento de 'mundo', que de tão vago não poderia mesmo ter outro nome. É mais importante saber que rio corta os montes trans'Alpinos nas coordenadas 51.66, 0.05 (porque esse rio pertence a um país onde as baladas bombam mesmo, cara) a saber por que rota Vasco da Gama alcançou as Índias ou por onde chegou a ajuda francesa na guerra civil americana.

Suspeito que todo esse esforço, que praticamente equivale à criação de uma nova disciplina (chamemo-la de geografia adolescente, ou geografia mochileira), tem como objetivo final um pouco de orgulho próprio, principalmente se envolve a tradicional alfinetada nos americanos. A primeira das duas únicas pretensões intelectuais que o mochileiro tem é provar que o americano não sabe geografia; a segunda é mostrar que a sabedoria aumenta com a distância. São os dois únicos momentos em que, contrariando a própria natureza, o mochileiro exige certa seriedade dos ouvintes.

A segunda é mais interessante e merece um comentário: a distância, seja espacial ou temporal, exerce mesmo certo fascínio. Só que o fascínio advém do desconhecido, e o mochileiro procura o contrário disso. Ele viaja o mundo de ponta a ponta à procura de alguém que seja inteligente o suficiente para entendê-lo, isto é, alguém que seja exatamente como ele. Subvertendo a lógica da aventura clássica, o mochileiro sai bravamente à procura do que é perfeitamente conhecido. Proust estaria certo se estivesse se referindo a isso.

18 julho, 2008

Histórico de Preguiça

Este blog tem um belíssimo histórico de preguiça. Procurei escrever uma ode ao ócio a cada vez que ficava de férias (aqui e aqui). Está claro que isso não poderia durar para sempre.

Agora que minhas férias foram sacrificadas, posso ao menos verificar algo de que desconfiava desde há muito: o sujeito ocupado demais pensa muito pouco. Claro que esse meu 'ocupado' diz respeito a ocupações hodiernas; Tucídides não pensou menos por ter participado da guerra do Peloponeso, antes o contrário.

As ocupações hodiernas são as que primam pela rotina, pela homogeneização, pela sistematização. A linguagem par excellence dessa nova realidade não poderia ser outra que não a linguagem de programação computacional. É o artifício que nos permite repetir indefinidamente um processo relativamente simples, sem risco de erro. Ocorre que a repetição não deixa de existir, apenas foi automatizada. Digo isso porque o funcionário está sempre sob a impressão de que tudo quanto é repetitivo é feito pelo computador, enquanto aquilo que exige espontaneidade e criatividade continua sob a jurisdição do homem. Ora, nem tudo que ainda não foi automatizado exige criatividade; muitas dessas coisas só não foram automatizadas porque ainda não surgiu alguém que soubesse fazê-lo. E a tendência é que esse alguém surja num futuro próximo.

O fato é que, no white-collar job, mesmo as tarefas ditas mais nobres são, no fundo, de natureza repetitiva. Desgraçadamente, a mente humana parece se refestelar na repetição: imprime-se um ritmo e não se fala (pensa) mais nisso. Não parece muito difícil concluir que uma tal rotina leva fatalmente ao esquecimento (o contrário do que Nietzsche entendia por memória quando dizia que o homem superior é aquele de mais larga memória). Filosofia, para Ortega y Gasset, consiste mais ou menos no constante processo de tomada de decisões que nossas vidas nos sugerem. Essas sugestões podem ser percebidas ou não, e, ao que parece, só as percebemos quando não há mais jeito.

É bem verdade que o ócio pode (estranho seria se não pudesse) levar a uma inanição mental igual ou pior. Mas pelo menos não leva a esse caminho necessariamente. Já a correria do escritório não nos deixa outra alternativa que não seguir correndo. E o que é pior: ao final do dia, ainda resta a impressão de que o tempo foi bem aproveitado. Alas, se o aproveitamento for medido em bits, não estaremos errados.

19 junho, 2008

De Olhos Bem Fechados

Sempre vi com certa suspeita a manutenção de hábitos reconhecidamente excêntricos. Falo de coisas do tipo dormir em pé, malhar de madrugada ou substituir água por coca-cola. Num mundo em que todo mundo quer ser único (isso é absurdo, já que é óbvio que somos únicos), esses hábitos, ainda mais quando alardeados aos quatro ventos, parecem forçação de barra. Mas eis que quis o destino que eu adquirisse um.

Meu hábito excêntrico é gostar de dormir com a luz acesa. Não é tão raro assim; tenho pelo menos uns dois colegas que também gostam. Fico pensando (por muito tempo) em algo que justifique isso não porque acho que exista algo que justifique, mas porque é divertido. A explicação canônica é que dormir de luz acesa se assemelha a dormir de dia, e dormir de dia é sempre bom, pelo menos quando não se faz isso normalmente. Outra explicação é que se tem a impressão de estar sempre alerta (parece que a luz não permite que seu sono se aprofunde), e eu sempre quis ter um sono como o daqueles cowboys que dormem com um olho aberto.

Uma coisa é certa: a luz prolonga o período de torpor contemplativo que antecede o sono propriamente dito. Já cheguei a várias decisões momentosas nesses períodos e quero crer que elas não teriam sido possíveis caso eu tivesse perdido consciência minutos antes. Exemplos de algumas dessas decisões: cortar o cabelo no dia seguinte, passar a comer frutas, estudar algum assunto, chegar a um diagnóstico para a atual condição da humanidade etc.

Outra vantagem são os sonhos. Passei a sonhar bem mais depois que resolvi deixar a luz acesa. São sempre sonhos de uma luminosidade sempiterna. De ontem pra hoje sonhei com uma moça de dentes branquíssimos, tão brancos que eu tinha de encolher os olhos pra poder enxergá-los; eles emitiam aqueles raios de luz em forma de flecha. O sol também tem presença recorrente: a lâmpada cilíndrica vai se achatando e ficando mais robusta até se transformar numa esfera perfeita. O mais comum, porém, são as cenas de guerra. Já sonhei que estava numa praia (sol a pino) em que a única barraca era a minha, e havia um sujeito só pra me servir cerveja. De repente vários carros-anfíbio surgiam na costa e soldadinhos pulavam deles, destruindo todo o cenário logo atrás de mim. Também já participei de várias batalhas em descampados ensolarados. Gostaria de sonhar com a luz que cegou Dante no Paraíso, por isso mantenho a luz acesa.

10 junho, 2008

Fetiche Libertário

As muitas restrições impostas arbitrariamente à liberdade humana fizeram, imagino eu, com que se criasse o fetiche libertário. Ou isso ou imaginar que imposições naturais, como o nome ou o sexo com que nascemos, já seriam suficientes pra criá-lo. Excetuando nossa época, em que cirurgias de mudança de sexo são financiadas pelo Estado, o consenso parece indicar que esse tipo de rebelião é ridículo. Parando pra pensar, muito do que nos é mais essencial nunca foi oferecido como opção.

Nomear personagens é dificuldade de quase todo escritor; o que se espera é que o nome soe como se tivesse sido imposto pela Realidade, não pelo arbítrio de quem escreve. Tudo o que nos interessa num personagem interessante é o que está fixo nele. Um personagem que é só potência pra mudar não é um personagem, é um boneco sem nome. Lord Jim só me interessa até hoje porque nunca conseguiu esquecer o dia em que abandonou o S. S. Jedah. Se conseguisse não seria menos humano, mas não haveria motivo pra escrever um livro sobre ele.

Sempre me acusam de determinismo ou conformismo quando falo dessas coisas. Em verdade só me oponho ao determinismo oposto, o de achar que nada pode ficar determinado. A liberdade que se enaltece em panfletos políticos não é, infelizmente, negativa: ela é movimento puro, daí que resulte destrutiva muitas vezes. A pedra não deixa de ser livre por não se mexer; deixa de sê-lo por não poder se mexer. Hoje não somos tão livres pra obedecer (pensem nas mulheres) ou pra permanecer inertes (pensem nos jovens). Por que o movimento libertário se recusa a apadrinhar os obedientes e os inertes?

Acho que uma pedra contribui mais para a felicidade humana que o ministro Temporão. Uma pedra não faz bobagens e é até capaz de nos divertir de quando em vez. Eu vou além da pedra: critico o ministro Temporão. É muito gratificante poder sanar um pouco de minha dívida para com a humanidade com essas poucas linhas. E o que é melhor: não precisei mudar em nada.

31 maio, 2008

Como e Por Que Discutir

Diferentemente do que pensava Schopenahuer, a maior motivação pra participar de um debate não é a perspectiva de vencê-lo, é a perspectiva de ver seu oponente derrotado. Pode parecer a mesma coisa, mas às vezes a necessidade de desacreditar a opinião do outro é bem mais premente que fazer prevalecer a sua própria. Se não me engano foi Oscar Wilde (discordo dele quase sempre, mas era um sujeito inteligente) quem disse que é a insipidez do argumento alheio que mantém a discussão viva.

É claro que Wilde queria dizer (ou ao menos é o que ele queria que entendêssemos) que uma opinião insípida, ainda que verdadeira, deve ser combatida. Isso, obviamente, é bobagem de quem quer soar bacaninha. É preciso ter disciplina de espírito até pra concordar com o ministro Eros Grau, ou com o ministro Ricardo Lewandowski. Ambos vêem o óbvio na questão da pesquisa com células-tronco: a arrogância da ciência. É pena que apontem uma origem tão esdrúxula pra essa arrogância (ela seria um véu para acobertar os interesses do, brr, Mercado). A burrice analítica, porém, não compromete a primeira impressão, essa sim completamente verdadeira.

A frase do Wilde é aproveitável quando é usada no sentido do Teorema da Autoridade Invertida, de que já falei aqui. A tacanhice da argumentação alheia é apenas indício de falsidade. Ufa, Fulano discorda de mim. Quem nunca teve esse tipo de alívio?

É por essas e outras que sempre senti falta de uma interpretação (brr) psicológica para o debate. Pode parecer ingenuidade, mas ainda acredito na esperança de aprendizado (aliás, se, como queria Schopenhauer, todo debate tem como objetivo a 'vitória', por que o dele seria uma exceção?). Minha experiência pessoal parece confirmar essa esperança: nunca mudei de idéia sobre questões fundamentais lendo livros; os livros só sedimentaram de vez a mudança. O ser humano está sempre seguindo indícios mais ou menos claros, e por algum motivo eles aparecem com mais frequência numa conversa com o vizinho do que num tratado de teologia. A única exceção que consigo pensar agora é o Orthodoxy, do Chesterton, mas bem que esse livro parece a cópia de um grande debate, não?

É graças a essa ingenuidade latente (de que me orgulho) que não posso fugir à pergunta: por que Fulano acredita nisso? Ignorância, má-fé ou eu que estou errado? Quando Sam Harris rejeita o argumento da contingência de Leibniz com um mero 'isso é fugir do problema', podemos pensar em ignorância e má-fé simultaneamente. Ignorância porque muita gente realmente acha que recorrer à única solução possível de um problema é fugir do problema. Isso corresponde a dizer que, sendo os catetos de um triângulo retângulo 3 e 4, concluir que a hipotenusa vale 5 representa uma fuga. E má-fé porque Harris lembra triunfante que o argumento não prova a existência do Deus cristão, quando é notório que essa nunca foi a intenção do argumento. Se bem que, pensando bem, talvez ele não saiba disso. Viram que complicado!

O problema dos comunistas não é menos intrigante. Na época de Hayek era mais plausível acreditar que os defensores do socialismo desistiriam da idéia assim que enxergassem suas consequências. O próprio Hayek sugere isso inúmeras vezes no Road to Serfdom. Mas e hoje? Como diferençar os meramente tapados dos genuinamente picaretas? Os casos extremos são de análise fácil, mas a banda intermediária, bem difusa, está longe de poder ser desprezada. Vai que há almas bem intencionadas lá por dentro. Eles precisam da nossa paciência.

28 maio, 2008

Memória de Cabeleireiro

Por que o cabeleireiro sempre pergunta como você usa seu cabelo se ele teve oportunidade de ver isso quando você chegou lá? Supõem eles que usamos penteados diferentes só pra ir visitá-los?

25 maio, 2008

Assalto na Dutra

Bom, preferia não ter de ser assaltado pra poder verificar, ainda que pra um espaço amostral extremamente exíguo, uma dessas teses que gostamos de esfregar na cara dos outros numa mesa de bar. A primeira tese é a de que o povo (na acepção mais amorfa e generalizante possível) é em essência direitista, o que equivale a dizer que é natural ser de direita assim como é natural perder os dentes de leite, ficar calvo ou interessar-se pelo sexo oposto. A segunda tese, meio óbvia e decorrente da primeira, é a de que o povo brasileiro não sabe se expressar politicamente. Se soubesse, teríamos pelo menos um partido de direita.

Fui assaltado hoje pela manhã voltando de São Paulo pra São José dos Campos, no mesmo ônibus que sempre tomo. O sujeito subiu num dos pontos do caminho (aliás, por que é mesmo que esses ônibus de linha param nos pontos?) e sacou uma arma que eu gostaria de poder descrever em detalhes, mas não conheço nada a respeito. Vovós suspirando, crianças chorando e todo mundo tentando esconder objetos de valor. Consegui esconder minhas coisas à exceção do telefone celular, que resolvi meter no saco estendido diante de mim pra não levantar suspeitas (meninas, não adianta ligar, não vou poder atender). As imprecações do assaltante são as mesmas que vemos nas novelas: 'Motorista, sem gracinhas ou eu passo chumbo'; 'Quem esconder dinheiro leva bala' etc.

Mas esse assaltante era diferente, ao menos dos poucos que tive a infeliz oportunidade de observar em ação. Estava nervoso demais, falava alto demais. Se tivesse tido um pouco mais de paciência poderia ter levado vários outros celulares, relógios, iPods e alianças sem risco adicional. Saiu apressado, meio envergonhado. Já na porta, pronto pra descer, virou e disse:

-- Não sou ladrão. Meu filho está com câncer e não posso pagar o tratamento. Vocês me perdoem. Me perdoem e fiquem com Deus.

Mentira? É até provável, apesar de que o sujeito poderia ter simplesmente ido embora calado. A reação dos passageiros, porém, pareceu unânime: era mentira e, mesmo que não fosse, não justificava o assalto. Ônibus de linha não deveria parar nos pontos da estrada. E o pessoal que mora longe da rodoviária? Pega o circular antes; gasta mais mas garante a segurança de todos. O que segura a sociedade, disse outro, é a família; um familiar de cabeça fria poderia ter aconselhado o pai desesperado e evitado o assalto. Não se deve julgar, mas que está errado, está. Essa interpretação do crime surgiu naturalmente, sem qualquer esforço analítico. Por que ela não sai de dentro do ônibus?

17 maio, 2008

A Carne é Forte

Existem várias coisas que eu gostaria de melhorar em minha vida e que, se fossem jogadas contra mim num juízo final hipotético, o máximo que eu poderia fazer seria baixar a cabeça e resignar-me às agruras penitenciais. Curiosamente, comer carne não é uma delas, e acho cada vez mais difícil encontrar um argumento de ordem ética que me faça mudar de idéia. Trata-se de uma daquelas felizes ocasiões em que interesse pessoal e consciência limpa andam de mãos dadas.

Nesse sentido, é reconfortante ler artigos de vegetarianos inteligentes como o de Taylor Clark da Slate: Vegetarian myths, debunked. O título do artigo, porém, não faz o menor sentido. Antes pelo contrário, Clark mostra que os 'mitos' não são mitos, que eles existem mesmo, mas que não se aplicam a ele em específico. Clark não perderia tempo dizendo que gosta de bacon ou que não revira os olhos ao avistar um prato de carne se isso não fosse de alguma maneira notável. Acho inclusive que a maioria dos vegetarianos pensa como ele. Mas, convenhamos: daqueles que não pensam assim, quantos são vegetarianos? Alguém já viu um não-vegetariano dizendo que um hambúrguer de carne é nojento?

A verdade é que nós fazemos parte de vários pequenos grupos e é impossível responder por todos os nossos colegas. Imaginem se eu tivesse de justificar toda besteira cometida por um cristão, cearense, estudante de engenharia ou ouvinte de rock! Infelizmente, muitas vezes ocorre (e muitas vezes não é fácil evitá-lo) de você cair num grupo em que a idiotia predomina ou pelo menos tem voz forte. A idiotia pode até não predominar entre vegetarianos, mas o 'discurso' oficial do vegetarianismo é idiota. E esse discurso, nem adianta espernear, não foi construído por carnívoros implicantes; ele vem de dentro.

A parte do artigo de Clark que mais reflete essa idiotia é aquela em que ele diz estranhar a desfaçatez dos que comem carne suína e ainda assim paparicam seus bichos de estimação. Haveria aí uma incompatibilidade inarredável, uma hipocrisia típica dos que não pararam 5 minutos pra pensar no que fazem. Essa idéia parte de um sentimento louvável: o de benevolência. Também acho que os animais devem ser tratados com benevolência. Aliás, é o mesmo que Platão dizia, com a diferença de que ele incluía escravos entre os animais. A divergência começa precisamente aqui: eu acredito que seja possível comer carne (ou até caçar) sem deixar de ser benevolente com os animais; Stanley Clark vê uma dose de crueldade em cada McLanche Feliz, ainda que seja uma crueldade diluída em displicência.

O argumento pela belevolência com animais não é bem de ordem ética: como poderíamos falar em ética em relação a seres que não fazem idéia do que isso seja, que, mais, não fazem idéia nenhuma? Nesse momento algum ativista lembra que tirar proveito dos animais é duplamente cruel exatamente por isso. Se estendemos essa lógica às plantas, mais indefesas ainda, ouvimos que as plantas não sentem dor. Se perguntamos se não haveria problema em matar um porco anestesiado, ouvimos que os animais são diferentes das plantas. Ora, isso é bem verdade! Então por que não reconhecer que animais (irracionais) e seres humanos são diferentes também?

Não acho que seja necessário falar em cristianismo (alma, inteligência divina etc.) pra que essa diferença fique bem clara. O fato é que o porco tem uma existência meramente instintiva: ele não pretende emagrecer pra conquistar uma porquinha no chiqueiro vizinho, ele não faz planos que não estejam direcionados à satisfação de uma necessidade imediata. A existência de um porco está inteiramente projetada sobre o agora, é como um ponto sobre a linha dos tempos. Um acidente ou uma morte repentina não vai nem pode frustrar nada porque não havia nada pra ser frustrado; o sofrimento de seus companheiros é também instintivo e nem sequer existiria se fosse de alguma maneira prejudicial à espécie.

A maneira com que os ativistas à Peter Singer falam guarda uma similitude meio sinistra com a tal heartlessness of ideas: estima-se o conceito de humanidade em vez de se estimar o homem concreto; estima-se a comunidade animal em vez de se estimar animais específicos. É claro que Clark está a anos-luz de distância de um Singer, mas é esse raciocínio que o faz estranhar eu gostar de animais e ainda assim não ver problemas em comer carne. O pressuposto é o de que, por ambos pertencerem à comunidade animal, ambos merecem a mesma atenção. Ora, a atenção que qualquer animal merece é, pelo menos, a mínima necessária para que não sofra inutilmente. O que vier além disso depende de uma relação pessoal que nada tem a ver com a comunidade animal tomada em bloco. Estamos falando de um animal, não do Animal.

01 maio, 2008

Uma Testemunha Tardia

Façam-me o favor de ler essa crônica do Ruy Vasconcelos sobre o atendimento nos bares de Fortaleza: Cultivados grãos de um sadismo datado. Não precisa agradecer. O texto tem significado especial pra mim porque o péssimo serviço dos garçons fortalezenses sempre me pareceu um grande mistério. Como o próprio Ruy lembra, nós fortalezenses somos tidos como simpáticos e hospitaleiros. Mais intrigante ainda: os vários garçons cearenses que encontro em São Paulo são excelentes, exemplos de simpatia e hospitalidade. O que poderia ter ocorrido? Só fui descobrir agora porque era novo demais pra frequentar bares no começo da década de 90, mas bem que devia ter desconfiado.

Ontem mesmo fui a um dos bares-restaurante mais reputados de Fortaleza, desses que aparecem nas listinhas da revista Veja. Um garçom passou apressado e derrubou minha cerveja quase inteira. Trocou a toalha e, para o meu espanto, nada de trazer uma cerveja nova. Chamei o chefe (aquele mais arrumadinho) e perguntei por que não traziam outra. Resposta: eu devia ter falado com ele antes. Em bares fortalezenses, você está sempre errado.

Por muito tempo procurei palavras para descrever a postura desses luminares do atendimento. Ruy acerta na mosca: agem com 'desfaçatez e calculado cinismo'. Quando chamados, fingem que não ouvem e apressam o passo; há um apelo urgente vindo da cozinha ou de um cliente perdido no horizonte. Se um casal pede comida do restaurante, um dos dois tem de ser servido primeiro; passado tempo suficiente para que ele dê cabo ao lanche, chega o pedido do outro. A bebida, para a decepção geral dos sádicos, não é mais servida quente graças aos avanços galopantes da engenharia.

Já escrevi três parágrafos e ainda não dei um jeito de meter os EUA no meio! Faço-o agora: o atendimento lá é sempre bom porque os garçons trabalham com gorjeta (Ruy fala em boas gorjetas no Estoril; se não se tratar de truque retórico confesso-me desiludido). Alguém pode lembrar que temos os famosos 10%, mas no Brasil não se trabalha pelo que não se pode perder. Em São Paulo a gorjeta não é incomum, embora ainda se confunda um pouco com uma espécie de suborno amigável. O cliente suborna o garçom (especialmente se tiverem algo de grande relevância em comum, como o estado de origem ou o time do coração) e o garçom retribui com presteza e eventuais chopps gratuitos. Aqui não há diálogo; o garçom está sempre preocupado com espectros que lhe sugam a presença.

A verdade aparente é que o bom garçom está sempre querendo deixar de ser garçom (no caso dos EUA) ou pelo menos ficar menos pobre. É o bom e velho Capital operando suas maravilhas. Não vejo por que isso deve ser incompatível com relações mais cordiais na mesa do bar. É bem verdade que o fortalezense continua maciçamente esquerdista, mas a morbidez, pelo que pude perceber, já é coisa do passado. Precisamos importar garçons cearenses.