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28 maio, 2009

A mentalidade conservadora

Se tivéssemos de aceitar os critérios que o Russell Kirk, no The Conservative Mind, estabelece pra identificar o imaginário conservador, seríamos forçados a admitir que popular o conservador não pode ser; não hoje. É certo que já houve tempos mais propícios, mas o conservador não está tão em descompasso com a realidade atual quanto gostariam seus detratores. Alguns desses últimos acreditam piamente que:

(i) O conservador não tem senso de humor;
(ii) O conservador tem uma vida social subdesenvolvida;
(iii) O conservadorismo é mais reação que ação, mais inerte que criativo;
(iv) O conservador age por instinto e é intelectualmente despreparado.

Nem seria necessário chafurdar a biografia de conservadores notórios pra verificar que o primeiro item é falso. À medida que os adágios conservadores perdem popularidade, ganha importância a maneira com que são repetidos, e o humor parece ser o artificio mais eficiente nesse processo de reinvenção. Nelson Rodrigues conseguia lamentar o hábito feminino de usar biquinis em plena luz do dia sem parecer um velho recalcado; Chesterton exaltava a coerência de um conto de fadas sem parecer infantil. Isso pode não ser engraçado, mas é bom humor.

Quanto à vida social: essa sim é uma noção engraçada, e eu não saberia explicá-la de outra forma que não a tendência natural que pessoas que pensam de maneira semelhante têm de se unir. A maioria dos meus amigos tende à direita e nem por isso bebe ou se diverte menos que o estritamente recomendável. Se você é esquerdista e acha que só esquerdistas têm capacidade de pular feito um condenado na balada, fique sabendo que o mau gosto não é privilégio de uma banda do espectro político. Os de bom gosto tampouco são reclusos: sentam num bar e ponderam quantos anjos cabem num copo de cerveja.

A primeira metade do terceiro item até faz sentido: o conservador desconfia de mudanças abruptas, o que não significa dizer que não reconheça a necessidade de mudanças. Uma desvantagem prática disso é que grandes talentos e mentes impetuosas tendem a encontrar alguma resistência no corpo conservador. A vantagem é que as mudanças, quando indispensáveis, são bem menos destrutivas quando supervisionadas por um conservador criativo. Isso nada tem a ver com inércia, como queria F. J. C. Hearnshaw -- It is commonly sufficient for practical purposes if conservatives, without saying anything, just sit and think, or even if they merely sit --, mas com conciliação de tempos incompatíveis.

O instinto, ou prejudice, realmente não costuma ser ignorado pelo bom conservador, mas daí a acreditá-lo intelectualmente pobre vai um grande salto. Um salto que, aliás, ignora as grandes inteligências que se tornaram, voluntariamente ou não, expoentes do conservadorismo: Edmund Burke, John Adams, S. T. Coleridge, J. H. Newman, Irving Babbitt, George Santayana, T. S. Eliot e o próprio Kirk. Há aqueles que enfatizam valores transcendentais (Burke, Kirk, Newman), outros que se concentram na esfera política (Adams), outros que valorizam a imaginação conservadora mais que tudo (Coleridge, Eliot) e outros que se ocupam principalmente da filosofia por trás da práxis política (Coleridge, Babbitt, Santayana). Já que parecem (e são) tão diferentes, o que os uniria a um núcluo comum? Kirk enumera alguns pontos:

(i) Belief in a transcendent order. Essa é uma condição com a qual Roger Scruton discordaria, e à qual Santayana e tantos outros expressamente não se adequam. Acontece muito de ela ser aceita numa versão adaptada, que consiste em admitir que a razão humana é insuficiente para abarcar toda a existência e que, se os mistérios não são explicáveis através de um plano divino, simplesmente não são explicáveis. Há aqui, porém, a convicção de que todo problema político é no fundo filosófico, e que todo problema filosófico é antes problema religioso.

(ii) Affection for the proliferating variety and mystery of human existence, as opposed to the narrowing uniformity, egalitarianism, and utilitarian aims of most radical systems. Aqui temos o que parece ser unanimidade entre conservadores: diferenças de mérito entre seres humanos existem e podem ser tão grandes quanto se queira imaginar. Num momento em que a tendência é uniformizar tudo (homens e mulheres, velhos e jovens, bons e maus), repetir esse truísmo conservador exige, e esse é o apelo de Kirk, a engenhosidade de uma criatividade conservadora, capaz de reabilitar obviedades rejeitadas.

(iii) Conviction that civilized society requires orders and classes, as against the notion of a "classless" society. Consequência direta de (ii): o nascimento, ou o mérito, ou o casamento, ou mais raramente a sorte, ou todos juntos, determinam que lugar na sociedade devemos ocupar. A supressão de qualquer tipo de ordem levaria -- numa objeção que é mais de ordem prática que de princípio -- ao predomínio de oligarquias, num regime em que todos são servos da igualdade.

(iv) Persuasion that freedom and property are closed link. Observação simples da realidade.

(v) Faith in prescription and distrust of "sophisters, calculators and economists". Relendo os quatro itens anteriores, percebo que não poucos dos chamados liberais ou libertários assentiriam completamente, sendo o primeiro item com muita probabilidade o mais disputado. Essa quinta condição representa outro ponto de divergência: o conservador desconfia dos sofistas mesmo quando (ou principalmente quando) ele diz ser o estandarte da ciência e da racionalidade. Os números dos melhores economistas podem ser enganosos; as abstrações de filantropos podem levar a ruínas bem concretas.

(vi) Recognition that change may not be salutary reform: hasty innovation may be a devouring conflagration, rather than a torch of progress. Society must alter, for prudent change is the means of social preservation; but a statesman must take Providence into his calculations, and a statesman's chief virtue, according to Plato and Burke, is prudence.

Se você simpatiza com os seis princípios enumerados acima e não usa tênis all-star, sinta-se bem-vindo ao clube.

12 maio, 2009

Somos todos newtonianos

Se você é um daqueles que odiava física na época do ensino médio, e que deu graças aos deuses por nunca mais ter que ver pêndulos, bloquinhos suspensos com roldanas ou deslizando por cunhas depois do vestibular, digo apenas que você é tão newtoniano quanto qualquer outra pessoa viva. Termos como 'força', 'potência', 'movimento' etc. são entendidos por todos exatamente como Newton os entendia, e exatamente em oposição ao entendimento que havia antes dele.

Um exercício simples pra provar isso é tentar imaginar, da maneira mais simples possível, uma 'força'. Muitos devem imaginar uma setinha entrando ou saindo de um bloco; outros tantos devem imaginar uma pessoa ou objeto sendo empurrado. Os mais criativos podem visualizar um campo de forças, uma espécie de luminosidade que circunda um, por exemplo, super-herói, e que tem o efeito de empurrar ou atrair objetos à distância. Mas isso nada mais é que o efeito à distância, uma idéia newtoniana por excelência.

Quando falamos em 'movimento', poucos devem ser os que não pensam logo em deslocamento físico. Quando falamos em 'potência', poucos devem ser os que não pensam logo na capacidade de realizar trabalho (trabalho físico -- transformação de energia), ou mais especificamente num motor, num velocímetro ou coisas do tipo. Aristóteles não era newtoniano ao falar em primeiro 'motor' ou na capacidade de 'mover' os homens; nós que somos newtonianos ao interpretá-lo dessa maneira.

A teoria ondulatória da luz sofreu certa resistência porque os newtonianos da época acreditavam que a luz era composta por partículas que se chocavam como bolas de bilhar. A refração seria, então, uma simples mudança de velocidade dessas partículas. Só a hipótese ondulatória explica, porém, fenômenos como a difração da luz (v. figura abaixo). O que fazer para convencer-nos, os newtonianos? Pensar nas ondas do mar, que uma vez quebradas produzem 'força' e 'movimento'.

20 outubro, 2008

Paranoia Darwiniensis

Há alguns assuntos que são verdadeiros destruidores de reputações: penso principalmente em aquecimento global e darwinismo. A essa altura, dos textos escritos sobre esses assuntos, 90% são bobagens e 9,9% obviedades. Só de vislumbrar os termos num artigo já tenho vontade de bocejar (se você descobriu uma espécie de formiga africana que confirma espetacularmente a teoria darwiniana, ótimo; se descobriu outra que a refuta com espetáculo comparável, ótimo também). Foi assim que me arrastei pelas páginas do excelente Darwinian Fairytales -- Selfish Genes, Errors of Heredity, and Other Fables of Evolution, do filósofo australiano David Stove. Em vários momentos o livro se aproxima perigosamente (e Stove é o primeiro a reconhecê-lo) dos 9,9% mencionados acima. A verdade é que, não fosse a condição patológica referida no título desse post, livros como o de Stove não precisariam ser escritos.

Mas isso é dizer pouco: não fossem os cacoetes mentais X e Y, os livros A, B, C etc. também não precisariam ter sido escritos. O fato, por mais melancólico que seja reconhecê-lo, é que os cacoetes existem e prosperam num ritmo nada menos que estupefaciente. Não vou nem comentar os mais famosos (e antigos), cuja origem remonta ao próprio Darwin (ou, antes dele, Malthus), como a idéia de que uma população cresce indefinidamente se não lhe são impostas restrições de alimentação, ou aquela outra, mais absurda ainda, segundo a qual qualquer traço que não contribui para a propagação da espécie será dizimado cedo ou tarde. Não se pode argumentar 'contra' isso, pode-se apenas observar que a realidade, a humana pelo menos, nem se aproxima do modelo proposto. Essas idéias são tão ridículas que se você resolver apresentá-las a algum darwinista (isto é, alguém que se julga darwinista), a resposta mais provável será 'ah, Darwin não acreditava nisso realmente', ou 'ah, ninguém realmente acredita nisso', o que nos obriga a colher citações do tipo Every single (!) organic being around us may be said to be striving to the utmost to increase in numbers ou [W]e may feel sure that any (!) variation in the least degree (!) injurious would be rigidly destroyed, ambas do A Origem das Espécies. Deixei o erro mais grotesco para o final: segundo Darwin, a seleção natural e a luta pela sobrevivência são de tal maneira furiosas que of the many individuals of any species (!) which are periodically born, but a small number can survive (também do Origem). Darwin teria mudado de idéia se tivesse visitado a maternidade do hospital mais próximo.

Nosso puppet-darwinista, perturbado com a evidência textual, passaria então para a próxima resposta-padrão, que consiste em dizer que Darwin acertou no geral e errou nos detalhes, e que os darwinistas atuais corrigiram oportunamente os deslizes do barbudo. Não só isso não é verdade como é o oposto da verdade: neodarwinistas, sociobiólogos etc. não se contentam com ratificar a ortodoxia darwiniana; insistem em extrapolá-la. As diferenças estão basicamente no nível de detalhamento: com as contribuições mendelianas à genética foi possível colocar os genes na jogada. Se antes era a sobrevivência e a reprodução da espécie, ou de um indivíduo da espécie, que guiavam a seleção natural, agora é a sobrevivência e a 'reprodução' dos genes que levam a responsabilidade. Nasce aí o gene egoísta de Richard Dawkins (que na realidade, segundo nos informa Stove, é idéia original de G. C. Williams).

Emprestei o livro para um colega no intervalo da aula e, lidas 25 páginas, o sujeito me volta com um 'o autor é ignorante demais', ignorante na acepção de brutal. Realmente Stove é implacável, e parece ter um prazer especial em espedaçar as teorias de Dawkins. Quem quer que leia um esboço da teoria do gene egoísta reconhece de imediato que se trata de um símile, que Dawkins não poderia acreditar que um gene possa ser dotado de atributos como inteligência, egoísmo etc. Nosso senso comum funciona perfeitamente aí; de fato, Dawkins afirma expressamente que se trata apenas de uma terminologia mais prática. Mas, a menos que Stove tenha forjado as citações que pinçou do The Selfish Gene, não há como acreditar nisso. Nós nos esforçamos para emprestar alguma sanidade ao Dawkins, mas o danado não colabora. Vejam só o que ele nos diz: [W]e are... robot-vehicles blindly programed to preserve the selfish molecules known as genes; [W]e are manipulated to ensure the survival of [our] genes; [T]he fundamental truth [is] that an organism is a tool of DNA; [L]iving organisms exist for the benefit of DNA. Edward Wilson, que de tanto observar insetos ficou tão maluco quanto Dawkins, afirma que [T]he individual organism is only the vehicle [of genes], part of an elaborate device to preserve and spread them... The organism is only DNA's way of making more DNA.

Pergunta simples: seria possível manipular seres humanos sem ser mais inteligentes que eles? Eu manipulo furadeiras, lápis, latinhas de Coca-Cola etc. e, apesar de minhas evidentes limitações, não hesitaria em dizer que sou mais inteligente que todas essas coisas. Parece claro que, se Wilson e Dawkins estão certos, os genes não só são egoístas (na acepção usual da palavra) como são mais inteligentes que seres humanos! E nós achando que macacos e golfinhos eram os que mais se aproximavam, hem?

Stove declara logo no prefácio que não é religioso (e que não é cristão por considerar o cristianismo incompreensível, o que é apenas parcialmente verdadeiro). Como bom polemista que era, deve ter cansado de debater o assunto com gente até bem mais inteligente que Dawkins; não admira, então, que saiba reconhecer uma natureza religiosa assim que a encontra. O nono capítulo, ou ensaio, de seu livro é chamado A New Religion, a religião de Richard Dawkins e dos sociobiólogos em geral (segundo consta, a teoria do gene egoísta é consenso entre eles). Não é monoteísta porque os genes são muitos, mas ao menos são invisíveis como o Deus cristão. O impulso de resposibilizar uma entidade de inteligência infinitamente superior pelo andamento das coisas terrenas, algo que imaginávamos só ocorrer em algumas religiões, é traço característico também desses novos darwinistas, sociobiólogos ou darwinistas aloprados. O capítulo seria com muita probabilidade o melhor do livro, não fosse o sugestão, ainda que velada, de que a absurdidade desses últimos atesta absurdidade nas religiões de fato. A única desvantagem de uma boa imagem é que ela pode nos levar longe demais.

O livro de Stove não é de filosofia, a despeito da tag Philosophy/Sciense em seu verso. Em vez de falar em precedência ontológica pra rejeitar a idéia de que o gene pode ser mais inteligente que o humano, Stove se limita a uma argumentação que não exige muito da imaginação do mais ávido materialista. Trata-se do já bem familiar exercício de confrontar teoria e realidade física. Menos divertido, mas mais que suficiente.

31 outubro, 2007

A Força Irresistível da Lógica

Numa palestra (chamada Individualism: True and False) dada na University College de Dublin, em 17 de dezembro de 1945, F. A. Hayek, constrangido com o mal emprego do termo 'individualismo', resolveu estabelecer uma divisória definitiva entre o que ele entendia por individualismos 'verdadeiro' e 'falso'. Uma das características que facilitariam essa distinção seria o credo, por parte dos falsos individualistas, no predomínio absoluto da razão humana no processo de construção da nossa cultura política. Os verdadeiros individualistas (Hayek refere-se principalmente a Edmund Burke e Alexis de Tocqueville), por outro lado, reconhecem que muito desse processo advém de tendências fora do controle e até incompreensíveis para um indivíduo isolado num determinado período histórico. O verdadeiro individualismo, então, não é aquele que atribui ao indivíduo um conhecimento transcendental das consequências de suas próprias atitudes, mas apenas aquele que acredita ser o indivíduo o mais indicado para aproximar-se desse conhecimento, quando e se ele for possível.

A princípio pode parecer estranho (principalmente para o estudante brasileiro, intoxicado desde muito cedo com odes à Ilustração) que logo um economista se posicione contra o monopólio da razão. Não é que Hayek não goste da razão ou que prefira deixar tudo ao deus-dará; apenas gostaria de impor-lhe os limites cabíveis e, diga-se, inescapáveis. Ele argumenta que o individualismo racionalista -- de um Rousseau, por exemplo -- tende apenas a práticas socialistas já que, se existe mesmo um método racional indiscutível para organizar nossas vidas, alguém vai ter de ser 'escolhido' para divisá-lo e aplicá-lo à revelia das inevitáveis discordâncias. Nesse sentido, o racionalismo é nada mais que um convite à revolução, que parte do pressuposto de que alguém suficientemente inteligente e 'racional' seria capaz de transformar dum só golpe todas as nossas instituições.

Tendo isso em mente, não fica muito difícil entender por que o triunfo da razão humana se manifesta com clareza exemplar nos movimentos totalitários do século passado, desbancando até os tão exaltados avanços científicos e tecnológicos. Hannah Arendt (1906-1975) não cansa de enfatizá-lo em sua genealogia do totalitarismo, The Origins of Totalitarianism. É curioso que figuras como Hitler e Stalin, sobre quem tanto já foi escrito, ainda figurem no imaginário popular como ditadores intempestivos e dados a mudanças repentinas de planos; seriam mentes imprevisíveis, irracionais, tresloucadas. Parece que as picuinhas domiciliares ganharam mais atenção que os vastos e meticulosos planos de dominação, engendrados e avançados com uma coerência somente encontrável em tratados de lógica:
According to Stalin, neither the idea nor the oratory but "the irresistible force of logic thoroughly overpowered Lenin's audience." The power, which Marx thought was born when the idea seized the masses, was discovered to reside, not in the idea itself, but in its logical process which "like a mighty tentacle seizes you on all sides as in a vise and from whose grip you are powerless to tear youself away; you must either surrender or make up your mind to utter defeat."
A capacidade de criar um mundo fictício e coerente em si mesmo nada tem de irracionalismo; muito pelo contrário, a abstração necessária para compor entes lógicos sem que eles existam no mundo sensível é um exercício de razão pura; aqui não há conhecimento empírico para nos auxiliar. Triângulos perfeitos não existem nem nunca existiram, mas ninguém nega a razoabilidade das definições de ângulo interno, comprimento de lado etc. e das consequências que daí advêm. Os mais incrédulos poderiam perguntar: como justificar logicamente a necessidade que o Partido tinha de acusar e punir inocentes que muitas vezes podiam provar a própria inocência? Certamente, dirão, temos aí um exemplo de vontade de poder desenfreada, uma paranóia injustificável em termos racionais. Também é comum, pra reforçar esse argumento, citar algumas esquisitices dos últimos anos de Stalin, como mandar um bedel provar sua comida por medo de envenenamento ou achar que havia algum gás letal entrando pelas frestas de seu escritório. Ou talvez o processo seja um pouco mais calculado, como sugerido por Arendt:
We are all agreed on the premise that history is a struggle of classes and on the role of the party in its conduct. You know therefore that, historically speaking, the party is always right (in the words of Trotsky: "We can only be right with and by the party, for history has provided no other way of being in the right."). At this historical moment, that is in accordance with the law of history, certain crimes are due to be commited which the Party, knowing the law of history, must punish. For these crimes, the Party needs criminals; it may be that the party, though knowing the crimes, does not quite know the criminals; more important than to be sure about the criminals is to punish the crimes, because without such punishment, History will not be advanced but may even be hindered in its course. You, therefore, either have commited the crimes or have been called by the party to play the role of the criminal -- in either case, you have objectively become an enemy of the Party. If you don't confess, you cease to help History through the Party, and have become a real enemy.
Não chega a surpreender, então, que membros da SS mantivessem lealdade irrestrita ao Reich mesmo quando descobriam que eram, por algum motivo, inimigos do Reich. Não faria sentido -- não seria lógico -- questionar a autoridade do Partido simplesmente porque circunstâncias históricas os colocaram do lado dos adversários. O encadeamento lógico do comportamento totalitário é tão rigoroso que não se pode escapar de um mundo de finalismos: todo passo, todo gesto ou palavra tem um objetivo final grandioso, o nec plus ultra da condição humana na Terra. Todos eles são inteligíveis e seu impacto pode ser cuidadosamente aferido graças à superior inteligência do novo homem. Heinrich Himmler, chefe da SS, "quite aptly defined the SS member as the new type of man who under no circumstances will ever do 'a thing for its own sake'".

Hitler, Lenin, Stalin etc., esses prodígios da lógica, acabaram ficando conhecidos por terem um raciocínio lógico pouco desenvolvido, essa que para os racionalistas é a maior das desgraças. De qualquer maneira eles devem ser lembrados como testemunhos do que a razão humana é capaz de alcançar (ou destruir). Nesse ponto acho que estamos todos de acordo: não é pouca coisa.

18 outubro, 2007

O Neo-Iluminista Merquior

O entusiasmo com que se lê José Guilherme Merquior (1941-1991) pela primeira vez é bem compreensível entre nós: raramente encontramos, hoje, outros nomes que se aproximem dele em termos de honestidade intelectual, inteligência e erudição. Atualmente é lembrado como simples polemista ou como 'aquele sujeito que escrevia discursos para o Collor', como se o emprego de ghost-writers por parte de políticos fosse algo novo ou degradante.

Merquior combateu com a elegância e a paciência de sempre alguns dos maiores mitos do século 20: marxismo, freudismo e formalismo (tanto literário como filosófico), sendo este último um tema recorrente de seus derradeiros anos. Já falei aqui sobre o De Praga a Paris, de 1986, acerto de contas dele com os estruturalismos e pós-estruturalismos franceses. Como não poderia deixar de ser, foi devidamente perseguido por isso, e hoje vários de seus livros nem sequer são editados, obrigando o leitor interessado a peregrinações ao sebo mais próximo.

A evolução do pensamento de Merquior fica mais clara no volume Crítica, que reúne ensaios do período 1964-1989. Enquanto alguns ídolos da juventude são gradualmente superados (principalmente Heidegger e Lucáks), cresce, cada vez mais conspícua, uma fé um tanto ou quanto misteriosa no progresso e na primazia da razão. Merquior declara-se neo-iluminista e mal consegue disfarçar (se é que tenta disfarçar) a antipatia por poetas que, reconhecidamente grandes, nutrem uma visão pessimista da modernidade. E é assim que chega a considerar o 'reacionário' T. S. Eliot apenas um grande poeta menor.

Se me permitem alguns exercícios de psicologia barata, diria ser perfeitamente natural a crescente aversão de Merquior ao esoterismo tipicamente moderno. Além do formalismo estético, argumenta ele, esse esoterismo leva invariavelmente a uma condenação em bloco da sociedade tecno-liberal moderna. É esse modernismo que condena a priori a modernidade que irrita Merquior mais que qualquer outra coisa. Não surpreendentemente, afasta-se dos 'obscurantismos' da filosofia de Heidegger, da literatura 'abissal' de Joyce e do simbolismo de Mallarmé. Eu dizia que essa aversão é natural por Merquior ter convivido tão de perto, e por tanto tempo, com o estruturalismo francês da década de 60. Para alguém que leu tudo que há pra ler de Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard et caterva e ainda conseguiu escapar de uma congestão cerebral, é apenas lógico esperar uma extrema sensibilidade a charlatanices linguísticas e a irracionalismos cabeça-de-vento.

Ocorre que, ao denunciar mui devidamente esse irracioanlismo tresloucado, Merquior parte num átimo para uma defesa da razão iluminista como elemento restaurador. Além da palavra 'razão', 'progresso' é uma das que se repetem com mais insistência em seus ensaios. Não deixa de ser curioso que o implacável crítico do marxismo, o 'ópio dos intelectuais' nas palavras de seu professor e amigo Raymond Aron, se deixe levar por vaguidades como 'marcha da civilização' ou 'inexorável progresso histórico'. Em As Idéias e as Formas, lemos:
Esta delirante culpabilização da racionalidade científica e do progresso histórico -- que mal difere, queira ou não Adorno, dos anátemas oraculares do irracionalismo de direita, em Jung ou Heidegger, por exemplo -- aponta para uma curiosa patologia do humanismo. Entre a Renascença e a Ilustração, entre Leonardo e Goethe, o humanismo ocidental era, basicamente, inclusivo: uma ideologia que incorporava o progresso social e intelectual, a Reforma, a ciência, a revolução burguesa. Em constraste com isso, muito humanismo moderno se fez excludente: repele o mundo que o cerca, excomunga as massas e a civilização.
A acusação de humanismo excludente estaria perfeitamente justificada caso estivesse dirigida a sanguessugas da modernidade à Foucault, que se nutrem de seus mais caros pressupostos apenas para condená-la com um nojinho incontido. Merquior, porém, acaba se revelando um inveterado otimista, cético de qualquer crítica sistemática dirigida contra sua querida modernidade. O ceticismo propugnado por ele, indispensável até certo ponto, atinge um paroxismo que o impede de enxergar outra coisa senão negativismo no catolicismo (a religião positiva por excelência) de T. S. Eliot ou no 'reacionarismo' de Irving Babbitt. Aliás, qualquer consideração um pouco mais demorada sobre temas transcendentais corre o risco de receber a solene desaprovação racionalista de nosso neo-iluminista.

No fim das contas a impressão que temos é que -- apesar de ter lidado de frente, e denunciado com tanto brilhantismo, o que há de mais desprezível na intelectualidade ocidental moderna -- Merquior acreditava numa redenção iminente graças ao inevitável triunfo da razão humana. Em homenagem aos dez anos da morte de Merquior, seu amigo José Mário Pereira escreveu um emocionante depoimento (leia aqui) em que é citado um episódio que me parece emblemático da passagem de seu amigo por esse mundo:
Curiosamente, sempre que saíamos do escritório do advogado, então na Praça Pio X, Merquior pedia para irmos até a igreja da Candelária. Postava-se a admirar o interior, fazendo comentários estéticos, e nunca falava em religião ou fé.
Merquior entrou na Igreja e entendeu tudo o que lá havia para ser entendido, menos as questões relacionadas a religião ou fé. A fé dele, a fé no progresso, não permitiu que ele visse que a ameaça dos que querem destruir sua Igreja é real e premente.

02 outubro, 2007

Vovô Smith

Se Mao, Lenin, Stalin, Fidel e Che são devidamente louvados em livros de história distribuídos pelo MEC, há também aqueles que conseguiram, nesses mesmos livros, fama de vilão. O principal deles é Adam Smith (1723-1790), ainda hoje tido como um economista frio e calculista, despreocupado com desigualdades sociais e com a ralé em geral. Não admira que seu The Theory of Moral Sentiments seja hoje pouco comentado, sendo desconhecido até de muitos leitores do seu irmão mais famoso The Wealth of Nations.

Na realidade Smith deixou bem claro que ambos os livros fazem parte de um mesmo projeto: não há possibilidade de convivência e diálogo, ou, em particular, de uma existência econômica, se não há uma moral comum para regulá-la. A notoriedade do Wealth em detrimento do Theory parece hoje bem natural; enquanto um se consagrou pela perspicácia e pelo testemunho favorável da história, os conselhos do outro já parecem obsoletos e exagerados, quando não ingenuamente benevolentes. Vejam como exemplo as primeiras linhas do livro, que tanto assustaram Theodore Dalrymple pela sua incompatibilidade com a realidade atual:
How selfish soever man may be supposed, there are evidently some principles in his nature, which interest him in the fortune of others, and render their happiness necessary to him, though he derives nothing from it, except the pleasure of seeing it.
Smith dizia isso, em suas próprias palavras, in spite of the depravity of our times. Que diria ele de nossos tempos, dois séculos e meio depois da primeira publicação de seu livro, quando essa constatação inicial parece não só improvável mas um tanto ridícula? A inversão é tediosamente previsível: o século 20, irritado com os empecilhos de uma 'moral caduca' como a de Smith, resolve responsabilizar o próprio Smith pelos desastres decorrentes da inobservância dos preceitos morais propugnados pelo, é claro, Smith. Em meios um pouco mais sofisticados, onde a obra do sujeito é ao menos conhecida, faz-se necessário um certo malabarismo retórico e dialético. No Brasil, interpreta-se a famosa 'mão invisível' como uma desculpa para a irresponsabilidade social e a coisa fica por isso mesmo.

No trecho citado acima, assim como em vários outros, fica claro que Smith se refere àqueles que, digamos, ainda não aderiram ao 'liberou geral', que ainda não têm vergonha de acreditar em coisas como a moral cristã ou simplesmente na possibilidade de uma convivência digna e respeitosa. É fato que isso já passou a representar uma excentricidade para muitos. É preciso recorrer a baluartes da reflexão moral, como o Lord Jim de Joseph Conrad, para encontrar ilustrações dignas do trecho abaixo:
The violator of the more sacred laws of justice can never reflect on the sentiments which mankind must entertain with regard to him, without feeling all the agonies of shame, and horrour, and consternation. When his passion is gratified, and he begins coolly to reflect on his past conduct, he can enter into none of the motives which influenced it. They appear now as detestable to him as they did always to other people. By sympathising with the hatred and abhorrence which other men must entertain for him, he becomes in some measure the object of his own hatred and abhorrence. The situation of the person, who suffered by his injustice, now calls upon his pity. He is grieved at the thought of it; regrets the unhappy effects of his own conduct, and feels at the same time that they have rendered him the proper object of the resentment and indignation of mankind, and of what is the natural consequence of resentment, vengeance and punishment. The thought of this perpetually haunts him, and fills him with terrour and amazement. He dares no longer look society in the face, but imagines himself, as it were, rejected, and thrown out from the affections of all mankind. He cannot hope for the consolation of sympathy in this his greatest and most dreadful distress. The remembrance of his crimes has shut out all fellow feeling with him from the hearts of his fellow creatures. The sentiments which they entertain with regard to him, are the very thing which he is most afraid of. Every thing seems hostile, and he would be glad to fly to some inhospitable desert, where he might never more behold the face of a human creature, nor read in the countenance of mankind the condemnation of his crimes. But solitude is still more dreadful than society. His own thoughts can present him with nothing but what is black, unfortunate, and disastrous, the melancholy forebodings of incomprehensible misery and ruin. The horrour of solitude drives him back into society, and he comes again into the presence of mankind, astronished to appear before them loaded with shame and distracted with fear, in order to supplicate some little protection from the countenance of those very judges, who he knows have already all unanimously condemned him. Such is the nature of that sentiment, which is properly caled remorse; of all the sentiments which can enter the human breast the most dreadful. It is made up of shame from the sense of the impropriety of past conduct; of grief for the effects of it; of pity for those who suffer by it; and of the dread and terrour of punishment from the consciousness of the justly provoked resentment of all rational creatures.
O tom é sempre o de um avô afetuoso preocupado com a formação moral de seus netos. Mas vivemos numa sociedade jovem, e os conselhos do vovô Smith parecem estar sendo deixados para uma geração um pouco mais obediente.

19 agosto, 2007

Platão vs. Aristóteles

Comecei a falar do Copleston num outro post e a coisa acabou se transformando num texto sobre o debate com o Russell. Minha intenção original era escrever sobre o livro dele (o primeiro de 9 volumes, cada um deles com umas 500 páginas), A History of Philosophy. Parece existir um consenso no sentido de considerar essa obra a melhor história da filosofia escrita em inglês. Copleston justifica a existência de 'mais uma' história da filosofia ao direcionar seu livro a seminaristas católicos, o que necessariamente implica um ponto de vista, digamos, não destrutivo em relação à filosofia antiga e principalmente em relação à medieval. Como não poderia deixar de ser, Copleston também se queixa do desprezo com que é tratado hoje o legado medieval. É aquela mania que, nas palavras de Mario Ferreira dos Santos, os franceses têm de saltar de Aristóteles a Descartes, os italianos de Aristóteles a Campanella e os alemães de Aristóteles a Kant, levantando problemas já resolvidos com séculos de antecedência.

Mas a nossa preocupação, pelo menos por enquanto, é com a filosofia antiga (de Tales a Plotino), tema desse primeito volume. Um dos aspectos mais perturbadores do período envolve, claro está, seus dois maiores nomes: Platão e Aristóteles. O afresco de Rafael que vai acima -- com Platão, à esquerda, apontando para o alto (supostamente para o mundo das Formas ou Idéias), e Aristóteles para baixo, ressaltando o caráter empírico das coisas --, apesar de coerente, parece ter gerado muita confusão com o tempo. Copleston repete com insistência que, nada obstante as muitas divergências entre ambos, não há discordância quanto a qual seria o verdadeiro objeto da filosofia: a realidade metafísica, transcendente do mundo, em oposição à mera percepção sensorial.

Assim como é comum exagerarem a enfâse que Aristóteles dá ao empírico, exagera-se também o idealismo de Platão, a ponto de hoje sua filosofia ser considerada 'abstrata' e 'distante' demais, como se o sujeito só vivesse no mundo das nuvens. Inclusive procuram justificar essa idéia com a biografia dele: Platão teria se desiludido com a vida política em geral e com a democracia ateniense em particular quando seu mestre Sócrates foi condenado à morte e se tornou um recluso dado a abstrações fantásticas. Daí que muitos interpretem a imagem acima como se Platão estivesse sugerindo, antes de mais nada, um conhecimento das Formas (modelos ideais) para que só depois esse conhecimento pudesse ser aplicado à vida prática. Por exemplo, se queremos uma constituição justa para o Brasil, precisaríamos primeiro conhecer os ideais de Justiça, Coerência, Plausibilidade etc. em sua forma límpida para só depois começar a escrever. Ora, essa interpretação pressupõe que todo legislador é nada menos que Deus: só Deus teria conhecimento suficiente das Formas pra poder tomá-las como ponto de partida. O homem deve partir de manifestações mais palpáveis (e.g., estudar o exemplo de boas constituições, entender por que outras tantas foram um fracasso) e a partir daí seguir numa via ascensional que com muito custo o levaria às Formas propriamente ditas.

A maior objeção de Aristóteles à teoria das Formas é a seperação que Platão impôs entre elas e as coisas sensíveis. Se é verdade que uma constituição é tanto melhor quanto mais se aproximar do modelo de Justiça, como podem constituição e Justiça existir separadamente? Que espécie de interação existe entre elas? Qual a relação entre as Formas e o mundo sensível em geral, qual a relação das Formas entre si? Platão parece ter se debatido com esse problema (a lacuna entre o mundo das idéias e o mundo sensível) até a morte, sem solução explícita. Não ajuda muito o fato de só terem sobrevivido seus diálogos (obras populares de divulgação); todas as transcrições de suas aulas na Academia, onde se supõe que haveria um tratamento mais sistemático desses problemas, foram perdidas. De qualquer maneira Aristóteles, que foi seu aluno na Academia durantes muitos anos, conheceria eventuais soluções platônicas caso elas existissem. Muito pelo contrário, Aristóteles não só aponta esse problema como pinta a filosofia platônica em geral com traços bem grosseiros. Copleston reconhece como válida a crítica central de Aristóteles (o problema da lacuna), mas observa que muitas outras objeções são frutos de uma incompreensão (intencional ou não) do Estagirita.

Por exemplo, Aristóteles não tinha como não saber que o próprio Platão estava ciente dessa deficiência. Tentou resolvê-la, n'O Banquete, dando a entender que as Formas seriam Idéias de Deus, cuja relação com o mundo sensível se daria através da 'imitação' ou da 'participação', apesar de os termos não serem elaborados com mais rigor. Já no Timeu lemos que as Idéias existem independentemente, antes mesmo da criação do mundo, e que o Demiurgo as teria utilizado como modelo para criar as coisas sensíveis. Aristóteles parece tão entusiasmado com a sua solução para o problema (a idéia da imanência) que acaba sendo injusto com os ensinamentos do mestre. Vejam esse exemplo. Aristóteles diz:
The Forms are supposed to explain sensible objects. But they will themselves be sensible: the Ideal Man, for instance, will be sensible, like Socrates. The Forms will resemble the anthropomorphic gods: the latter were only eternal men, and so the Forms are only "eternal sensibles".
Copleston comenta:
This is not a very telling criticism. If the Ideal Man is conceived as being a replica of concrete man on the ideal plane, in the common sense of the word "ideal", as being actual man raised to the highest pitch of development, then of course Ideal Man will be sensible. But is it at all likely that Plato himself meant anything of this kind? Even if he may have implied this by the phrases he used on certain occasions, such an extravagant notion is by no means essential to the Platonic theory of Forms. The Forms are subsistent concepts or Ideal Types, and so the subsistent concept of Man will contain the idea of corporeality, for instance, but there is no reason why it should itself be corporeal: in fact, corporeality and sensibility are ex hypothesi excluded when it is postulated that the Ideal Man means an Idea.
A primeira pergunta a ser feita é: como um gênio do porte de Aristóteles incorreria numa incompreensão tão primária? Pode-se argumentar que a noção de Formas separadas dos objetos sensíveis é tão estranha ao sistema aristotélico, segundo o qual as formas são a essência imanente das coisas (e por isso estão diretamente atreladas a elas), que esse tipo de erro seguiria por tabela. Mas seria de uma ingenuidade monstruosa supor que Aristóteles não compreendia bem a filosofia de Platão; como poderia ele ter adaptado e desenvolvido diversos pontos da herança platônica se não a tivesse compreendido pelo menos superficialmente? Parece mais razoável supor que Aristóteles, convencido de determinadas insuficiências da teoria das Formas, resolveu exagerar e/ou simplificar alguns pontos com fins polêmicos ou didáticos. Assim como dificilmente escapamos à tentação de expor uma teoria que sabemos falsa com traços mais grosseiros que o que seria aconselhável, assim pareceu lícito a Aristóteles extrapolar, às vezes indevidamente, alguns aspectos da teoria em questão. Muito mais importante é o comentário que ele faz sobre a separação entre Idéias e objetos:
It must be held to be impossible that the substance, and that of which it is the substance, should exist apart; how therefore, can the Ideas, being the substance of things, exist apart? The Forms contain the essence and inner reality of sensible objects; but how can objects which exist apart from sensibles contain the essence of those sensibles? In any case, what is the relation between them? Plato tries to explain the relation by the use of terms such as "participation" and "imitation", but Aristotle retorts that "to say that they (i.e. sensible things) are patterns and the other things share in them, is to use empty words and poetical metaphors.
Aqui a crítica parece ser válida, mas Aristóteles ainda dá a entender que as Idéias são entidades dotadas de existência física, sensível, como que para deixar patente o absurdo da teoria. Ocorre que a 'separação' platônica poderia muito bem significar uma espécie de independência (em oposição a uma separação meramente espacial) e, se é verdade que ainda resta a Platão explicar a relação entre Idéias e objetos, também é verdade que Aristóteles, ao rejeitar completamente o 'exemplarismo' platônico, fica impedido de fornecer qualquer matriz transcendental que justifique a fixidez das essências. A síntese do que há de válido em Platão e Aristóteles só veio muito mais tarde, com os filósofos cristãos. Antes, é sempre bom lembrar, de Descartes, Campanella, Kant...

09 agosto, 2007

Copleston vs. Russell

Sempre que me perguntam por que acho que Bertrand Russell (1872-1970), fora do campo da lógica, não foi muito mais que um grande palpiteiro, mando o link de um debate dele com o padre jesuíta Frederick Copleston (1907-1994), transmitido em 1948 pela rádio BBC de Londres. Leiam aqui. Apesar de o Russell levar uma surra do começo ao fim do debate, aqueles poucos conhecidos meus que tiveram paciência de lê-lo inteiro chegaram à conclusão de que o Russell se saiu bem, ou que houve uma espécie de 'empate'. Suponho que a educação quase irritante do bom padre explique, pelo menos em parte, esse fenômeno, como quando ele diz haver um 'impasse' sempre que Russell resolve fugir vexaminosamente da discussão. Complementa a explicação o fato de o agnosticismo intelectual do Russell ser regra quase geral hoje em dia.

O debate começa com a exposição do argumento da contingência de Leibniz como prova metafísica da existência de Deus (é sempre necessário agregar 'metafísica' ou 'filosófica' ao termo 'prova', sob pena de nos exigerem uma fotografia do dito-cujo):
First of all, I should say, we know that there are at least some beings in the world which do not contain in themselves the reason for their existence. For example, I depend on my parents, and now on the air, and on food, and so on. Now, secondly, the world is simply the real or imagined totality or aggregate of individual objects, none of which contain in themselves alone the reason for their existence. There isn't any world distinct from the objects which form it, any more than the human race is something apart from the members. Therefore, I should say, since objects or events exist, and since no object of experience contains within itself reason of its existence, this reason, the totality of objects, must have a reason external to itself. That reason must be an existent being. Well, this being is either itself the reason for its own existence, or it is not. If it is, well and good. If it is not, then we must proceed farther. But if we proceed to infinity in that sense, then there's no explanation of existence at all. So, I should say, in order to explain existence, we must come to a being which contains within itself the reason for its own existence, that is to say, which cannot not exist.
Russell começa dizendo que uma 'proposição necessária', como por exemplo a proposição 'um ser que é somente potência existe necessariamente', tem por força que ser analítica, declaração clara de que tudo que não existe na filosofia dele não existe em lugar algum. Quando Copleston se dá ao trabalho de reduzir o argumento de Leibniz a uma proposição que pode ser considerada analítica -- 'se há um ser contingente há um ser necessário' --, Russell resolve negar a própria inteligibilidade do termo 'contingente'. Copleston adverte repetidas vezes que esse tipo de posicionamento corresponde a reduzir a filosofia inteira a apenas um ramo dela, a lógica, e que essa redução é, ironia das ironias, logicamente insustentável. Num dos últimos parágrafos, Russell confessa não ver sentido no termo 'contingente' assim como Copleston o emprega porque, ora vejam, os seres não podem ser nada além de contingentes -- because there isn't anything else they could be --, uma negação a priori justamente daquilo que se procura mostrar. É como se alguém tentasse demonstrar o teorema de Pitágoras tomando como hipótese que o teorema de Pitágoras não é válido: Russell pretende levar um debate adiante ao mesmo tempo em que nega a legitimidade da única terminologia cabível a ele.

Tão esquisito quanto isso possa parecer, ainda não se compara às atrocidades que ele vem a dizer sobre o argumento moral. É prática comum do agnóstico achar deplorável a idéia de que não pode haver valores transcendentes e universais sem uma entidade igualmente transcendente que lhes confira sustentação: Richard Dawkins considera-a disgusting. É impressionante como o Copleston, com perguntas simples e diretas somente (no que mais parece um arremedo dos mais eficientes do método socrático), consegue levar o Russell a conclusões que ele mesmo deveria considerar inaceitáveis. Acompanhem:
C: You distinguish blue and yellow by seeing them, so you distinguish good and bad by what faculty?

R: By my feelings.

C: By your feelings. Well, that's what I was asking. You think that good and evil have reference simply to feeling?
E, quando Russell responde que podemos errar em nosso julgamento do que é certo e errado, Copleston pode candidamente concluir:
C: Yes, one can make mistakes, but can you make a mistake if it's simply a question of reference to a feeling or emotion? Surely Hitler would be the only possible judge of what appealed to his emotions.
É claro que nossos 'sentimentos' não podem ser os árbitros de toda valoração moral porque, de acordo com os 'sentimentos' do Hitler, tudo que ele fez foi muito bom (e quem melhor que Hitler para interpretar os sentimentos de Hitler?). A idéia de que o homem é medida de todas as coisas é de origem sofista (Protágoras), com a diferença que eles foram mais honestos que Russell e a levaram à sua última consequência: a de que não pode haver erro de julgamento quando o 'sentimento' é o único árbitro. Se saio do banho e o vento me parece frio, ele é frio e ponto. Protágoras sustentava abertamente a posição de que cada um tem sua verdade, e não à toa foi combatido, juntamente com os outros sofistas, por Sócrates e Platão.

Mas Russell, preferindo não levar sua idéia original adiante, lança mão de um artifício mais tosco ainda: igualar moralidade com a opinião da maioria. O mais curioso é que ele estava longe de poder ser caracterizado como um multiculturalista na acepção moderna: deixa claro no próprio debate que abomina práticas como o canibalismo e é notório que relegava comunidades inteiras para a lata de lixo da moralidade. Dirão que Russell escreveu muito e mudou de idéia com frequência ao longo dos anos, mas é possível encontrar esse tipo de contradição na própria transcrição do debate. Apesar de se dizer tão sensível a transgressões morais, não tem respaldo teórico nem para condenar personalidades à Hitler.

O 'impasse' não termina porque Russell insiste, a despeito de seus pressupostos, em condenar Hitler e the like. É forçado a apelar a uma noção quase inacreditável de obrigatoriedade moral: 'aquilo que nossos pais e babás ensinam'. É sério, leiam lá. Hitler e Assurbanipal são condenáveis, apesar de terem sido fiéis aos seus 'sentimentos', porque existe uma massa amorfa de opiniões sem origem e sem explicação, uma espécie de guia comportamental empírico que rege toda a nossa percepção de certo e errado. O que Russell faz aqui, assim como na discussão sobre Deus, é negar a possibilidade de qualquer inspeção mais cuidadosa sobre tudo aquilo que realmente importa. Trata-se de um agnosticismo que corresponde, no sentido mais estrito possível, a uma abdicação intelectual, a um solene escárnio em relação a tudo que ultrapasse o limitado domínio da filosofia analítica. Fora desse pequeno domínio há apenas o império do achismo e as lições de nossas babás.

02 agosto, 2007

Zenão de Eléia

Um dos 'paradoxos' mais conhecidos do pré-socrático Zenão de Eléia parte do seguinte enunciado:
Considere a seguinte situação baseada num dos paradoxos de Zenão de Eléia, filósofo grego do século V A.C. Suponha que o atleta Aquiles e uma tartaruga apostam uma corrida em linha reta, correndo com velocidades constantes V(a) e V(t), com V(a) maior que V(t). Como a tartaruga é mais lenta é-lhe dada uma vantagem inicial, de modo a começar a corrida no instante t = 0 a uma distância d(1) na frente de Aquiles. Calcule os tempos t(1), t(2), t(3), ... que Aquiles precisa para percorrer as distâncias d(1), d(2), d(3), ..., respectivamente, sendo que d(n), n maior ou igual a 2, denota a distância entre a tartaruga e Aquiles assim que Aquiles atinge a posição ocupada pela tartaruga na situação anterior.
O paradoxo consistiria no fato de que quando Aquiles tiver percorrido d(1), a tartaruga já terá avançado um d(2) (ainda que bem menor que d(1)). Quando Aquiles chegar à posição d(1) + d(2), a tartaruga já estará d(3) à frente, e assim sucessivamente, de maneira que poderíamos concluir que Aquiles, nada obstante seu porte atlético e donairoso, jamais conseguirá alcançar a tartaruga.

Como pede o enunciado, passamos a calcular os tempos t(1), t(2), t(3), ... :

t(1) = d(1)/V(a)

Nesse mesmo intervalo, a tartaruga percorre d(2) = V(t).t(1) = V(t).d(1)/V(a)

t(2) = d(2)/V(a), ou seja, t(2) = V(t).d(1)/V(a)2

Nesse mesmo intervalo, a tartaruga percorre d(3) = V(t).t(2) = d(1).V(t)2/V(a)2

Por indução vulgar, chega-se a t(n) = d(1).V(t)n-1/V(a)n, o que significa dizer que a série dos tempos é um progressão geométrica infinita de razão q = V(t)/V(a) (que é menor que 1 pois V(t) é menor que V(a)). Como a soma da P. G. infinita é dada por S = t(1)/1-q, chegamos a S = d(1)/[V(a)-V(t)]. Essa soma representa o tempo gasto por Aquiles para alcançar a tartaruga e, sendo ele finito, o paradoxo desaparece. A mentalidade moderna acompanha a resolução desse exercício sem perceber a origem do 'paradoxo': a noção de que um somatório infinito de termos positivos pode convergir para um valor finito.

Pode-se objetar que todos os paradoxos propostos por Zenão caem por terra assim que se introduz o conceito de continuidade (por exemplo, a linha da corrida de Aquiles é um contínuo de pontos, e não um aglomerado discreto de pontos), mas ele não só sabia disso como era precisamente isso que ele procurou mostrar. A intenção de Zenão não era propriamente defender os argumentos de seu mestre Parmênides, mas sim ridicularizar os pressupostos da escola rival, a escola pitagórica, segundo a qual toda a realidade é composta por unidades discretas. O paradoxo acima mostra que se isso fosse verdade Aquiles jamais seria capaz de alcançar uma mísera tartaruga.

Prova de que a discussão não é ociosa é a atenção que lhe deu ninguém menos que Aristóteles, ao discutir o conceito de infinito na Física. Frederick Copleston, no primeiro volume de sua A History of Philosophy, resume a questão:
Though Aristotle rejected an existent actually infinite body or number, he admitted the infinite in another sense. The infinite exists potentially. For example, no spatial extension is an actual infinite, but it is potentially infinite in the sense that it is infinitely divisible. A line does not consist of an actual infinite of points, for it is a continuum (it is in this way that Aristotle attempts, in the Physics, to meet the difficulties raised by Zeno the Eleatic), but it is infinitely divisible, though this potentially infinite division will never be completely realised in actuality. Time, again, is potentially infinite, since it can be added to indefinitely; but time never exists as an actual infinite, for it is a successive continuum and its parts never coexist. Time, therefore, resembles spatial extension in being infinitely divisible (though no actual infinity is ever realised), but is also potentially infinite by way of addition, and in this it differs from extension, since extension, according to Aristotle, has a maximum, even if it has no minimum. A third potential infinity is that of Number, which resembles time in being potentially infinite by way of addition, since you cannot count up to a number beyond which all counting and addition is impossible. Number, however, differs from both time and extension in being insusceptible of infinite division, for the reason that it has a minimum - the unit.
E bastaria que se falasse em números racionais para que a noção de Número também se tornasse potencialmente infinita by way of division.

27 julho, 2007

Pós-Darwinismo

Por que sou ‘pós-darwinista’? Porque eu já fui evolucionista de carteirinha. Hoje eu sou cético da teoria macroevolutiva como verdade científica. Contudo, o meu ceticismo ao ‘dogma central’ do darwinismo não é baseado em relatos da criação de textos sagrados. Foi a séria e conflituosa consideração do debate que vem acontecendo intramuros e nas publicações científicas há muitos anos sobre a insuficiência epistêmica da teoria geral da evolução. Eu fui ateu marxista-leninista, mas hoje não tenho mais fé cega no ateísmo. Eu também não creio mais na interpretação literal dos dogmas aceitos ‘a priori’ de Darwin que são ideologicamente defendidos com unhas e dentes pela Nomenklatura científica, mas foi a Ciência que me deu esta convicção. Aprendi na universidade que quando uma teoria científica não é apoiada pelas evidências, ela deve ser revista ou simplesmente descartada. Sou pós-darwinista já me antecipando a uma iminente e eminente ruptura paradigmática em biologia evolutiva. Chegou a hora de dizer adeus a Darwin.
Link: http://pos-darwinista.blogspot.com/

23 julho, 2007

A Volta ao Ideal

This is another book about the dissolution of the West. I attempt two things not commonly found in the growing literature of this subject. First, I present an account of that decline based not on analogy but on deduction. It is here the assumption that the world is intelligible and that man is free and that those consequences we are now expiating are the product not of biological or other necessity but of unintelligent choice. Second, I go as far as to propound, if not a whole solution, at least the beginning of one, in the belief that man should not follow a scientific analysis with a plea of moral impotence.
Esse é o primeiro parágrafo do Ideas Have Consequences (1948), clássico do uma vez professor da Universidade de Chicago Richard M. Weaver (1910-1963). Rapidamente ele deixa claro o porquê de o livro ser do nosso interesse: trata-se, é certo, de mais um livro sobre a dissolução do Ocidente, mas somos poupados do constrangimento de ter que fazer vista grossa para teorias mirabolantes sobre o desdobramento de nossa história. O homem é não só considerado livre do determinismo biológico, tão na modinha nos dias que correm, como também de qualquer outro, seja ele econômico, social ou referente aos ciclos da lua. O homem é livre e por isso mesmo deve chegar à conclusão de que suas idéias têm consequências, muitas delas catastróficas.

Está claro que a escolha de abrir mão de determinismos, materialismos, pragmatismos, nominalismos etc. não tem como objetivo maior o conforto do leitor (apesar de o efeito nesse sentido ser, alas, considerável): segundo Weaver todos esses ismos todos são eles mesmos sintomas da dissolução que ele se propõe a descrever. Weaver fala com bastante insistência no sumiço do 'ideal' de nossa perspectiva, sendo o sumiço da noção de 'verdade' uma consequência meio imediata. E, se não há verdade, tampouco se pode falar em consequências para aqueles que decidem ignorá-la. Nossa tão prezada idéia de responsabilidade individual vai pelos ares.

A princípio pode parecer curioso que Weaver não precise de muito mais que Sócrates, Platão e Aristóteles para responder a altura a todas essas moléstias típicas da modernidade. Autores modernos (leia-se: posteriores ao século 14) são citados muito de passagem, muitas vezes apenas para emprestar um termo engenhoso ou uma frase de efeito. Os preferidos de Weaver são Charles Péguy, José Ortega y Gasset e George Santayana. De resto, somos levados a crer que a maioria dos problemas que, no entender de Weaver, assolam a perspectiva moderna foram convenientemente comentados e elucidados há muitos séculos. Não chega a surpreender, então, que o primeiro conselho de Weaver aos jornalistas seja aprender grego e latim. Qualquer outro caminho nos levaria à embaraçosa posição de ter que lidar com problemas que já nasceram resolvidos. Com as palavras de Santayana, Those who cannot remember the past are condemned to repeat it.

Temos aí um conselho de difícil aceitação entre quem ainda acha que somos tão mais 'evoluídos' quanto mais o tempo passa, um credo que de tão firme poderia ser caracterizado como religioso. Se o homem moderno não tem mais fé no sentido tradicional da palavra, certamente tem fé de que nossa razão, por si só, poderá resolver tudo no final das contas. O problema muitas vezes parece ser de memória. Weaver aceita a idéia de Ortega (v. ¿Qué es filosofía?) de que é necessário divisar uma espécie de superação para a oposição idealismo versus realismo, mas adverte que é necessário, primeiro, saber (ou lembrar) o que ambos significam: Our task is much like finding the relationship between faith and reason for an age that does not know the mearning of faith.

O consolo de quem acredita em valores fixos e universais (como Sócrates em oposição ao sofista Protágoras, para quem conhecimento se confundia com percepção individual) é de que não existem momentos históricos mais ou menos propícios para que eles sejam alcançados; basta que se reconheça a necessidade de alcançá-los. O eterno, exatamente por ser eterno, é eterno sob qualquer ponto de vista. Para quem está diante de uma linha infinita paralela ao horizonte, deslocar-se para a esquerda ou para a direita é indiferente. Quando alguém diz que uma volta à aceitação de valores universais representa uma absurdidade por ser impossível 'fazer voltar a roda do tempo', estamos ouvindo nada mais que uma confissão da modernidade tal como descrita por Weaver: uma modernidade que se acredita irremediavelmente presa em seu momento histórico ou biológico ou astrológico.

Apesar do rigor com que denuncia as mazelas contemporâneas, a mensagem de Weaver acaba sendo otimista por admitir aquele mínimo de liberdade que, por mais mínimo que seja, é com frequência declarado inexistente. Se é bem verdade que más escolhas devem trazer consequências nada agradáveis, também é verdade que é sempre tempo de optar por algo melhor. É um princípio tao lógico que muitos acharam que não haveria mal algum em esquecê-lo.

14 julho, 2007

Senhores e Escravos

Genealogia da Moral, conhecido por tratar na forma de três dissertações de alguns dos temas preferidos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), começa abordando a já famosa oposição entre a moral dos senhores e a dos escravos:
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um "fora", um "outro", um "não-eu" -- e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores -- este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si -- é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto -- sua ação é no fundo reação.
A descrição é bem justa, e Ortega y Gasset parece ecoá-la mais tarde quando observa que todo movimento 'anti-' não passa de um retrocesso, uma tentativa de meramente voltar, sem qualquer tipo de assimilação, à época em que o que queremos destruir ainda não existia. Para quem a vontade de poder, esse princípio tão misterioso quanto energético, representa a essência mesmo do ser humano, não poderia haver heresia mais grave que abdicar da ação em troca de uma simples reação. Não nos deve surpreender o fato de Nietzsche considerá-los, então, nada menos que doentes, a ponto de comprometer até mesmo o ar que respiram. A aparente obsessão de Nietzsche por toda sorte de doenças e distúrbios mentais é representativa disso.

A oposição fica mais clara com um exemplo fornecido pelo próprio Nietzsche: aves de rapina que se alimentam de ovelhinhas. Pode-se até entender o protesto das ovelhas (apesar de que, se seus protestos fossem ouvidos, quem estaria em apuros seriam as aves, o que significa dizer que as ovelhas querem nada mais que uma transferência de desgraças), mas o curioso é observar como a moral dos derrotados surge a partir dessa posição desconfortável. Na mentalidade das ovelhas, os decanos da moral são elas mesmas, que não precisam se alimentar de outras ovelhas para sobreviver. O "não-eu", tudo que não é oprimido e devorado, aves de rapina e qualquer outra coisa que se distancie da posição de 'ovelha', é automaticamente associado ao moralmente desprezível e abjeto. A moral das ovelhas não se define a partir do que elas são, mas do que elas não são: aves de rapina.

Através dos séculos, a responsabilidade de manter o que se entende por moral e de tentar responder às questões de maior escopo passou do 'doutor em filosofia' (o modelo do rei filósofo de Platão) para o gentleman e, mais recentemente, para o homem especializado. O que se percebe nessa sucessão é uma gradativa diminuição na crença em valores fixos, eternos. O doutor em filosofia discutia a vida enquanto vontade divina, quando Deus ainda ocupava, indiscutivelmente, o centro de qualquer consideração moral; o gentleman já vive numa sociedade secularizada, mas ainda tem condições de lançar mão de princípios com um mínimo de autoridade universal (liberdade, honra ou o que for); já o especilista não dispõe de nenhuma matriz do que poderia chamar 'verdade': ele segue objetivamente suas descobertas. Já não há mais verdade, há apenas fatos.

Pois bem, o que Nietzsche procura fazer é questionar o valor da 'verdade'. Exaspera-o a constatação de que tanto o monge protestante quanto o cientista e o ateu partem de um mesmo pressuposto: o de que é preciso a todo custo chegar à verdade, já que seu valor, enquanto tal, é indiscutível e essencial. O 'vencedor', o 'senhor' de Nietzsche é aquele que portanto não é acometido por problemas de consciência, o que Paulo César de Souza traduziu como consciência. Se não há uma verdade capaz de nos fazer ver que estamos terrivelmente errados (essa possibilidade não existe para quem segue sua genuína e original vontade de poder), realmente não faz muito sentido perder tempo com mortificações típicas de um culpado. O peso na consciência, para Nietzsche, não passa de uma autoflagelação insana, uma radical negação da própria vida, uma doença aparentemente incurável.

Daí que o modelo cristão, que para mim representa a atitude do 'senhor', pareça-lhe a mais genuína encarnação do 'escravo':
... e a impotência que não acerta contas é mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em 'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em 'obediência' (há alguém que dizem impor esta submissão - chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de 'paciência', chama-se também a virtude; o não-poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão. Falam também do 'amor aos inimigos' -- e suam ao falar disso.
E, como consequência da ausência de 'verdade':
Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo "injusto", na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter.
Temos aí bastante food for thought, como diriam os gringos: quantos Nietzsches seriam necessários para acabar de vez com a influência paralisante e opressora da má consciência? Parece que o processo já está em andamento.

09 julho, 2007

Bizarro Burke

Passados 250 anos, alguma das explicações que o Burke apresenta pra alegações até bem naturais (como a de que a idéia da escuridão está diretamente relacionada ao sublime) rendem uma leitura divertida. Em dado momento, ele tenta atribuir parte do efeito que o escuro pode produzir em nós à dor física:
It may be worth while to examine, (sic) how darkness can operate in such a manner as to cause pain. It is observable, that still as we recede from the light, nature has so contrived it, that the pupil is enlarged by the retiring of the iris, in proportion to our recess. Now instead of declining from it but a little, suppose that we withdraw entirely from the light; it is reasonable to think, that the contraction of the radial fibres of the iris is proportionably greater; and that this part may by great darkness come to be so contracted, as to strain the nerves that compose it beyond their natural tone; and by this means to produce a painful sensation.
Mas meu trecho preferido diz respeito à doçura. Burke parece convencido de que substâncias doces devem sua sensação agradável ao paladar à forma arredondada do retículo cristalino dos grãos de açúcar, que assim poderiam deslizar languidamente sobre as papilas da língua. Vejam:
Suppose that to this water or oil were added a certain quantity of a specific salt, which had a power of putting the nervous papillae of the tongue into a gentle vibratory motion; as suppose sugar dissolved in it. The smoothness of the oil, and the vibratory power of the salt, cause the sense we call sweetness. In all sweet bodies, sugar, or a substance very little different from sugar, is constantly found; every species of salt examined by the microscope has its own distinct, regular, invariable form. That of nitre is a pointed oblong; that of sea salt an exact cube; that of sugar a perfect globe. If you have tried how smooth globular bodies, as the marbles with which boys amuse themselves, have affected the touch when they are rolled backward and forward and over one another, you will easily conceive how sweetness, which consists in a salt of such nature, affects the taste; for a single globe, (though somewhat pleasant to the feeling) yet by the regularity of its form, and the somewhat too sudden deviation of its parts from a right line, it is nothing near so pleasant to the touch as several globes, where the hand gently rises to one and falls to another; and this pleasure is greatly increased if the globes are in motion, and sliding over one another; for this soft variety prevents that weariness, which the uniform disposition of the several globes would otherwise produce.

07 julho, 2007

O Belo e o Sublime

Outro dia reparei em algo que ainda agora considero genial: existe uma tácita superioridade do salgado em relação ao doce. Esse é o tipo da coisa de que poucos, acredito, discordariam, apesar de não se sentir a necessidade de expressá-lo claramente. A vontade de doce pode até ser mais forte e repentina, mas também passa mais rápido e a saciedade a ela relacionada lembra uma espécie de enjôo. A vontade de doce é instável, volúvel, passageira. Não é à toa que representa o maior deleite de muitas moças.

Pois bem, essa 'superioridade' que eu percebi, se aceitamos a distinção proposta por Edmund Burke em seu A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, está relacionada à idéia do sublime, não da beleza. De fato, Burke chega a concluir, depois de muito divagar sobre os pontos de união de nossos sentidos, que a doçura é a beleza do paladar. Da mesma maneira podemos dizer com muita propriedade que um belo pedaço de picanha bovina, e não um brigadeiro, é sublime. É claro que há quem diga que o brigadeiro pode ser sublime, mas isso não passa de uma variante da veadagem contemporânea (convém reparar, aliás, na maneira sub-reptícia com que o vocábulo 'sublime' foi sequestrado por esse pessoal). Sublime, para nós, está associado ao grandioso, ao estupeficante, àquilo capaz de nos deixar num estado de (é esse o termo que Burke usa com mais insistência) astonishment.

Se a intenção é diferençar o belo do sublime, algumas dicotomias se apresentam logo como bastante úteis: o sublime traz a idéia de grandioso (no sentido de dimensões generosas mesmo) assim como a beleza se aproxima mais do pequeno (alguém duvida que um gatinho perderia boa parte de sua beleza se tivesse dois metros de altura?). Se o belo desperta em nós impulsos amorosos, o sublime é muito mais provavelmente capaz de produzir um misto de assombro, medo e até mesmo dor.

Burke se distingue da maioria dos que se dedicaram a esse tópico por atribuir uma importância marginal à razão humana. Considere-se como exemplo o prazer que sentimos ao presenciar qualquer tipo de desastre ou calamidade ou sofrimento. Esse prazer é inegável e existe desde sempre, ou não seríamos capazes de explicar o sucesso de espetáculos de gladiadores, de touradas, das tragédias grega e elizabetana, ou até mesmo de filmes trágicos de recentemente. A primeira resposta que nossa razão procura dar consiste em lembrar que só nos divertimos com o sofrimento que é sabidamente fictício (touradas e gladiadores já contrariam esse argumento). Mas basta lembrar a maneira com que acompanhamos a história para perceber que as coisas não são bem assim: batalhas e morticínios históricos ganham um colorido todo especial exatamente por sabermos que eles de fato ocorreram. O assassínio de Júlio César seria um episódio bem menos interessante caso não passasse de ficção. Até mesmo quando passamos a acontecimentos puramente mitológicos ainda entretemos alguma esperança de realidade, a menos que alguém acredite que seja completamente impossível haver um fundo real para mitos como os de Medéia ou Saturno.

A próxima justificativa é menos edificante e consiste em dizer que nos divertimos porque aquele sofrimento não pode ser nosso. É claro que se minha própria mãe me matasse eu não teria condições de subtrair qualquer tipo de prazer do mito de Medéia (já que eu estaria morto), mas não me parece lícito atribuir essa distância a qualquer impressão que eu tenha do mito em si. Muito pelo contrário, é mais natural supor que a morte perderia gradativamente todo e qualquer interesse (e, como consequência, seu caráter sublime) para mim se minha natureza fosse alheia a ela, isto é, se eu fosse imortal. Para Burke, todas essas construções tardias da razão procuram mascarar um processo que se dá antes que qualquer arrazoado tenha tempo de ser produzido:
Chuse a day to represent the most sublime and affecting tragedy we have; appoint the most favourite actors; spare no cost upon the scenes and decorations; unite the greatest efforts of poetry, painting and music; and when you have collected your audience, just at the moment when their minds are erect with expectation, let it be reported that a state criminal of high rank is on the point of being executed in the adjoining square; in a moment the emptiness of the theatre would demonstrate the comparative weakness of the imitative arts, and proclaim the triumph of the real sympathy.
Parece não lhe ocorrer que esse predomínio das paixões (no caso anterior, o da 'simpatia', esse interesse mórbido que temos pela vida, e morte, de nossos semelhantes) antes de qualquer intervenção da razão torna impossível o projeto a que ele mesmo se propõe, o qual consiste em nada menos que estabelecer, através da razão, um itinerário de nossas paixões. Burke parece se dar conta disso antes mesmo do término de seu inquérito, quando se contenta com apontar de maneira inequívoca as diferenças entre o belo e o sublime, termos que até hoje, e principalmente hoje, costumam ser usados como sinônimos por muitos.

04 julho, 2007

A Boa Nova

Há dois mil anos, o homem tem algo radicalmente novo, que não chega a possuir de todo e sim por partes, com desamor, abandonos, infidelidades; algo que está perante nós como algo que é preciso conquistar. Algo, não se esqueça, que está diante de nossa liberdade sem forçá-la: a perspectiva cristã.
Durante as aulinhas de religião no colégio eu ouvia, com muita frequência, a expressão 'boa nova' em referência à novidade cristã no mundo. É bem compreensível que um menino de 10 anos (mais interessado em jogar bola ou jogar giz nos outros) não veja muito de especificamente 'bom' nisso, mas que ele também não veja nada de 'novo' é prova de como o cristianismo ainda é parte integrante de mentalidades que se querem secularizadas. O que era radicalmente novo é hoje habitual e óbvio, universal.

Assim como Hayek dizia que os confortos gerados pelo liberalismo minaram sua própria existência (a partir de questionamentos que só se tornaram possíveis graças, é claro, ao liberalismo), assim também o homem moderno aprendeu a absorver uma herança cristã no momento mesmo em que se esforça para difamá-la e para declarar-se completamente independente dela. Seria ocioso repetir aqui as evidências da presença religiosa em comunidades supostamente secularizadas; são resquícios que teimam em não desaparecer, ainda que já tenham perdido boa parte de seu significado original. Se não fosse de nosso feitio achar que toda a história da humanidade representa uma via ascendente cuja culminância é nosso próprio umbigo, essa heróica sobrevivência do ideário religioso significaria algo mais que a simples inércia dos velhos hábitos.

Falando do cristianismo em particular, é bem-vindo o esforço do filósofo espanhol Julián Marías (1914-2005) no sentido de refrescar nossas memórias quanto à perspectiva cristã tradicional. Nesse livrinho, A Perspectiva Cristã, um de seus últimos (favor evitar a edição brasileira), Marías se concentra no que há de radicalmente novo, revolucionário mesmo, na doutrina cristã.

Nada do que há de originalíssimo no cristianismo nos aparecerá como tal se não estivermos dispostos a imaginar o mundo sem sua contribuição, o que já é tarefa bem difícil desde há muito. Sabemos que não se encontra no monoteísmo essa grande novidade; o judaísmo está aí para provar que a idéia de um criador único não era nova. Mas, quanto à 'substância' desse criador:
Desde o Gênese já era Criador, mas agora não só não haverá pluralidade de nomes como também "Deus" será um nome próprio, um nome pessoal. Além de Criador, é Pai, Pai comum de todos os homens; a unicidade de Deus e sua paternidade são correspondentes à fraternidade de todos os homens por serem filhos de Deus, não apenas "semelhantes", mas irmãos, sem distinção nem privilégio.
Como sói acontecer, a princípio pode parecer que não há nada de muito novo aqui. A necessidade e o 'bem' inerente a uma convivência harmoniosa adviria da circunstância inarredável de sermos 'semelhantes', não havendo, portanto, a necessidade de chegarmos ao ponto de nos enxergar como 'irmãos'. Ocorre que por mais que se queira mostrar nossa semelhança do ponto de visto biológico (ou qualquer outro), o fato é que são as nossas diferenças as que sempre ficam em primeiro plano. Nossa história é um imenso catálogo de conflitos que não puderam ser evitados a despeito de nossa tão alardeada similitude. A noção que hoje temos de respeito à vida alheia, por mais trivial e of course que possa parecer, não tem outra origem senão a constatação de que somos algo mais que seres com grande semelhança física e, de quando em vez, comportamental.

Tudo isso é de fato muito novo, e radical. Tão mais radical porque o status de irmão, de criatura do mesmo criador, é conferido a todo e qualquer ser humano, não apenas aos 'fiéis'. E não haveria como ser diferente, já que qualquer desvio representaria nada menos que um supremo desrespeito à diversidade que, se estamos de acordo com a perspectiva cristã, tem uma origem única, a nossa mesma origem. Chegamos à primeira grande consequência prática da novidade cristã: a vida humana passa a ser sagrada.

É bastante comum ouvirmos falar da intransigência da Igreja ou de qualquer posicionamento que se diga religioso. Chega-se ao ponto de estabelecer uma relação de sinonímia entre religião e inflexibilidade, intransigência, negacionismo ou anacronismo. Se é verdade que isso se verifica aqui e ali, seria o caso de apelar para a autoridade do cristianismo como aliado, visto que nada poderia ter o direito de abominar esse estado de coisas mais que o cristianismo:
A idéia de uma perfeição inexequível, mas ao mesmo tempo "proposta" como alvo e meta desejáveis, a esperança de um conhecimento pleno de Deus, prometido na outra vida mas mencionado como algo que se pode e deve tentar - credo ut intelligam, fides quaerens intellectum -, é uma atitude que mobiliza o homem para buscar, tantar, indagar, ensaiar. A sucessão incessante de estilos artísticos, formas literárias, sistemas intelectuais, formas políticas, pode ser interpretada como uma das consequências da perspectiva cristã.
O grifo acima - buscar, tentar, indagar, ensaiar - é meu e deixa claro a perfeita concordância (mais, a rigorosa indissolubilidade) entre ciência e religião. Esse princípio também destrói de vez qualquer das alegações propostas no parágrafo anterior; muito pelo contrário, não nos deve admirar o fato de a ciência, as artes e as instituições políticas terem se desenvolvido com vigor especial nas regiões afetadas direta ou indiretamente pelo cristianismo. Qualquer restrição a essa liberdade criativa, ainda que perpetrada sob os auspícios de um discurso cristão (como não deixou de ocorrer), é nada menos uma infidelidade à perspectiva original. Chegamos, então, à segunda grande consequência prática do cristianismo: a necessidade de (e a liberdade para) um processo de aperfeiçoamento - ou de evolução, se quiserem - que não termina nunca.

A própria condição de criatura (com as palavras de Marías: uma empresa, um processo em andamento, um ser imperfeito no sentido etimológico da palavra) conferida ao ser humano já pressupõe a necessidade da melhoria e do refinamento, mudanças cuja plenitude será alcançada num outro mundo.

Resta falar da terceira e última grande contribuição prática do cristianismo: a noção de responsabilidade pessoal. Isso é consequência direta da idéia de um Deus pessoal e infinito: sendo pessoal e infinito, o amor divino chega a nós pessoalmente, instâncias individuais ainda que imperfeitas, e não a um grupo amorfo qualquer. É comum de nossa parte querer conferir um caráter puramente moral à noção de pecado, mas ele corresponde, dentro da perspectiva cristã, a uma quebra de acordo, acordo firmado entre seres inteligentes. É bem verdade que à medida que se vai descartando a idéia do pecado, introduz-se uma atenuação da consciência moral: imaginar que essa consciência possa ter origem em conceitos tardios e largamente manipuláveis como 'liberdade', 'democracia', 'igualdade' é, quando pouco, excessivamente problemático.

Caráter sacro da vida humana; liberdade para explorar e melhorar; responsabilidade pessoal. Isso tudo soa familiar? Somos todos cristãos, ateus e agnósticos inclusive.

11 maio, 2007

O Deus Social

A introdução do As Formas Elementares da Vida Religiosa, clássico do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), aborda a questão da categorização do conhecimento e antecipa que as categorias têm origem social. Diferentemente dos aprioristas, que acreditam serem as categorias anteriores à experiência sensível (e que por isso têm inclusive a função de condicioná-la), e dos empiristas, que preferem acreditar que elas são construídas gradativamente a partir da experiência individual, Durkheim procura suprimir as insuficiências de ambas essas visões ao atribuir toda a capacidade criativa ao convívio social. De início a idéia não parece muito convincente (ou antes parece ser um mero deslocamento do problema: o que era a priori apriorista, ou não, passou a ser a priori social), mas ao menos temos a promessa de que a tese será abundantemente demonstrada mais adiante.

O livro se proprõe a analisar a forma religiosa mais primitiva de que temos notícia, o totemismo, principalmente o australiano. O motivo é simples: se queremos entender que impulsos teriam motivado o ser humano a desenvolver as manifestações religiosas, teremos mais probabilidade de sucesso se os analisamos em sua forma mais pura possível, isto é, em sua forma mais primitiva. É por isso também que Durkheim dá enfase à variante australiana do totemismo, citando a norte-americana, mais desenvolvida e portanto menos característica, apenas de passagem, quando ela parece capaz de esclarecer algum ponto duvidoso.

O didatismo de Durkheim é realmente admirável e é bem perceptível nos trechos descritivos, em que são delineados as crenças e os ritos totêmicos, e negativos, em que se criticam as principais concepções da religião elementar. Os capítulos iniciais são dedicados à exposição de duas delas: o animismo e o naturismo. O animismo, como se sabe, procura explicar a origem do fenômeno religioso através dos seres espirituais (almas, espíritos, deuses, anjos, demônios etc.), enquanto que o naturismo enxerga nas forças cósmicas (catástrofes naturais, astros, animais, minérios etc.) o começo de tudo. Segundo o animismo, a noção de alma teria surgido através do sonho: o homem, vendo-se a si mesmo, num sonho, em ambientes desconhecidos e com pessoas estranhas, ou até mesmo em lugares que sabe serem distantes, supõe existir dentro de si uma entidade móvel que pode percorrer grandes distâncias enquanto ele dorme. Se ele sonha com algum morto, supõe inclusive que essa entidade tem o poder de se transportar ao mundo dos mortos, sempre retornando à sua morada habitual no momento em que o sonho acaba.

Durkheim se opõe a essa concepção observando, muito propriamente, que é difícil entender como uma espécie de alucinação temporária (o sonho), tenha podido dar origem a um sistema tão abrangente e de influência tão direta na vida de todos nós. Não são poucos os que admitem que a idéia de moral, noções de direito e até de ciência têm sua origem no pensamento religioso; como explicar que aspectos que viriam a moldar o que entendemos por civilização sejam todos oriundos de uma experiência vaga e confusa como o sonho, o qual poderia, de resto, ser explicado cada um à sua maneira? A principal objeção de Durkheim ao animismo diz respeito à escassez de 'objetividade' do sonho: se a religião afeta nossas vidas de uma maneira tão direta e palpável, é inadmissível que ela tenha como origem algo além do estritamente real.

O naturismo parte para o extremo oposto, o que significa dizer que as sensações geradoras do sentimento religioso são naturais e podem ser experimentadas a todo momento: a chuva, o sol, os eclipses, a movimentação das estrelas, a mudança das estações. Durkheim reconhece a sensação de maravilhamento que os fenômenos naturais são passíveis de suscitar, mas lembra que esse posicionamento de inferioridade em relação à natureza é um produto bem tardio de nossa civilização. O homem primitivo, muito pelo contrário, deveria acompanhar com certa monotonia a passagem de dias tão parecidos uns com os outros. A impressão inicial deveria portanto ser a de uma regularidade massiva, apenas ocasionalmente perturbada por singularidades. Como atribuir caráter divino a algo que se manifesta de maneira tão desconexa e espaçada? Acresce o fato de as primeiras 'divindades' (os totens) serem animais e vegetais comuns, desprovidos de poderes excepcionais, e não forças cósmicas, que só seriam alçadas ao nível do divino bem mais tarde.

Durkheim está sempre atento aos malabarismos retóricos empregados para justificar uma determinada tese; assim, quando respondemos à pergunta "por que a natureza teria inspirado no homem primitivo a idéia do divino" com um simples "é próprio da condição humana sentir-se assim em relação à natureza", estamos apenas dando um passo para trás: poderíamos prosseguir perguntando por que isso é próprio da condição humana. Se repetirmos o processo indefinidamente chegaremos a uma de duas conclusões. A primeira é que não nos é dado conhecer a resposta, e a segunda é admitir que a tese em questão é insuficiente. Parece pouco provável que um analista tão atento às falhas dos outros seja capaz de cometer o mesmo tipo de erro. Ao propor uma alternativa para a origem das crenças totêmicas, Durkheim observa que
De uma maneira geral, não há dúvida de que uma sociedade tem tudo o que é preciso para despertar nos espíritos, pela simples ação que exerce sobre eles, a sensação do divino; pois ela é para seus membros o que um deus é para seus fiéis.
A primeira dificuldade consiste em saber o que exatamente ele entende por sociedade. Está claro que o convívio social tende sempre a alargar nossas perspectivas; a comunhão de idéias, de experiências e de sentimentos é inegavelmente fundamental para a sustentação e engrandecimento de qualquer ser humano, mas Durkheim parece querer ir bem além. A visão que ele tem do poder social é de tal maneira obscura que há inclusive uma dificuldade terminológica ao expressá-la; recorre-se com frequência a termos como 'energia', 'eletricidade', 'divindade' (sendo que, se bem lembramos, é exatamente o caráter divino da sociedade que ele pretende mostrar) etc. para descrever a influência social sobre a consciência particular.

Durkheim parece particularmente entusiasmado com o fato de o homem primitivo adentrar um estado de frenesi em vários dos rituais coletivos; para ele, isso seria indicativa de que a comunhão social tem o poder de não apenas elevar o homem acima de si mesmo, mas também de levá-lo a um estado de torpor em que nem sequer é capaz de se reconhecer. E, quando se lhe apresentam objeções, prefere supor que a origem de tanto poder é complexa demais para ser discernida no momento:
Mas a ação social segue caminhos muito indiretos e obscuros, emprega mecanismos psíquicos complexos demais para que o observador vulgar possa perceber de onde ela vem. Enquanto a análise científica não vier ensinar-lhe isto, ele perceberá que é agido, mas não por quem é agido.
Quando lembramos a principal objeção de Durkheim ao animismo, a de que toda a religião, segundo essa teoria, não passaria de uma grande alucinação, surge uma dúvida inquietante: não seria essa mesma objeção válida para a tese de Durkheim, com a diferença de que agora teríamos 'alucinações coletivas'? Ele mesmo percebe esse perigo e responde da maneira mais evasiva possível: são alucinações, mas alucinações calcadas no 'real' (a realidade social, que é inegável), seja isso lá o que for. Aceita-se de bom grado essa resposta quando se aceita a visão que Durkheim tem da sociedade, mas não é justamente essa visão que ele ainda está por provar? Chega a ser incrível que alguém tão atento às falhas alheias seja incapaz de perceber a ingenuidade do próprio raciocínio.

Um particular que ilustra bem a importância exagerada que Durkheim atribui à sociedade é o dos ritos piaculares. É sabido que os ritos dedicados aos mortos pelos primitivos da Austrália podem chegar a níveis assombrosos de violência. A mulher do morto, numa peregrinação que pode durar horas, entra num estado de desespero que a leva a queimar o próprio corpo (pernas e seios), arrancar os cabelos e arranhar a testa até que o sangue lhe escorra pelos olhos. Algumas dessas flagelações são tão intensas e prolongadas que levam à morte do indivíduo. Durkheim explica todo esse processo da seguinte maneira:
Sabe-se, por outro lado, como os sentimentos humanos se intensificam quando se afirmam coletivamente. A tristeza, da mesma forma que a alegria, se exalta, se amplifica ao repercutir de consciência em consciência, por isso acaba se exprimindo exteriormente na forma de movimentos exuberantes e violentos. Não é mais a agitação alegre que observávamos há pouco: são gritos, urros de dor. Cada um é arrastado por todos; produz-se algo como um pânico de tristeza. Quando a dor chega a esse grau de intensidade, junta-se a ela uma espécie de cólera e exasperação. Sente-se a necessidade de quebrar, destruir alguma coisa. As pessoas se voltam contra si mesmas ou contra os outros. Golpeiam-se, ferem-se, queimam-se, ou então se lançam contra alguém para golpeá-lo, feri-lo e queimá-lo. Foi por isso que se estabeleceu o costume de se entregar, durante o luto, a verdadeiras orgias de torturas.
A primeira suspeita que se tem ao ler esse trecho é que ele parte de um conhecimento psicológico do homem primitivo que nos é completamente estranho. Poderíamos pensar no convívio coletivo como uma espécie de atenuante para a dor; as pessoas, em vez de partir para a destruição, poderiam muito bem consolar-se mutuamente, mitigando qualquer impulsivo violento que viesse a surgir. É provável que tudo isso seja completamente inviável em se tratando da mente primitiva, mas Durkheim tampouco se dá ao trabalho de explicar por que sua suposição escolhe o caminho contrário. Em verdade, a partir de determinado momento, a 'sociedade' serve como elemento explicativo para todo e qualquer pequeno mistério que lhe apareça pela frente. Desde que o Formas Elementares foi publicado (1917), chegou-se à conclusão (Frazer) de que o totemismo não é a forma religiosa mais antiga. Essa descoberta, se verdadeira, obviamente invalida argumentações que se sustentem nesse fato (como a última objeção de Durkheim ao animismo), mas essas argumentações têm ao menos o mérito de manter uma coerência interna. Já a panacéia social de Durkheim está muito além de qualquer refutação factual.

A imagem que Durkheim tem da religião como um todo é curiosa: ao mesmo tempo em que ele nos faz um tremendo favor ao jogar por terra idéias modernas que desmecerem irracionalmente o pensamento religioso (ao observar, por exemplo, que a mentalidade secular atual ainda é carregada de aspectos religiosos, ou ao mostrar que a própria lógica científica tem sua origem na religião), ele empacota a coisa toda e a subordina a uma entidade verdadeiramente sobrenatural, a tal sociedade. Se julgamos encontrar uma alternativa ao enfatizar a existência de cultos individuais, totens individuais etc., Durkheim é rapido em lembrar que "as forças religiosas às quais eles [os indivíduos] se dirigem não são mais que formas individualizadas de forças coletivas." Toda e qualquer religião só deixa de ser uma alucinação, só passa a ter uma existência propriamente dita, quando se manifesta socialmente. Uma noção tão restrita do que seria a realidade só poderia levá-lo à seguinte conclusão:
Mas esses aperfeiçoamentos metodológicos não são suficientes para diferenciar a ciência da religião. Sob esse aspecto, ambas perseguem o mesmo objetivo: o pensamento científico é tão-só uma forma mais perfeita do pensamento religioso. Parece natural, portanto, que o segundo se apague progressivamente diante do primeiro, à medida que este se torne mais apto a desempenhar a tarefa.
Ou seja: a religião só tem por que existir enquanto a ciência não se desenvolve completamente, como se essa crença na potencialidade ilimitada da ciência não fosse, ela mesma, religiosa. Durkheim se propõe a estudar as origens da religião para concluir que ela não passa de uma ciência mais estabanada, que se posiciona à frente da ciência genuína apenas para ser ratificada ou corrigida mais adiante; em breve não precisaremos mais dela. Passados menos de 100 anos, é bom saber que não precisamos mais de Durkheim.