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28 maio, 2009

A mentalidade conservadora

Se tivéssemos de aceitar os critérios que o Russell Kirk, no The Conservative Mind, estabelece pra identificar o imaginário conservador, seríamos forçados a admitir que popular o conservador não pode ser; não hoje. É certo que já houve tempos mais propícios, mas o conservador não está tão em descompasso com a realidade atual quanto gostariam seus detratores. Alguns desses últimos acreditam piamente que:

(i) O conservador não tem senso de humor;
(ii) O conservador tem uma vida social subdesenvolvida;
(iii) O conservadorismo é mais reação que ação, mais inerte que criativo;
(iv) O conservador age por instinto e é intelectualmente despreparado.

Nem seria necessário chafurdar a biografia de conservadores notórios pra verificar que o primeiro item é falso. À medida que os adágios conservadores perdem popularidade, ganha importância a maneira com que são repetidos, e o humor parece ser o artificio mais eficiente nesse processo de reinvenção. Nelson Rodrigues conseguia lamentar o hábito feminino de usar biquinis em plena luz do dia sem parecer um velho recalcado; Chesterton exaltava a coerência de um conto de fadas sem parecer infantil. Isso pode não ser engraçado, mas é bom humor.

Quanto à vida social: essa sim é uma noção engraçada, e eu não saberia explicá-la de outra forma que não a tendência natural que pessoas que pensam de maneira semelhante têm de se unir. A maioria dos meus amigos tende à direita e nem por isso bebe ou se diverte menos que o estritamente recomendável. Se você é esquerdista e acha que só esquerdistas têm capacidade de pular feito um condenado na balada, fique sabendo que o mau gosto não é privilégio de uma banda do espectro político. Os de bom gosto tampouco são reclusos: sentam num bar e ponderam quantos anjos cabem num copo de cerveja.

A primeira metade do terceiro item até faz sentido: o conservador desconfia de mudanças abruptas, o que não significa dizer que não reconheça a necessidade de mudanças. Uma desvantagem prática disso é que grandes talentos e mentes impetuosas tendem a encontrar alguma resistência no corpo conservador. A vantagem é que as mudanças, quando indispensáveis, são bem menos destrutivas quando supervisionadas por um conservador criativo. Isso nada tem a ver com inércia, como queria F. J. C. Hearnshaw -- It is commonly sufficient for practical purposes if conservatives, without saying anything, just sit and think, or even if they merely sit --, mas com conciliação de tempos incompatíveis.

O instinto, ou prejudice, realmente não costuma ser ignorado pelo bom conservador, mas daí a acreditá-lo intelectualmente pobre vai um grande salto. Um salto que, aliás, ignora as grandes inteligências que se tornaram, voluntariamente ou não, expoentes do conservadorismo: Edmund Burke, John Adams, S. T. Coleridge, J. H. Newman, Irving Babbitt, George Santayana, T. S. Eliot e o próprio Kirk. Há aqueles que enfatizam valores transcendentais (Burke, Kirk, Newman), outros que se concentram na esfera política (Adams), outros que valorizam a imaginação conservadora mais que tudo (Coleridge, Eliot) e outros que se ocupam principalmente da filosofia por trás da práxis política (Coleridge, Babbitt, Santayana). Já que parecem (e são) tão diferentes, o que os uniria a um núcluo comum? Kirk enumera alguns pontos:

(i) Belief in a transcendent order. Essa é uma condição com a qual Roger Scruton discordaria, e à qual Santayana e tantos outros expressamente não se adequam. Acontece muito de ela ser aceita numa versão adaptada, que consiste em admitir que a razão humana é insuficiente para abarcar toda a existência e que, se os mistérios não são explicáveis através de um plano divino, simplesmente não são explicáveis. Há aqui, porém, a convicção de que todo problema político é no fundo filosófico, e que todo problema filosófico é antes problema religioso.

(ii) Affection for the proliferating variety and mystery of human existence, as opposed to the narrowing uniformity, egalitarianism, and utilitarian aims of most radical systems. Aqui temos o que parece ser unanimidade entre conservadores: diferenças de mérito entre seres humanos existem e podem ser tão grandes quanto se queira imaginar. Num momento em que a tendência é uniformizar tudo (homens e mulheres, velhos e jovens, bons e maus), repetir esse truísmo conservador exige, e esse é o apelo de Kirk, a engenhosidade de uma criatividade conservadora, capaz de reabilitar obviedades rejeitadas.

(iii) Conviction that civilized society requires orders and classes, as against the notion of a "classless" society. Consequência direta de (ii): o nascimento, ou o mérito, ou o casamento, ou mais raramente a sorte, ou todos juntos, determinam que lugar na sociedade devemos ocupar. A supressão de qualquer tipo de ordem levaria -- numa objeção que é mais de ordem prática que de princípio -- ao predomínio de oligarquias, num regime em que todos são servos da igualdade.

(iv) Persuasion that freedom and property are closed link. Observação simples da realidade.

(v) Faith in prescription and distrust of "sophisters, calculators and economists". Relendo os quatro itens anteriores, percebo que não poucos dos chamados liberais ou libertários assentiriam completamente, sendo o primeiro item com muita probabilidade o mais disputado. Essa quinta condição representa outro ponto de divergência: o conservador desconfia dos sofistas mesmo quando (ou principalmente quando) ele diz ser o estandarte da ciência e da racionalidade. Os números dos melhores economistas podem ser enganosos; as abstrações de filantropos podem levar a ruínas bem concretas.

(vi) Recognition that change may not be salutary reform: hasty innovation may be a devouring conflagration, rather than a torch of progress. Society must alter, for prudent change is the means of social preservation; but a statesman must take Providence into his calculations, and a statesman's chief virtue, according to Plato and Burke, is prudence.

Se você simpatiza com os seis princípios enumerados acima e não usa tênis all-star, sinta-se bem-vindo ao clube.

06 fevereiro, 2009

Post sobre o jornalismo brasileiro

O conservador brasileiro, não sem certa razão, sempre se refere com um nojinho incontido às peripécias que enchem os jornais. Muito mais edificante falar sobre poesia, religião ou Monica Bellucci. Há aí um problema de prioridades: como disse o Pereira Coutinho numa entrevista recente, discutir detalhes teológicos no país do mensalão é como querer dançar valsa na tempestade, ou algo assim. Ouçamos o filósofo Paulo Betti: às vezes é preciso sujar as mãos.

A situação da Veja é particularmente irritante. Se existe uma revista que deve inspirar preocupação, essa revista é a Veja, que é a mais lida. E quem mais escreve nela, pelo menos nas últimas edições, é o Andre Petry: tem uma coluna e é responsável pelas matérias sobre as eleições nos EUA. Vejam as bobagens que o sujeito é capaz de escrever: O que mais provocou a simpatia mundial por Obama, conforme se lê nas pesquisas feitas em dezenas de países, é um conjunto de características para as quais Obama jamais chamou atenção porque espanta o voto do americano médio. A saber: sua negritude, sua urbanidade, seu traquejo político, sua formação acadêmica de elite.

Petry garante que formação acadêmica de elite espanta o voto do americano médio. Agora me ajudem com a contagem de presidentes americanos que frequentaram Harvard: John Adams e seu filho, John Quincy Adams; Theodore Roosevelt; Franklin Roosevelt; John Kennedy. Esses 5 são bem conhecidos; uma googlada rápida fornece o nome de mais dois, Rutherford Hayes e o próprio George W. Bush (master's degree). Em Princeton formaram-se dois, James Madison e Woodrow Wilson. Em Stanford, o engenheiro Hoover. Em Yale, Bush pai, Bush filho e Taft. Um em Goergetown, um em Duke, quatro na William & Mary College, um em Columbia, um em Dickinson, um em Williams. Traquejo político também é impopular, segundo Petry. Não faço idéia de onde ele tirou isso. Então o povo americano prefere os mais burocráticos, os mais enrolados?

Petry repete religiosamente os lugares-comuns mais batidos -- e mais desacreditados por quem se deu ao trabalho de estudar -- sobre a história dos EUA, como afirmar que o New Deal salvou a economia americana pós-29, que a administração de Harding (1921-23) foi a mais corrupta, que Nixon abusou dos poderes de presidente mais que seus antecessores, que quem se opunha ao movimento aboliciosta era necessariamente racista e por aí vai. Ao fazer um balanço do governo de W Bush, lembra displicentemente que Bush chegou dizendo que faria um governo "para unir, não para dividir", e agora entrega um país com duas guerras (Iraque e Afeganistão), um déficit monumental (já na casa do trilhão de dólares) e uma economia em frangalhos (a pior crise desde a II Guerra Mundial), como se a crise econômica fosse de responsabilidade dele e como se a decisão de entrar numa guerra não passasse de mero capricho pessoal (se perguntado, Petry provavelmente responderia que sim, que não passa de mero capricho pessoal).

Num quadro com as colunas 'O mundo pensa que... / Mas os Estados Unidos pensam que...', Petry mostra que não deveria se arriscar a falar por uma nação que ele desconhece, ou conhece apenas através do NY Times: ... o eleito merece todo o entusiasmo de que é objeto, como é natural em qualquer eleitorado do mundo. Torcem para que Obama resolva os problemas (no kidding?), mas não há nenhum sinal (nem procissão, nem comoções públicas, nem pedidos de benção) de que o julguem portador de superpoderes... É de surpreender, então, que eleitores conservadores americanos tenham inventado os epítetos the Anointed One, the Chosen One etc. para Obama -- certamente Petry não considera (mas sabe-se lá, né) desprezível a parcela conservadora do eleitorado americano.

É natural ver simplificações numa revista cujos artigos raramente ultrapassam as duas páginas; pode-se sempre falar em didatismo ou algo que o valha. Difícil de entender é que noções tão bobas -- bobas até entre setores da esquerda americana, principalmente agora que já explodiram os primeiros escandândalos da era Obama -- ocupem tanto espaço no semanário mais lido do país. Quando é na Veja o Reinaldo Azevedo não reclama...

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O Papa Bento XVI é um “des-reformador” e como todos os conservadores, ele quer que tudo esteja igual, que não haja marolas, nem discordâncias, nem heresias. E aí comete gafes papais. O trecho é do Arnaldo Jabor. Segundo Jabor, melhor seria se o papa admitisse heresias; só assim pra evitar 'gafes papais'. Um conselheiro assim é exatamente o que o Vaticano precisava.

28 dezembro, 2008

Por um Natal sem direitos

Natal e os chamados direitos humanos aparecem com frequência na mesma frase: todos têm direito a um Natal feliz, sem fome, sem frio etc. Fiquei pensando: por quanto tempo a humanidade pôde passar o Natal sem ouvir falar em direitos humanos? A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, é de 1948. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dos facinorosos franceses, é de 1789. A Declaração de Independência dos EUA é de 1776 e a Carta de Direitos inglesa é de 1689. Acho que não seria exagero concluir, então, que por pelo menos 1500 anos (dC) a idéia de que o ser humano já nasce com direito a isso ou àquilo soaria estranha aos ouvidos mais benevolentes. E, nada obstante, foi nesse período que inventaram o hospital e a universidade pública.

Acho que poucas coisas comprometem mais a felicidade que o pretenso direito à felicidade. Se me aparecem com um papel garantindo o meu direito à felicidade irrestrita, qualquer existência aquém de um paraíso na Terra vai me parecer uma tremenda usurpação. Os americanos foram mais modestos (e mais felizes) ao garantir apenas o direito à procura da felicidade, que aliás pode ser tão medonha quanto se queira.

A mania de garantir direitos a torto e a direito cairia por terra se se dessem ao trabalho de analisar o problema pelo outro lado, o dos deveres. Se eu tenho direito à felicidade, alguem tem o dever de concretizá-la e, fora o meu anjo da guarda, nunca ouvi falar de semelhante cargo. Pior que a impraticabilidade da idéia são as doses cavalares de ressentimento que ela inspira, o ressentimento que Nietzsche quis imputar justamente àqueles que se opunham a ela, os que inventaram a caridade não por dever (no sentido legal), mas por princípio.

Desejo um bom Natal a todos: não que vocês tenham direito a um bom Natal, mas porque desejo que assim seja.

18 dezembro, 2008

Ainda o Cristaldo ou A compartimentalização da inteligência

O Janer Cristaldo chega a níveis de idiotia que eu mesmo julgava improváveis. Ele se refere ao Reinaldo Azevedo como 'recórter tucanopapista hidrófobo' desde a polêmica da tradução do texto papal sobre a condição do divorciado dentro da Igreja Católica. A birra dessa vez (procure os textos no blog, aqui) é com um texto que Azevedo escreveu, para a última Veja, 'tecendo loas ao stalinista' Graciliano Ramos.

Confundir vida e obra de um autor é suficientemente constrangedor até pra quem não se diz jornalista. Cristaldo não é burro a esse ponto, e quem já leu dois ou três de seus textos (os que não tratam de religião!) sabe disso. Mas, alas, quando ele deixa de tratar de política e passa a tratar de religião, é como se Pelé deixasse de jogar pra comentar futebol, ou como se Stephen Hawking deixasse a física de lado pra bater uma bola (não que Cristaldo seja tão bom cronista político assim; o que vale é o contraste). Até aí nada de muito estranho; poderíamos supor bloqueio mental ou algo do tipo. O problema é que, quando se trata de religião, o bloqueio mental é generalizado.

Mas e daí?, esses últimos posts são sobre Graciliano Ramos, não sobre religião. Ocorre que o Cristaldo não consegue mais deixar o Azevedo em paz depois que o Azevedo defendeu o papa. Reitero: não fosse o fatídico episódio papal, Cristaldo continuaria mantendo o silêncio de sempre em relação ao colunista de Veja.

A compartimentalização da inteligência (alguém já deve ter inventado um termo melhor pra isso) é a capacidade que alguns têm de alocar zero de inteligência pra algumas áreas do conhecimento. Especialização não é bem sinônimo porque o especialista não precisar ignorar o complementar de sua especialização. Também não se trata de inépcia congênita: ninguém ficaria irritado com um sujeito que nasceu com péssimo senso de orientação, péssima visão espacial ou dificuldade pra decorar regras de ortografia; lida-se com essas dificuldades desapaixonadamente, como quem fecha um buraco num muro ou uma cárie num dente.

Por outro lado, que fazer de alguém que discorre razoavelmente sobre história e/ou política e/ou economia e/ou filosofia e desata a repetir asneiras quando o assunto é religião? Não são áreas tão desconexas assim; o bloqueio mental é antes psicológico que congênito. Pode ser também um preconceito elevado a teoria, um grão de ignorância que se aloja desgraçadamente no cérebro do indivíduo e que é pouco a pouco recoberto por camadas de desinformação, obtusidade e arrogância até se tornar um tumor purulento e malcheiroso. A imagem é nojenta: a realidade retratada também.

20 outubro, 2008

Paranoia Darwiniensis

Há alguns assuntos que são verdadeiros destruidores de reputações: penso principalmente em aquecimento global e darwinismo. A essa altura, dos textos escritos sobre esses assuntos, 90% são bobagens e 9,9% obviedades. Só de vislumbrar os termos num artigo já tenho vontade de bocejar (se você descobriu uma espécie de formiga africana que confirma espetacularmente a teoria darwiniana, ótimo; se descobriu outra que a refuta com espetáculo comparável, ótimo também). Foi assim que me arrastei pelas páginas do excelente Darwinian Fairytales -- Selfish Genes, Errors of Heredity, and Other Fables of Evolution, do filósofo australiano David Stove. Em vários momentos o livro se aproxima perigosamente (e Stove é o primeiro a reconhecê-lo) dos 9,9% mencionados acima. A verdade é que, não fosse a condição patológica referida no título desse post, livros como o de Stove não precisariam ser escritos.

Mas isso é dizer pouco: não fossem os cacoetes mentais X e Y, os livros A, B, C etc. também não precisariam ter sido escritos. O fato, por mais melancólico que seja reconhecê-lo, é que os cacoetes existem e prosperam num ritmo nada menos que estupefaciente. Não vou nem comentar os mais famosos (e antigos), cuja origem remonta ao próprio Darwin (ou, antes dele, Malthus), como a idéia de que uma população cresce indefinidamente se não lhe são impostas restrições de alimentação, ou aquela outra, mais absurda ainda, segundo a qual qualquer traço que não contribui para a propagação da espécie será dizimado cedo ou tarde. Não se pode argumentar 'contra' isso, pode-se apenas observar que a realidade, a humana pelo menos, nem se aproxima do modelo proposto. Essas idéias são tão ridículas que se você resolver apresentá-las a algum darwinista (isto é, alguém que se julga darwinista), a resposta mais provável será 'ah, Darwin não acreditava nisso realmente', ou 'ah, ninguém realmente acredita nisso', o que nos obriga a colher citações do tipo Every single (!) organic being around us may be said to be striving to the utmost to increase in numbers ou [W]e may feel sure that any (!) variation in the least degree (!) injurious would be rigidly destroyed, ambas do A Origem das Espécies. Deixei o erro mais grotesco para o final: segundo Darwin, a seleção natural e a luta pela sobrevivência são de tal maneira furiosas que of the many individuals of any species (!) which are periodically born, but a small number can survive (também do Origem). Darwin teria mudado de idéia se tivesse visitado a maternidade do hospital mais próximo.

Nosso puppet-darwinista, perturbado com a evidência textual, passaria então para a próxima resposta-padrão, que consiste em dizer que Darwin acertou no geral e errou nos detalhes, e que os darwinistas atuais corrigiram oportunamente os deslizes do barbudo. Não só isso não é verdade como é o oposto da verdade: neodarwinistas, sociobiólogos etc. não se contentam com ratificar a ortodoxia darwiniana; insistem em extrapolá-la. As diferenças estão basicamente no nível de detalhamento: com as contribuições mendelianas à genética foi possível colocar os genes na jogada. Se antes era a sobrevivência e a reprodução da espécie, ou de um indivíduo da espécie, que guiavam a seleção natural, agora é a sobrevivência e a 'reprodução' dos genes que levam a responsabilidade. Nasce aí o gene egoísta de Richard Dawkins (que na realidade, segundo nos informa Stove, é idéia original de G. C. Williams).

Emprestei o livro para um colega no intervalo da aula e, lidas 25 páginas, o sujeito me volta com um 'o autor é ignorante demais', ignorante na acepção de brutal. Realmente Stove é implacável, e parece ter um prazer especial em espedaçar as teorias de Dawkins. Quem quer que leia um esboço da teoria do gene egoísta reconhece de imediato que se trata de um símile, que Dawkins não poderia acreditar que um gene possa ser dotado de atributos como inteligência, egoísmo etc. Nosso senso comum funciona perfeitamente aí; de fato, Dawkins afirma expressamente que se trata apenas de uma terminologia mais prática. Mas, a menos que Stove tenha forjado as citações que pinçou do The Selfish Gene, não há como acreditar nisso. Nós nos esforçamos para emprestar alguma sanidade ao Dawkins, mas o danado não colabora. Vejam só o que ele nos diz: [W]e are... robot-vehicles blindly programed to preserve the selfish molecules known as genes; [W]e are manipulated to ensure the survival of [our] genes; [T]he fundamental truth [is] that an organism is a tool of DNA; [L]iving organisms exist for the benefit of DNA. Edward Wilson, que de tanto observar insetos ficou tão maluco quanto Dawkins, afirma que [T]he individual organism is only the vehicle [of genes], part of an elaborate device to preserve and spread them... The organism is only DNA's way of making more DNA.

Pergunta simples: seria possível manipular seres humanos sem ser mais inteligentes que eles? Eu manipulo furadeiras, lápis, latinhas de Coca-Cola etc. e, apesar de minhas evidentes limitações, não hesitaria em dizer que sou mais inteligente que todas essas coisas. Parece claro que, se Wilson e Dawkins estão certos, os genes não só são egoístas (na acepção usual da palavra) como são mais inteligentes que seres humanos! E nós achando que macacos e golfinhos eram os que mais se aproximavam, hem?

Stove declara logo no prefácio que não é religioso (e que não é cristão por considerar o cristianismo incompreensível, o que é apenas parcialmente verdadeiro). Como bom polemista que era, deve ter cansado de debater o assunto com gente até bem mais inteligente que Dawkins; não admira, então, que saiba reconhecer uma natureza religiosa assim que a encontra. O nono capítulo, ou ensaio, de seu livro é chamado A New Religion, a religião de Richard Dawkins e dos sociobiólogos em geral (segundo consta, a teoria do gene egoísta é consenso entre eles). Não é monoteísta porque os genes são muitos, mas ao menos são invisíveis como o Deus cristão. O impulso de resposibilizar uma entidade de inteligência infinitamente superior pelo andamento das coisas terrenas, algo que imaginávamos só ocorrer em algumas religiões, é traço característico também desses novos darwinistas, sociobiólogos ou darwinistas aloprados. O capítulo seria com muita probabilidade o melhor do livro, não fosse o sugestão, ainda que velada, de que a absurdidade desses últimos atesta absurdidade nas religiões de fato. A única desvantagem de uma boa imagem é que ela pode nos levar longe demais.

O livro de Stove não é de filosofia, a despeito da tag Philosophy/Sciense em seu verso. Em vez de falar em precedência ontológica pra rejeitar a idéia de que o gene pode ser mais inteligente que o humano, Stove se limita a uma argumentação que não exige muito da imaginação do mais ávido materialista. Trata-se do já bem familiar exercício de confrontar teoria e realidade física. Menos divertido, mas mais que suficiente.

17 agosto, 2008

Disk Sto. Agostinho

Você está pensando em prestar um concorridíssimo exame de teologia na faculdade mais próxima (de que diabos estou falando?) ou simplesmente não quer passar vergonha perante aqueles que ainda se importam com o assunto? Disk Sto. Agostinho.

Escalopilda dos Santos, de Teresina, Piauí, quer saber se Deus também tem braços e pernas, um nariz e dois olhos etc., já que leu em sua Bíblia (aquela edição para 'estudos femininos' (?)) que o homem foi criado à imagem de Deus. Sto. Agostinho responde:
Não sabia que Deus é espírito e que não possui membros com medidas de comprimento e largura; nem é matéria, porque a matéria é menor em sua parte que no seu todo. Ainda que a matéria fosse infinita, seria menor em alguma de suas partes, limitada por certo espaço, do que na sua infinitude; nem se concentra inteira em qualquer parte, como o espírito, como Deus. Ignorava totalmente que princípio havia em nós, segundo o qual existimos, e por que se diz na Sagrada Escritura que fomos feitos à imagem de Deus.
Romerito José, de Orós, Ceará, ouviu dizer que o último papa se desculpou por não sei que atitude de um papa antigo e quer saber como isso pode, já que aprendeu da avó que a justiça divina é imutável e eterna. Sto. Agostinho responde:
Assim fazem aqueles que se irritam ao ouvir dizer que noutros tempos se permitia aos justos o que agora lhes é vedado, e que Deus deu ordens diversas segundo as circunstâncias de tempo, estando todos sujeitos à mesma justiça. Esses tais não vêem como, no mesmo dia, na mesma casa, o que convém a um membro não convém a outro, o que há pouco era permitido já não é agora; certos atos que eram lícitos e até prescritos aqui, agora são lá proibidos e punidos. Por acaso a justiça é desigual e mutável? Não, os tempos que ela preside não caminham da mesma forma, e justamente por isso se denominam tempos. Os homens -- cuja vida terrana é breve -- são incapazes de harmonizar as razões válidas em séculos passados e de outros povos, que escapam à sua experiência, com os dados que a própria experiência lhes fornece. Eu não conhecia, não percebia todas essas coisas.
Regina Casé, repórter da Globo e especialista em favelas, quer saber de onde vem o mal. Segundo Regina, os moradores da periferia são particularmente virtuosos e criativos, de maneira que os crimes da região representam para ela um grande enigma. Sto. Agostinho responde:
Vi claramente que as coisas corruptíveis são boas. Não se poderiam corromper se fossem sumamente boas, ou se não fossem boas. Se fossem absolutamente boas, não seriam corruptíveis. E se não fossem boas, nada haveria o que corromper. A corrupção de fato é um mal, porém não seria nociva se não diminuísse um bem real. Portanto, ou a corrupção não é um mal, o que é impossível, ou -- e isto é certo -- tudo aquilo que se corrompe sofre uma diminuição de bem. Mas privadas de todo bem, deixariam inteiramente de existir. Mas haverá maior absurdo do que afirmar que as coisas se tornariam melhores perdendo todo o bem? Portanto, se são privadas de todo o bem, deixarão totalmente de existir. Logo, enquanto existem, são boas. E aquele mal, cuja origem eu procurava, não é uma substância. Porque, se fosse, seria um bem.
Disk Sto. Agostinho.

30 julho, 2008

Estética Cristã

12. And it was told king David, saying, The Lord hath blessed the house of Obededom, and all that [pertaineth] unto him, because of the ark of God. So David went and brought up the ark of God from the house of Obededom into the city of David with gladness.

13. And it was [so], that when they that bare the ark of the Lord had gone six paces, he sacrificed oxen and fatlings.

14. And David danced before the Lord with all [his] might; and David [was] girded with a linen ephod.

15. So David and all the house of Israel brought up the ark of the Lord with shouting, and with the sound of the trumpet.

16. And as the ark of the Lord came into the city of David, Michal, Saul's daughter, looked through a window, and saw king David leaping and dancing before the Lord; and she despised him in her heart.

17. And they brought in the ark of the Lord, and set it in his place, in the midst of the tabernacle that David had pitched for it: and David offered burnt offerings and peace offerings before the Lord.

18. And as soon as David had made an end of offering burnt offerings and peace offerings, he blessed the people in the name of the Lord of hosts.

19. And he dealt among all the people, [even] among the whole multitude of Israel, as well to the women as men, to every one a cake of bread, and a good piece [of flesh], and a flagon [of wine]. So all the people departed every one to his house.

20. Then David returned to bless his household. And Michal the daughter of Saul came out to meet David, and said, How glorious was the king of Israel to day, who uncovered himself to day in the eyes of the handmaids of his servants, as one of the vain fellows shamelessly uncovereth himself!

21. And David said unto Michal, [It was] before the Lord, which chose me before thy father, and before all his house, to appoint me ruler over the people of the Lord over Israel: therefore will I play before the Lord.

22. And I will yet be more vile than thus, and will be base in mine own sight: and of the maidservants which thou hast spoken of, of them shall I be had in honour.

23. Therefore Michal the daughter of Saul had no child unto the day of her death.
Já aconteceu mais de uma vez de eu receber como resposta, logo após ter criticado o entusiasmo desenfreado de alguns cultos protestantes, os versículos acima, do segundo livro de Samuel (sexto capítulo). Ou isso ou o quarto provérbio do 14, Provérbios: Where no oxen are, the crib is clean: but much increase is by the strength of the ox.

A idéia, como parece ficar claro, é que se quisermos espalhar a palavra de Deus pode ser necessário suportar certa dose de aviltamento; abrir mão de um ou outro tipo de dignidade terrena; despir-se das vestes reais e ter com o povão. A opinião pública, dirão com razão, não é o nosso Deus. Ou isso ou a esterilidade (pelo menos na King James Bible, a causalidade fica explicitada com o 'therefore' do verso 23).

O provérbio fala da nossa muito comum mania de 'limpeza', da força que se desperdiça em nome dela. O culto mais febril seria uma maneira de libertar-se das convenções, da opinião pública etc. e deixar patente que há uma mensagem que todos podem e devem conhecer.

A interpretação do primeiro trecho me parece perfeita, tanto que nada tenho a acrescentar. O problema com a leitura do provérbio é que, assim como normalmente acontece com leituras de comparações envolvendo animais, ela não considera que não somos animais. O boi vai sempre fazer sujeira, mas nós não necessariamente. Aceita-se de bom grado a sujeira do boi porque ele não poderia fazer diferente.

Está claro que, dependendo da situação, a sujeira pode ser necessária, estejamos nós falando de bois ou humanos. Nesses casos não há o que objetar. Mas seria o culto um desses casos? Essa conversa de que o culto amalucado seria uma maneira de libertar-se da opinião pública soa como qualquer discurso de afirmação: um tanto ridículo. Se a intenção é dar à opinião pública a sua devida importância (pouca ou nenhuma), por que diabos pautar o culto (que, de resto, é dirigido a Deus, não a nós) em nome dela? É mais ou menos como sujeito que não quer acordar às 10 horas e ajusta um aviso sonoro, altíssimo, às 10 horas: 'lembrar de não acordar às 10 horas'.

Não sou a priori avesso ao entusiasmo, apesar de achar que a circunspecção tem tudo a ver com esses momentos (pelo jeito não só eu, a julgar pelas composições sacras desde sempre até 100 anos atrás) -- lembrando que Davi não estava num culto dominical, mas comemorando por um bom, e excepcional, motivo. Sou avesso, sim, a velhos e marmanjos saltitando ao som de um rock'n'roll evangélico improvisado. É no mínimo curioso ter de avisar isso logo aos cristãos, herdeiros da maior tradição estética de que se tem notícia. É a nossa crise de esquecimento em uma de suas manifestações mais melancólicas.

31 maio, 2008

Como e Por Que Discutir

Diferentemente do que pensava Schopenahuer, a maior motivação pra participar de um debate não é a perspectiva de vencê-lo, é a perspectiva de ver seu oponente derrotado. Pode parecer a mesma coisa, mas às vezes a necessidade de desacreditar a opinião do outro é bem mais premente que fazer prevalecer a sua própria. Se não me engano foi Oscar Wilde (discordo dele quase sempre, mas era um sujeito inteligente) quem disse que é a insipidez do argumento alheio que mantém a discussão viva.

É claro que Wilde queria dizer (ou ao menos é o que ele queria que entendêssemos) que uma opinião insípida, ainda que verdadeira, deve ser combatida. Isso, obviamente, é bobagem de quem quer soar bacaninha. É preciso ter disciplina de espírito até pra concordar com o ministro Eros Grau, ou com o ministro Ricardo Lewandowski. Ambos vêem o óbvio na questão da pesquisa com células-tronco: a arrogância da ciência. É pena que apontem uma origem tão esdrúxula pra essa arrogância (ela seria um véu para acobertar os interesses do, brr, Mercado). A burrice analítica, porém, não compromete a primeira impressão, essa sim completamente verdadeira.

A frase do Wilde é aproveitável quando é usada no sentido do Teorema da Autoridade Invertida, de que já falei aqui. A tacanhice da argumentação alheia é apenas indício de falsidade. Ufa, Fulano discorda de mim. Quem nunca teve esse tipo de alívio?

É por essas e outras que sempre senti falta de uma interpretação (brr) psicológica para o debate. Pode parecer ingenuidade, mas ainda acredito na esperança de aprendizado (aliás, se, como queria Schopenhauer, todo debate tem como objetivo a 'vitória', por que o dele seria uma exceção?). Minha experiência pessoal parece confirmar essa esperança: nunca mudei de idéia sobre questões fundamentais lendo livros; os livros só sedimentaram de vez a mudança. O ser humano está sempre seguindo indícios mais ou menos claros, e por algum motivo eles aparecem com mais frequência numa conversa com o vizinho do que num tratado de teologia. A única exceção que consigo pensar agora é o Orthodoxy, do Chesterton, mas bem que esse livro parece a cópia de um grande debate, não?

É graças a essa ingenuidade latente (de que me orgulho) que não posso fugir à pergunta: por que Fulano acredita nisso? Ignorância, má-fé ou eu que estou errado? Quando Sam Harris rejeita o argumento da contingência de Leibniz com um mero 'isso é fugir do problema', podemos pensar em ignorância e má-fé simultaneamente. Ignorância porque muita gente realmente acha que recorrer à única solução possível de um problema é fugir do problema. Isso corresponde a dizer que, sendo os catetos de um triângulo retângulo 3 e 4, concluir que a hipotenusa vale 5 representa uma fuga. E má-fé porque Harris lembra triunfante que o argumento não prova a existência do Deus cristão, quando é notório que essa nunca foi a intenção do argumento. Se bem que, pensando bem, talvez ele não saiba disso. Viram que complicado!

O problema dos comunistas não é menos intrigante. Na época de Hayek era mais plausível acreditar que os defensores do socialismo desistiriam da idéia assim que enxergassem suas consequências. O próprio Hayek sugere isso inúmeras vezes no Road to Serfdom. Mas e hoje? Como diferençar os meramente tapados dos genuinamente picaretas? Os casos extremos são de análise fácil, mas a banda intermediária, bem difusa, está longe de poder ser desprezada. Vai que há almas bem intencionadas lá por dentro. Eles precisam da nossa paciência.

30 maio, 2008

Cientistas Cristãos (2)

6. Nicolaus Copernicus (1473-1543)

Copérnico, sendo católico, foi o primeiro astrônomo a formular a teoria do heliocentrismo (De revolutionibus orbium coelestium, 1543). Assim como Galileu depois dele, Copérnico foi recebido com entusiasmo em Roma por suas teorias. A principal hipótese dele, porém, estava errada: o sol não é o centro do universo, é o centro do sistema solar apenas.

7. Galileu Galilei (1564-1642)

Ver aqui.

8. Blaise Pascal (1623-1662)

Pascal ainda é, creio eu, considerado o pai da teoria de jogos ou teoria das probabilidades. Na física, a contribuição principal foi na hidrostática, com o chamado princípio de Pascal: uma pressão aplicada a um fluido incompressível é transmitida integralmente para o restante do fluido (princípio da prensa hidráulica). Em meios não-científicos, ele é principalmente lembrado pela aposta de Pascal (Pascal's wager), que consiste em afirmar que, Deus existindo ou não, é sempre preferível acreditar que Ele existe. O ceticismo moderno mal consegue esconder sua revolta contra esse tipo de raciocínio.

9. Isaac Newton (1643-1727)

Está claro que Newton dispensa apresentações. O que nem todo mundo sabe é que ele se dedicava a experimentos de alquimia a à religião tanto quanto à mecânica. Também estudou óptica por muito tempo, e é natural que tivesse uma explicação mecanicista para o fenômeno da luz (a qual, para ele, era formada por pequenas partículas que eram desaceleradas ou aceleradas ao serem refratadas para um meio mais ou menos denso). A resistência que a teoria ondulatória da luz teve de enfrentar deve-se, em parte, ao grande prestígio de Newton.

10. Max Planck (1858-1947)

É considerado o fundador da teoria quântica (e um dos últimos a acreditar nela). Estudando a radiação emitida por um corpo negro, Planck chegou à conclusão de que a energia devia ser quantizada, mas preferiu assumir que sua análise estava errada a admitir essa hipótese. Só mudou de idéia mais tarde. Na expressão matemática utilizada para calcular a energia de um fóton (E = hf), aparece h, a constante de Planck. A mesma constante (só que reduzida) também aparece no cálculo de incertezas no princípio da incerteza de Heisenberg.

10 maio, 2008

Cientistas Cristãos (1)

As figuras que vão abaixo são todas muito conhecidas, mas o fato de serem cristãos aparece com alguma surpresa. O exemplo mais característico é o de Leibniz, que só é lembrado entre o populacho por ter inventado o cálculo e por uma caricatura grotesca de autoria do Voltaire. Depois de cada blurb vou colocar uma citação do sujeito que relacione a ciência a algum princípio cristão.

1. Gottfried Leibniz (1646-1716)

Não sei até que ponto isso é surpreendente, mas foi Leibniz quem inventou o sistema binário de números. Isso faz com que ele possa ser chamado, para usar o termo predileto dos historiadores da ciência, de pai da engenharia de computação. As contribuições à engenharia mecânica são várias: projetou bombas e prensas hidráulicas, submarinos, relógios, máquinas a vapor etc. Esse pessoal mais antigo ficava entediado e ia construir pirâmides. É assombroso. Quanto ao cálculo: a notação que usamos hoje para diferencial, integral etc. foi invenção de Leibniz. Não se trata apenas de uma notação, mas de um método (em oposição ao método geométrico de Newton). O resultado é que praticamente não há grandes contribuições ao cálculo vindo de anglo-saxônicos (excetuando Taylor e Maclaurin) durantes os séculos 17 e 18.

In whatever manner God created the world, it would always have been regular and in a certain general order. God, however, has chosen the most perfect, that is to say, the one which is at the same time the simplest in hypothesis and the richest in phenomena.

2. James Prescott Joule (1818-1889)

A idéia de ver calor como uma forma de energia parece óbvia hoje, como usualmente ocorre com as grandes descobertas. A coisa é de tal importância que o Joule passou a ser uma unidade derivada do sistema internacional de unidades (SI), a unidade de energia.

After the knowledge of, and obedience to, the will of God, the next aim must be to know something of His attributes of wisdom, power, and goodness as evidenced by His handiwork.

3. Johannes Kepler (1571-1630)

O trabalho de Kepler foi muito mais de observação (e de paciência) do que propriamente analítico. As chamadas três leis de Kepler (não podem ser chamadas de leis, mas isso é outro assunto) -- formato das órbitas, tempo/área de varredura e relação entre período e eixo de órbita -- só vieram a ser demonstradas matematicamente com o advento da dinâmica de Newton. Parece que ninguém mais que o Kepler levou a sério essa disposição de observar, e com isso aprender algo da, obra divina.

Great is God our Lord, great is His power and there is no end to His wisdom. Praise Him you heavens; glorify Him, sun and moon and you planets. For out of Him and through Him, and in Him are all things... We know, oh, so little. To Him be the praise, the honor and the glory from eternity to eternity.

4. Michael Faraday (1791-1867)

Diferentemente do Kepler, cujo mérito maior foi de observação empírica, Faraday teve insights teóricos que soam ainda mais impressionantes se levamos em conta que a matemática da época era bem limitada e que mesmo dessa matemática ele conhecia pouco. A lei da indução magnética de Faraday (que é uma das quatro equações de Maxwell) é, segundo consta, uma das leis de mais difícil 'visualização' na Física, ainda que se disponha de um ferramental matemático adequado. Menos conhecidas são suas contribuições como químico: descobriu o benzeno (o velho benzeno) e mexia com polímeros.

Speculations? I have none. I am resting on certainties. 'I know whom I have believed and am persuaded that He is able to keep that which I have committed unto Him against that day.'

5. James Clerk Maxwell (1831-1879)

Maxwell conseguiu sintetizar o eletromagnetismo inteiro em quatro equações simples (lei de Gauss, lei de Gauss para o magnetismo, lei da indução de Faraday e lei circuital de Ampère). Tudo sai daí. Lembra aquela expressãozinha para refração de um raio de luz entre meios com índice de refringência diferentes? Era empírica até ser demonstrada por uma equação de Maxwell (Snell, então, era uma espécie de Kepler da óptica geométrica). A primeira fotografia colorida (apresentada por ele mesmo na Royal Institution) foi possível graças a contribuições suas à análise de cores. On top of that, mexia com termodinâmica estatística (que é a que deve ser utilizado se quisermos resultados realmente precisos) e é considerado o pai da teoria de controle.

Almighty God, Who has created man in Thine own image, and made him a living soul that he might seek after Thee, and have dominion over Thy creatures, teach us to study the works of Thy hands, that we may subdue the earth to our use, and strengthen the reason for Thy service; so to receive Thy blessed Word, that we may believe on Him Who Thou has sent, to give us the knowledge of salvation and the remission of our sins. All of which we ask in the name of the same Jesus Christ, our Lord.

05 maio, 2008

Somos Livres?

Eu digo que sim, e pensei que fosse coisa óbvia. Estive conversando com uns amigos sobre livre-arbítrio e vi que não é bem assim (refiro-me à obviedade). Parece que uma vez mais o desenvolvimento desproporcional de uma área do conhecimento (conhecimento científico) tem gerado confusões. A comparação mais comum que ouço nesse contexto é a de um sistema de simulação computacional cujas variáveis são todas criadas e manipuladas pelo usuário. O usuário tem conhecimento de e poder sobre todas as variávies; é o Deus do sistema.

O absurdo dessa comparação é evidente: ela leva diretamente à conclusão de que o ser humano é tão livre quanto uma pedra. Mas é sabido que uma pedra, quando solta, cai sempre; eu, como humano, posso levantar, deitar, correr etc. Quando perguntamos ao autor da comparação se somos como a pedra, ele responde que não, que somos mais complicados: há uma miríade de impulsos nervosos que percorrem várias sinapses em poucos milissegundos e coisa e tal. Do ponto de vista filosófico, porém, essa complexidade fisiológica não acrescenta nada; seríamos apenas uma pedra que transmite milhares de sinais antes de cair. Basta pensar no mecanismo de apagar a vela do bolo na antiga abertura do Castelo Rá-Tim-Bum. Funcionalmente há mais complexidade naquilo do que num simples sopro? A mentalidade cientificista, mantendo uma coerência quase cega, só admite conceder qualquer complexidade aos entes se essa complexidade for também científica.

Um sintoma engraçado dessa maneira de pensar são os estudos que dizem ter desvendado essa ou aquela habilidade cognitiva por terem detectado atividade intensa na região setentrional esquerda do córtex cerebral. Usualmente, bastaria falar em causa e efeito pra acabar com a confusão, mas a mentalidade cientificista exige analogias mecânicas: é como se um grupo de pessoas se reunisse numa sala e acendesse as luzes do recinto. Da percepção bem óbvia de que há movimento lá dentro partimos pra conclusão de que sabemos do que eles conversam; mais ainda, conhecemos o princípio que lhes concede a própria fala.

Outra maneira de ver o problema: digamos que a vontade de comer rapadura excite o lóbulo direito do cérebro. Os indivíduos A e B estão com fome e, o que é pior, vieram do sertão cearense. Como justificar o fato de que A resolveu comer a guloseima e B não? Porque B é religioso e seu Messias proibiu a ingestão de rapadura, sob pena de prejudicar o desempenho sexual dos hereges. A disciplina e a piedade religiosas, diz-se, são dirigidas por determinada atividade neurológica. O indivíduo C, seguidor da mesma religião e também cearense, resolveu comer a rapadura ainda assim porque teve uma visão em que o anjo Sebastião, vestido com a camisa do vovô, afirmava ser a abstinência de rapadura uma grande bobagem e que deveria haver, por isso, um cisma na Igreja, restringindo o território sagrado dos comedores de rapadura à margem oriental do rio Banabuiú, território bastante propício ao plantio da cana-de-açúcar.

Segundo os cientificistas, as peripécias desenvolvidas no parágrafo anterior são fruto de mecanismos causais simples (determinadas impressões causadas por impulsos elétricos geraram a visão do anjo). Essa hipótese fica provada porque, caso danificássemos o lóbulo direito do ser humano, nada do que vai acima teria acontecido. Isso equivale a dizer que tudo que é necessário pra que algo aconteça é também suficiente pra que algo aconteça. Isso equivale a dizer que uma fuselagem sem asas e sem motor pode, estando parada, alçar vôo. Eu também acho que pode, mas uso o termo certo: milagre.

12 abril, 2008

Potência Desperdiçada

Primeiro reparo. É bobagem afirmar que a vida começa com a concepção. Tanto o óvulo como o espermatozóide já eram vivos antes de se unirem. O que dá para dizer é que a fusão dos gametas marca a criação da identidade genética única do que poderá tornar-se um ser humano, se as condições ambientais ajudarem. Temos, portanto, um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja. E não faz muito sentido embaralhar potencialidades com atualidades; afinal, no longo prazo somos todos cadáveres.
O trecho acima, caso ainda não tenham reconhecido tão peculiar desenvoltura, é do Hélio Schwartsman, colunista da Folha (havendo estômago para tanto, leia a íntegra do artigo aqui). Façamos então um primeiro reparo ao reparo de Schwartsman: ninguém afirma que a vida começa com a concepção; afirma-se que a vida humana começa com a concepção humana. Particulamente não conheço muitos pesquisadores pro-life (obviamente, não conheço nem se conhece ninguém em lugar nenhum) que neguem que espermatozóide e ameba tenham vida também.

O mais curioso é que Schwartsman reconhece a diferença essencial entre gametas isolados e óvulo fecundado: este último pode vir a se tornar um ser humano tal como os encontramos nas ruas. Mas que importância tem essa potência se seremos todos cadáveres um dia? Seguindo a mesmíssima lógica, que importância tem qualquer coisa se seremos todos cadáveres um dia? Imagino que o problema aqui seja, como quase sempre ocorre, de falta de imaginação: se o óvulo fecundado tivesse a aparência de um bonequinho microscópico o problema desapareceria. Toda a questão acaba se resumindo à percepção sensorial, o último e único refúgio dos materialistas: o porco sente dor, não se pode matá-lo; o feto, até certo ponto, não sente, então pode-se matá-lo.

Chesterton era conhecido como príncipe dos paradoxos não por escrever paradoxalmente, mas por perceber paradoxos na argumentação dos outros. Um paradoxo que não lhe poderia escapar é esse: os que defendem o aborto e a pesquisa irrestrita com células-tronco são, em geral, os mesmos que acreditam numa origem 'evolutiva' da vida (aquela que surge com a combinação de alguns elementos químicos e uma sorte danada). A argumentação avança da seguinte maneira: existe uma probabilidade minúscula de que a vida tenha surgido assim, então devemos abracá-la como hipótese mais plausível e reconhecer que tudo o que temos hoje, matemática, cinema e carros elétricos é graças a ela. Já a probabilidade bem maior de que o embrião venha a se tornar um ser humano deve ser desprezada porque, ora vejam, existe uma probabilidade também grande de que ele venha a ser descartado ou perdido. Está-se a desperdiçar diariamente mecanismos bem mais viáveis que a, segundo eles mesmos, origem da vida! Samuel Johnson, numa frase que hoje já deve ser citada até em gibi da turma da Mônica, dizia que o patriotismo é o último refúgio dos patifes. Hoje o último refúgio dos patifes é a probabilidade.

Pra testar esse meu novíssimo aforismo, basta perguntar a alguém que acredita na origem espontânea da vida se ele acredita na improvável possibilidade de a força gravitacional falhar amanhã. Não vai acreditar, e não vai acreditar porque a probabilidade é minúscula. Se me pedem pra provar que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus, faço um desenho e demonstro; se me pedem pra provar que a gravidade deve funcionar amanhã, o melhor que posso fazer é rezar (Newton rezaria).

Vejam como a probabilidade é sempre usada de maneira conveniente: a pesquisa com células-tronco embrionárias deve ser propugnada e até financiada pelo estado porque existe uma probabilidade minúscula de os cientistas conseguirem controlar seu desenvolvimento. Maureen L. Condic, professora de neurobiologia e anatomia na Universidade de Utah (leia o artigo dela na First Things aqui) chega a concluir que as dificuldades (científicas) são tamanhas que o mais sensato seria continuar a pesquisa com células-tronco adultas. A vantagem das células-tronco adultas é que, além de não levantarem questões éticas espinhosas, têm dado resultados mais palpáveis.

A resposta que comumente se dá a tanta sensatez é que ainda não há bons resultados com células-tronco embrionárias precisamente porque não se pesquisou o suficiente. É assim que se troca, mui graciosamente, a certeza de um problema ético pela possibilidade de um avanço científico. O sujeito que pensa assim tem tanta fé em ciência quanto o fundamentalista religioso tem fé em sua religião. Paradoxalmente, o fanático cientificista deplora o fanatismo religioso. Paradoxalmente, os príncipes do paradoxo somos nós.

18 março, 2008

Resposta Cristã (2): O Caso Galileu

Quando pedimos exemplos da 'histórica' oposição entre Igreja e ciência, é comum ouvirmos dois nomes: Giordano Bruno (1548-1600) e Galileu Galilei (1564-1642). Ainda que tivéssemos aí dois exemplos legítimos, já seria difícil explicar como uma oposição que se verifica apenas duas vezes pode ser histórica. Com o primeiro não será necessário perder muito tempo: Bruno foi condenado por questões teológicas (uma delas é que Bruno negava a divindade de Jesus Cristo), e não por defender o sistema heliocêntrico. Ainda que se conclua que sua condenação foi injusta, ela nada teve que ver com ciência. Já Galileu foi condenado a prisão domiciliar por um período e morreu com quase 78 anos, de causa naturais. Em que consistiu a 'perseguição' cristã nesse caso?

Tanto Dinesh D'Souza, no What's So Great About Christianity, quanto o Thomas E. Woods, no How the Cacholic Church Built Western Civilization, discutem detalhadamente a questão. Ao contrário do que todos imaginam, o trabalho de Galileu foi recebido com entusiasmo e admiração por autoridades da Igreja. De fato, astrônomos jesuítas confirmaram, via telescópio, as descobertas de Galileu. Após visitar Roma, onde foi recebido pelo papa Paulo V em pessoa, escreveu a um amigo: "I have been received and shown favor by many illustrious cardinals, prelates, and princes of this city." Quando em 1612 Galileu defendeu pela primeira vez, por escrito, o sistema de Copérnico, recebeu cartas de congratulação do cardeal Maffeo Barberini, futuro papa Urbano VIII.

Ocorre que as evidências então disponíveis, apesar de apontarem para o sistema de Copérnico como melhor hipótese (melhor nesse caso significa mais simples, mais elegante), não permitiam uma conclusão definitiva. A Igreja não se opôs à exposição das novas idéias contanto que fossem apresentadas como o que realmente eram: hipóteses plausíveis, não fato consumado. Galileu não só acreditava que o sistema heliocêntrico tal como apresentado por ele era literalmente verdadeiro como fez questão de expô-lo nesses termos. Nesse processo acabou cometendo erros hoje considerados risíveis, como explicar o fenômeno das marés pelo movimento da Terra (quando em realidade é a Lua a responsável). Galileu tampouco conseguia responder à objeção geocêntrica segundo a qual, caso a Terra se movesse ao redor do sol, a paralaxe ficaria evidente em nossas observações das estrelas.

Todo o caso parece ficar reduzido a uma afobação intelectual por parte de Galileu. É como se Einstein declarasse que a velocidade da luz é sempre a mesma e constante e ponto final, e negasse que na realidade trata-se de uma hipótese necessária pra Teoria da Relatividade. Aliás, a Teoria da Relatividade conforma-se aos fatos assim como o sistema de Copérnico o faz, com a diferença de que nem sequer há uma teoria rival que se lhe aproxime em testabilidade empírica (o heliocentrismo, por outro lado, tinha o geocentrismo como oponente, que, apesar de menos prático, explicava através de combinações de epiciclos cada vez mais complicadas os movimentos dos astros). Ainda assim, qualquer professorzinho de ensino médio sabe que não se pode conferir caráter factual à hipótese da velocidade da luz.

E quanto à alegação de que o heliocentrismo contradiz trechos bíblicos? Cardeal e um dos trinta e três doutores da Igreja, Roberto Bellarmino (1542-1621) declarou na época:
If there were a real proof that the sun is in the center of the universe, that the earth is in the third heaven, and that the sun does not go around the earth but the earth round the sun, then we should have to proceed with great circumspection in explaining passages of Scripture which appear to teach the contrary, and rather admit that we did not understand them than declare an opinion to be false which is proved to be true. But as for myself, I shall not believe that there are such proofs until they are shown to me.
Eis que, curiosamente, o exemplo de conduta cientificamente idônea vem de um cardeal e não de Galileu. Tomás de Aquino já advertira alguns séculos antes que caso fique provado que uma interpretação bíblica contradiz a natureza, o erro está, obviamente, na interpretação. A verdade da Escritura é inviolável, mas não se pode dizer o mesmo das interpretações que dela aferimos.

Em 1624, mesmo após desobedecer a recomendação da Igreja de tratar o heliocentrismo apenas como hipótese, Galileu foi novamente recebido em Roma, dessa vez pelo próprio Urbano VIII, de quem recebeu duas medalhas por mérito científico. "Urban VIII told the astronomer that the Church had never declared Copernicanism to be heretical, and that the Church would never do so." Galileu insistiu no mesmo erro em 1632, quando publicou um diálogo ridicularizando o geocentrismo (que era apoiado, até sua morte em 1601, pelo ainda célebre astrônomo Tycho Brahe). Só então a Igreja o proibiu de escrever sobre heliocentrismo.

A versão corrente segundo a qual Galileu teria sido torturado após enfrentar, sem sucesso, a intransigência ignara de autoridades eclesiásticas não passa de uma piada de mau gosto, como se vê. Os inimigos da Igreja parecem estar sempre incomodados com tanto 'revisionismo'. Alas, o revisionismo só se faz necessário quando antes dele houve muito distorcionismo.

17 março, 2008

Resposta Cristã (1)

O lado positivo, se é que pode ser considerado assim, da onda de livros ateístas publicados recentemente é a resposta cristã a ela associada. Felizmente nem todo cristão é um liberal christian; há aqueles que ainda se dignam a defender a ortodoxia. Dinesh D'Souza (1961-), um indiano naturalizado americano, destaca-se entre eles por falar bem (Daniel Dennett foi pisoteado no debate na Tufts College, onde ensina; cheguei a ficar com pena do velhinho. Vejam no Youtube.) e por responder aos 'novos ateus' valendo-se apenas da lógica e de evidências científicas. Christopher Hitchens, apesar de ser mais articulado que o Dennett, também apanhou feio (ver aqui). Richard Dawkins, talvez na que tenha sido a decisão mais prudente de sua vida, não aceitou debater com Paul Johnson; é razoável que também não aceite possíveis convites do D'Souza.

O que impressiona em D'Souza é sua capacidade de vencer os dois 'lados' dos debates: o lado propriamente intelectual, em que se analisa a lógica dos argumentos, a precisão dos dados etc., e o lado 'popular', em que se analisa somente a impressão deixada sobre o público. A verdade é que ele já parte em desvantagem dupla: não só o público é a priori hostil ao argumento religioso como, provavelmente uma variante do mesmo problema, está despreparado para recebê-lo, mesmo quando não há hostilidade de fato. É preciso lançar mão de analogias, paralelos engraçadinhos e coisas do tipo pra compensar a falta de imaginação metafísica dos ouvintes. Por exemplo, quando D'Souza repete o argumento da contingência para a existência de Deus (algo que leitores de Aristóteles, Tomás de Aquino e Leibniz recebem com naturalidade) e surge a clássica pergunta 'mas quem criou Deus?', é preciso ilustrar a situação com algo mais 'palpável': a criação literária. Dostoievski, argumenta D'Souza, está num plano existencial distinto do de seus personagens; as regras que valem pra esses últimos não valem pra ele e por aí vai.

Está claro que desse processo acabam surgindo generalizações um tanto apressadas ou simplificações indevidas, mas nada que se distancie da caricaturização inevitável em qualquer debate. O mesmo não se pode dizer de Dennett, que diz ser a religião culpada pelas atrocidades stalinistas porque, ora vejam, Stalin considerava-se a si mesmo um 'deus' (concluo daí que se ele se considerasse um grande industrial a culpa passaria a ser do capitalismo). Apesar de nem todos os novos ateus se expressarem com estupidez tão desabrida, é essa em essência a resposta que dão às observações sobre o comunismo. O What's So Great About Christianity, último livro do D'Souza, serve como espécie de compilação das respostas que tem dado a Hitchens, Dawkins, Dennett, Harris & cia. Gostaria de recordar aqui uma em particular.

Ela diz respeito ao argumento ontológico a favor da existência de Deus, sugerido pela primeira vez por Anselmo de Cantuária (1033-1109), escolástico italiano. Partindo da definição de que Deus é 'aquilo que não pode concebivelmente ser superado' e admitindo que a existência de fato é superior à existência apenas no mundo das idéias, Santo Anselmo declarou que a existência de Deus segue de sua própria definição. Ora, se Deus não existisse, 'aquilo que não pode concebivelmente ser superado' seria apenas uma idéia, e assim seria possível conceber algo superior: a idéia concretizada. A definição fica contradita; por absurdo, fica provado que Deus deve forçosamente existir. A questão aqui não consiste em aceitar ou não o argumento de Santo Anselmo (ele já recebeu boas críticas), mas sim observar a que nível de delinquência interpretativa chegou Christopher Hitchens ao tentar refutá-lo. 'Se perguntássemos a uma criança num livro de contos de fadas por que ela acredita em dragões', declara Hitchens, 'ela responderia que pode imaginar dragões, de onde segue que eles devem existir'. Mas Anselmo não provou que qualquer coisa imaginável existe, bolas! Ele provou que 'aquilo que não pode concebivelmente ser superado', e não qualquer outra coisa, existe necessariamente.

No exemplo acima fica clara a hipocrisia dos que, partindo de uma proposta racionalista, pretendem contestar a razoabilidade da religião. Se Hitchens, Dawkins e Dennett dizem utilizar apenas a razão, e ainda não a desenvolveram a ponto de conseguir diferençar Stalin de Deus ou de entender uma premissa lógica simples, o que lhes resta? Se não a tivessem rechaçado tão pomposamente, restaria a graça divina.

Nos próximos posts falo sobre o caso Galileu, o antagonismo entre ciência e religião e outros absurdos correlatos.

07 fevereiro, 2008

Diálogos Razoáveis (2)

-- Você acredita em Deus?!

-- E você acredita que a nona sinfonia de Beethoven, a constante reduzida de Planck, o último teorema de Fermat, Os Lusíadas, a Golden Gate Bridge e alguém como você sejam consequência de um arranjo casual de partículas subatômicas?

25 dezembro, 2007

Mensagem de Natal

O Jesus Cristo histórico, que completa hoje 2007 anos, deve, idealmente, ceder um pouco de espaço ao Jesus Cristo que nasce, mais uma vez, hoje mesmo (natal, do latim natális, que significa nascer, ser posto no mundo). O fato de o tempo 'divino' poder, sem perda de coerência, retroceder séculos e séculos a cada ano deveria incitar o homem a, também ele, voltar no tempo e tentar entender o que significava então (e o que significa hoje) a novidade cristã. Bem entendido, a tarefa de hoje é bem mais fácil: não precisamos mais superar o choque da novidade. Muito pelo contrário, o que era radicalmente novo é hoje lugar-comum, a ponto de ser muito indevidamente confundido com o que há de mais trivial em nossas vidas.

Pelo menos essa dificuldade, então, é nova: os incrédulos se convertem (ou melhor, já nascem convertidos) sem reconhecer a própria conversão. Um povo de memória curta deve necessariamente ser ingrato. Se é mesmo verdade que, como dizia Nietzsche, esse perfeito anticristão, o homem superior é aquele de mais longa memória, devemos resgatar a noção socrática de anamnese: lembrar para conhecer. Lembrar, claro está, o que houve nessa e em outras vidas. Feliz Natal.

07 novembro, 2007

A Profundidade de Ingmar Bergman

Ingmar Bergman (1918-2007) morreu há alguns meses e ninguém parece tentado a negar sua mestria enquanto filmmaker. Realmente seria difícil encontrar um cineasta capaz de criar com tanta frequência cenas memoráveis como a que é mostrada acima, d'O Sétimo Selo (1957), em que Antonius Block desafia a Morte para um jogo de xadrez, ou a sequência inicial de Morangos Silvestres (1957), em que o ancião Dr. Borg se vê sendo puxado pelo próprio cadáver, ou a rápida passagem de tanques de guerra peja janela do trem em O Silêncio (1963), ou os últimos momentos de Gritos e Sussuros (1972), quando toda a pesada melancolia que permeia o filme se dissipa com a serenidade do rosto de Agnes.

Mas e a tão alardeada 'profundidade' de Bergman, seria ela real? Que querem dizer com profundidade, afinal? Certamente se referem à temática tão recorrente em Bergman: a religião, o sentido da vida, a perspectiva privilegiada da velhice, o desencanto com a vida terrena, a incomunicabilidade das angústias modernas etc. Citam-se duas ou três figuras de renome (os preferidos são Kierkegaard e Kafka) e já temos aí todos os ingredientes para uma obra 'profunda'. A criação de atmosferas sombrias e coerentes com a temática abordada é, quem poderia negá-lo?, nada menos que genial: em O Silêncio os personagens, provavelmente fugindo da guerra, vão parar num país cuja língua é completamente desconhecida (trata-se de uma invenção do próprio Bergman). A sensação é de completa incomunicabilidade, a despeito de Ester ser, muito caracteristicamente, uma afamada tradutora de literatura. O silêncio familiar, atípico por si só, chega a um paroxismo com o afastamento do mundo exterior. Em Morangos Silvestres Dr. Isak é examinado por um inspetor que parece ter acabado de sair dum livro de Kafka: o primeiro teste consiste em ler ler uma inscrição em língua desconhecida no quadro-negro.

Se é mesmo verdade (como eu acredito que seja) que Bergman tem um talento aparentemente insuperável para a evocação imagética, resta saber o que ele tem a nos dizer sobre as questões levantadas com certa recorrência em seus filmes. Infelizmente, não muito. Isso já fica claro nesse que é considerado seu melhor filme, O Sétimo Selo. O cavaleiro medieval Antonius Block, confrontado com a Morte em pessoa, parece mais do que nunca interessado em conhecer a natureza divina, se é que ela existe. Pressiona a própria Morte, coitada, a contar seus segredos, se é que há segredos. Questiona inclusive uma menina que será queimada por alegar ter visto o diabo -- Deus existe (certamente o demônio saberá informar)? poderei vê-lo? para onde vamos? A impressão que dá é que Block seria uma pessoa completamente diferente caso lhe entregassem, mui candidamente, uma fotografia de Deus. É claro que Bergman já sabe, ou acredita saber, a resposta a todas essas perguntas. Em suas próprias palavras (The Magic Lantern - An Autobiography): ''You were born without purpose, you live without meaning... When you die, you are extinguished.''

Todo o dilema religioso da obra de Bergman (da pequena parte que eu conheço, é claro) é de uma ingenuidade tal que ele se nos afigura mais verdadeiro quando é expresso por uma criança -- o Alexander de Fanny e Alexander (1983), um garoto de 12 anos inconformado com o fato de Deus ainda não ter mandado matar seu padrasto assassino. "Se Deus existir, eu gostaria de dar-lhe um chute na bunda. Ninguém pensa!", diz o jovenzinho incrédulo. Quem nunca passou por semelhante dilema existencial durante a primeira adolescência? Esse poderia ser um dos casos mais fantásticos de ironia involuntária da história do cinema.

Mas e se Deus não é uma realidade confiável, se o máximo que conseguimos ao procurar esse tipo de segurança é frustração, o que resta? Uma infância traumatizada por uma religiosidade opressiva, é claro. Janer Cristaldo que o diga. Mais uma vez citando de sua autobiografia (retiro os trechos da hagiografia publicada por Woody Allen no NY Times por ocasião da morte de Bergman; clique aqui para ler): ''Most of our upbringing was based on such concepts as sin, confession, punishment, forgiveness and grace... This fact may well have contributed to our astonishing acceptance of Nazism.'' Quem souber conciliar confissão, perdão e graça ao nazismo que me avise, fazendo favor. Restaria algo mais? Há tambem o carpe diem, último refúgio dos ateus. Ele está presente em todos os filmes de Bergman que vi até agora: na anamnese da infância de Dr. Borg, na serena resignação de Agnes, na satisfação com que Antonius Block se delicia com morangos silvestres e leite fresco junto aos amigos e no discurso prafrentex do tio beberrão e mulherengo de Fanny e Alexander.

O vazio existencial de Bergman é provavelmente o mais atraente que já vi no cinema. Isso não significa que deva ser rejeitado com menos veemência.

09 agosto, 2007

Copleston vs. Russell

Sempre que me perguntam por que acho que Bertrand Russell (1872-1970), fora do campo da lógica, não foi muito mais que um grande palpiteiro, mando o link de um debate dele com o padre jesuíta Frederick Copleston (1907-1994), transmitido em 1948 pela rádio BBC de Londres. Leiam aqui. Apesar de o Russell levar uma surra do começo ao fim do debate, aqueles poucos conhecidos meus que tiveram paciência de lê-lo inteiro chegaram à conclusão de que o Russell se saiu bem, ou que houve uma espécie de 'empate'. Suponho que a educação quase irritante do bom padre explique, pelo menos em parte, esse fenômeno, como quando ele diz haver um 'impasse' sempre que Russell resolve fugir vexaminosamente da discussão. Complementa a explicação o fato de o agnosticismo intelectual do Russell ser regra quase geral hoje em dia.

O debate começa com a exposição do argumento da contingência de Leibniz como prova metafísica da existência de Deus (é sempre necessário agregar 'metafísica' ou 'filosófica' ao termo 'prova', sob pena de nos exigerem uma fotografia do dito-cujo):
First of all, I should say, we know that there are at least some beings in the world which do not contain in themselves the reason for their existence. For example, I depend on my parents, and now on the air, and on food, and so on. Now, secondly, the world is simply the real or imagined totality or aggregate of individual objects, none of which contain in themselves alone the reason for their existence. There isn't any world distinct from the objects which form it, any more than the human race is something apart from the members. Therefore, I should say, since objects or events exist, and since no object of experience contains within itself reason of its existence, this reason, the totality of objects, must have a reason external to itself. That reason must be an existent being. Well, this being is either itself the reason for its own existence, or it is not. If it is, well and good. If it is not, then we must proceed farther. But if we proceed to infinity in that sense, then there's no explanation of existence at all. So, I should say, in order to explain existence, we must come to a being which contains within itself the reason for its own existence, that is to say, which cannot not exist.
Russell começa dizendo que uma 'proposição necessária', como por exemplo a proposição 'um ser que é somente potência existe necessariamente', tem por força que ser analítica, declaração clara de que tudo que não existe na filosofia dele não existe em lugar algum. Quando Copleston se dá ao trabalho de reduzir o argumento de Leibniz a uma proposição que pode ser considerada analítica -- 'se há um ser contingente há um ser necessário' --, Russell resolve negar a própria inteligibilidade do termo 'contingente'. Copleston adverte repetidas vezes que esse tipo de posicionamento corresponde a reduzir a filosofia inteira a apenas um ramo dela, a lógica, e que essa redução é, ironia das ironias, logicamente insustentável. Num dos últimos parágrafos, Russell confessa não ver sentido no termo 'contingente' assim como Copleston o emprega porque, ora vejam, os seres não podem ser nada além de contingentes -- because there isn't anything else they could be --, uma negação a priori justamente daquilo que se procura mostrar. É como se alguém tentasse demonstrar o teorema de Pitágoras tomando como hipótese que o teorema de Pitágoras não é válido: Russell pretende levar um debate adiante ao mesmo tempo em que nega a legitimidade da única terminologia cabível a ele.

Tão esquisito quanto isso possa parecer, ainda não se compara às atrocidades que ele vem a dizer sobre o argumento moral. É prática comum do agnóstico achar deplorável a idéia de que não pode haver valores transcendentes e universais sem uma entidade igualmente transcendente que lhes confira sustentação: Richard Dawkins considera-a disgusting. É impressionante como o Copleston, com perguntas simples e diretas somente (no que mais parece um arremedo dos mais eficientes do método socrático), consegue levar o Russell a conclusões que ele mesmo deveria considerar inaceitáveis. Acompanhem:
C: You distinguish blue and yellow by seeing them, so you distinguish good and bad by what faculty?

R: By my feelings.

C: By your feelings. Well, that's what I was asking. You think that good and evil have reference simply to feeling?
E, quando Russell responde que podemos errar em nosso julgamento do que é certo e errado, Copleston pode candidamente concluir:
C: Yes, one can make mistakes, but can you make a mistake if it's simply a question of reference to a feeling or emotion? Surely Hitler would be the only possible judge of what appealed to his emotions.
É claro que nossos 'sentimentos' não podem ser os árbitros de toda valoração moral porque, de acordo com os 'sentimentos' do Hitler, tudo que ele fez foi muito bom (e quem melhor que Hitler para interpretar os sentimentos de Hitler?). A idéia de que o homem é medida de todas as coisas é de origem sofista (Protágoras), com a diferença que eles foram mais honestos que Russell e a levaram à sua última consequência: a de que não pode haver erro de julgamento quando o 'sentimento' é o único árbitro. Se saio do banho e o vento me parece frio, ele é frio e ponto. Protágoras sustentava abertamente a posição de que cada um tem sua verdade, e não à toa foi combatido, juntamente com os outros sofistas, por Sócrates e Platão.

Mas Russell, preferindo não levar sua idéia original adiante, lança mão de um artifício mais tosco ainda: igualar moralidade com a opinião da maioria. O mais curioso é que ele estava longe de poder ser caracterizado como um multiculturalista na acepção moderna: deixa claro no próprio debate que abomina práticas como o canibalismo e é notório que relegava comunidades inteiras para a lata de lixo da moralidade. Dirão que Russell escreveu muito e mudou de idéia com frequência ao longo dos anos, mas é possível encontrar esse tipo de contradição na própria transcrição do debate. Apesar de se dizer tão sensível a transgressões morais, não tem respaldo teórico nem para condenar personalidades à Hitler.

O 'impasse' não termina porque Russell insiste, a despeito de seus pressupostos, em condenar Hitler e the like. É forçado a apelar a uma noção quase inacreditável de obrigatoriedade moral: 'aquilo que nossos pais e babás ensinam'. É sério, leiam lá. Hitler e Assurbanipal são condenáveis, apesar de terem sido fiéis aos seus 'sentimentos', porque existe uma massa amorfa de opiniões sem origem e sem explicação, uma espécie de guia comportamental empírico que rege toda a nossa percepção de certo e errado. O que Russell faz aqui, assim como na discussão sobre Deus, é negar a possibilidade de qualquer inspeção mais cuidadosa sobre tudo aquilo que realmente importa. Trata-se de um agnosticismo que corresponde, no sentido mais estrito possível, a uma abdicação intelectual, a um solene escárnio em relação a tudo que ultrapasse o limitado domínio da filosofia analítica. Fora desse pequeno domínio há apenas o império do achismo e as lições de nossas babás.

14 julho, 2007

Senhores e Escravos

Genealogia da Moral, conhecido por tratar na forma de três dissertações de alguns dos temas preferidos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), começa abordando a já famosa oposição entre a moral dos senhores e a dos escravos:
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um "fora", um "outro", um "não-eu" -- e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores -- este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si -- é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto -- sua ação é no fundo reação.
A descrição é bem justa, e Ortega y Gasset parece ecoá-la mais tarde quando observa que todo movimento 'anti-' não passa de um retrocesso, uma tentativa de meramente voltar, sem qualquer tipo de assimilação, à época em que o que queremos destruir ainda não existia. Para quem a vontade de poder, esse princípio tão misterioso quanto energético, representa a essência mesmo do ser humano, não poderia haver heresia mais grave que abdicar da ação em troca de uma simples reação. Não nos deve surpreender o fato de Nietzsche considerá-los, então, nada menos que doentes, a ponto de comprometer até mesmo o ar que respiram. A aparente obsessão de Nietzsche por toda sorte de doenças e distúrbios mentais é representativa disso.

A oposição fica mais clara com um exemplo fornecido pelo próprio Nietzsche: aves de rapina que se alimentam de ovelhinhas. Pode-se até entender o protesto das ovelhas (apesar de que, se seus protestos fossem ouvidos, quem estaria em apuros seriam as aves, o que significa dizer que as ovelhas querem nada mais que uma transferência de desgraças), mas o curioso é observar como a moral dos derrotados surge a partir dessa posição desconfortável. Na mentalidade das ovelhas, os decanos da moral são elas mesmas, que não precisam se alimentar de outras ovelhas para sobreviver. O "não-eu", tudo que não é oprimido e devorado, aves de rapina e qualquer outra coisa que se distancie da posição de 'ovelha', é automaticamente associado ao moralmente desprezível e abjeto. A moral das ovelhas não se define a partir do que elas são, mas do que elas não são: aves de rapina.

Através dos séculos, a responsabilidade de manter o que se entende por moral e de tentar responder às questões de maior escopo passou do 'doutor em filosofia' (o modelo do rei filósofo de Platão) para o gentleman e, mais recentemente, para o homem especializado. O que se percebe nessa sucessão é uma gradativa diminuição na crença em valores fixos, eternos. O doutor em filosofia discutia a vida enquanto vontade divina, quando Deus ainda ocupava, indiscutivelmente, o centro de qualquer consideração moral; o gentleman já vive numa sociedade secularizada, mas ainda tem condições de lançar mão de princípios com um mínimo de autoridade universal (liberdade, honra ou o que for); já o especilista não dispõe de nenhuma matriz do que poderia chamar 'verdade': ele segue objetivamente suas descobertas. Já não há mais verdade, há apenas fatos.

Pois bem, o que Nietzsche procura fazer é questionar o valor da 'verdade'. Exaspera-o a constatação de que tanto o monge protestante quanto o cientista e o ateu partem de um mesmo pressuposto: o de que é preciso a todo custo chegar à verdade, já que seu valor, enquanto tal, é indiscutível e essencial. O 'vencedor', o 'senhor' de Nietzsche é aquele que portanto não é acometido por problemas de consciência, o que Paulo César de Souza traduziu como consciência. Se não há uma verdade capaz de nos fazer ver que estamos terrivelmente errados (essa possibilidade não existe para quem segue sua genuína e original vontade de poder), realmente não faz muito sentido perder tempo com mortificações típicas de um culpado. O peso na consciência, para Nietzsche, não passa de uma autoflagelação insana, uma radical negação da própria vida, uma doença aparentemente incurável.

Daí que o modelo cristão, que para mim representa a atitude do 'senhor', pareça-lhe a mais genuína encarnação do 'escravo':
... e a impotência que não acerta contas é mudada em 'bondade'; a baixeza medrosa, em 'humildade'; a submissão àqueles que se odeia em 'obediência' (há alguém que dizem impor esta submissão - chamam-no Deus). O que há de inofensivo no fraco, a própria covardia na qual é pródigo, seu aguardar-na-porta, seu inevitável ter-de-esperar, recebe aqui o bom nome de 'paciência', chama-se também a virtude; o não-poder-vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão. Falam também do 'amor aos inimigos' -- e suam ao falar disso.
E, como consequência da ausência de 'verdade':
Falar de justo e injusto em si carece de qualquer sentido; em si, ofender, violentar, explorar, destruir não pode naturalmente ser algo "injusto", na medida em que essencialmente, isto é, em suas funções básicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, não podendo sequer ser concebida sem esse caráter.
Temos aí bastante food for thought, como diriam os gringos: quantos Nietzsches seriam necessários para acabar de vez com a influência paralisante e opressora da má consciência? Parece que o processo já está em andamento.