O leitor mais incauto inferirá do último post que não gostei do livro de Spengler. Nada poderia estar mais longe da realidade. Um ou outro professor de ciências humanas poderá inchar o peito para declarar, como que de cima dum pedestal, que as idéias estruturais de Spengler estão 'superadas'. É realmente prodigiosa a capacidade que certas pessoas têm de prever o passado; um passado de, digamos, 88 anos atrás. Mais precisamente: 1918, quando Max Weber declarava que Spengler era a very ingenious and learned dilletant. Depreende-se dessa frase duas coisas: Weber não ligava a mínima importância para a teoria dos ciclos de Spengler, e foi só a muito custo que foi convencido pelos seus estudantes a participar de um debate formal com ele, no inverno de 1919-1920, em Munique. E também que, a despeito desse desprezo, tinha uma admiração nada pequena pelo Declínio. A postura pomposamente dogmática de Spengler ao anunciar sua filosofia da História pode até se tornar algo divertido se lembramos que Spengler era, ora bolas, alemão. Assim como Henrik Ibsen (que não era alemão), talvez ele fizesse questão de anunciar com grande solenidade que "semana que vem tomarei o trem para Munique!".
Além do estilo propriamente dito, o que há nesse livro que justifique a alcunha de romance da decadência? Como dito anteriormente, o passeio pela História empreendido por Spengler pode até não provar suas teorias - de fato, pode provar até seu contrário ou não provar coisa alguma -, mas continua válido porque não foi distorcido, como seria de se esperar de uma mente ensimesmada com uma idéia fixa. Mesmo que suas conclusões venham a ser consideradas, por consenso, erradas, não há absolutamente nada que impeça que o estudo que o levou a essas conclusões retenha seu valor. Não como evidências de uma tese que já não é mais levada a sério, mas como as observações de alguém que, mesmo se equivocado, é bem mais perspicaz que a média dos filósofos pertencentes à ordem do dia.
O que mais chama a atenção na análise de Spengler são os modelos criados para descrever o estado de espírito do homem em diferentes períodos civilizacionais. A oposição mais explorada é entre o homem atual (Faustian soul), civilização 'ocidental', e o homem antigo (Apollinian soul), civilização greco-romana e além. Não à toa: é quando Spengler se sente mais à vontade precisamente porque sabe mais sobre elas. Sua análise da Rússia se resume a breves comentários sobre Dostoievski e Tolstoi. Quanto à já referida oposição, são analisados principalmente os seguintes aspectos: ciência (matemática e física), artes plásticas e música. Assim, enquanto a matemática dos antigos se limitava ao número inteiro (ou mesmo natural), ao finito e ao palpável, a análise (cálculo) dos modernos avançou para o infinito e para o espaço multidimensional. Enquanto a física de Arquimedes lidava com o estático e com o visível, a de Newton tratou da dinâmica, do conceito de força e da novíssima idéia de atuação à distância. Onde estarão os pontos em comum, ou, melhor dizendo, o caráter periódico de paradigmas tão distintos? Pelo menos no que se refere à decadência, Spengler observa que
Mais interessante ainda é a sugestão de que qualquer forma de pensamento tem seu fundo religioso. Se os antigos se atêm à geometria euclidiana e ao que é distintamente visível, não admira que seus deuses nos apareçam como estátuas; não como entes etéreos e ubíquos, mas como gravuras num livro ou como peças num museu. A idéia que formamos do Deus cristão é diametralmente oposta: não são poucas as querelas sobre a natureza ontológica da divindade 'faustiana'. Como consequência natural, as estátuas dos antigos, tão certas e tão inquebrantáveis, se dissolvem na pintura a óleo de Rembrandt, na polifonia de Bach, na análise complexa de Cauchy e na relatividade de Einstein. O paralelo é dos mais audaciosos, e não se pode querer transcrever nem sequer um esboço de sua 'demonstração' num texto tão curto. O máximo que podemos fazer, a essa altura, é sucumbir ao informalíssimo "faz muito sentido":
Finalizo com a transcrição de um dos trechos derradeiros, que pretende descrever o esgotamento da aventura cultural ocidental (em termos spenglerianos, o surgimento da civilização ocidental). Apesar de traduzido do alemão para o inglês, mantém uma força expressiva rara mesmo em livros da mais alta literatura. O Romance da Decadência termina mais ou menos assim:
Além do estilo propriamente dito, o que há nesse livro que justifique a alcunha de romance da decadência? Como dito anteriormente, o passeio pela História empreendido por Spengler pode até não provar suas teorias - de fato, pode provar até seu contrário ou não provar coisa alguma -, mas continua válido porque não foi distorcido, como seria de se esperar de uma mente ensimesmada com uma idéia fixa. Mesmo que suas conclusões venham a ser consideradas, por consenso, erradas, não há absolutamente nada que impeça que o estudo que o levou a essas conclusões retenha seu valor. Não como evidências de uma tese que já não é mais levada a sério, mas como as observações de alguém que, mesmo se equivocado, é bem mais perspicaz que a média dos filósofos pertencentes à ordem do dia.
O que mais chama a atenção na análise de Spengler são os modelos criados para descrever o estado de espírito do homem em diferentes períodos civilizacionais. A oposição mais explorada é entre o homem atual (Faustian soul), civilização 'ocidental', e o homem antigo (Apollinian soul), civilização greco-romana e além. Não à toa: é quando Spengler se sente mais à vontade precisamente porque sabe mais sobre elas. Sua análise da Rússia se resume a breves comentários sobre Dostoievski e Tolstoi. Quanto à já referida oposição, são analisados principalmente os seguintes aspectos: ciência (matemática e física), artes plásticas e música. Assim, enquanto a matemática dos antigos se limitava ao número inteiro (ou mesmo natural), ao finito e ao palpável, a análise (cálculo) dos modernos avançou para o infinito e para o espaço multidimensional. Enquanto a física de Arquimedes lidava com o estático e com o visível, a de Newton tratou da dinâmica, do conceito de força e da novíssima idéia de atuação à distância. Onde estarão os pontos em comum, ou, melhor dizendo, o caráter periódico de paradigmas tão distintos? Pelo menos no que se refere à decadência, Spengler observa que
The sympton of the decline in creative power is the fact that to produce something round and complete the artist now requires to be emancipated from form and proportion. Its most obvious, though not its most significant, manifestation is the taste for the gigantic. Here size is not, as in the Gothic and the Pyramid styles, the expression of inward greatness, but the dissimulation of its absense. This swaggering in specious dimensions is common to all nascent Civilizations - we find it in the Zeus altar of Pergamum, the Helios of Chares called the "Colossus of Rhodes", the architecture of the Roman Imperial Age, the New Empire work in Egypt, the American skyscraper of today.Com a ressalva de que civilização, para Spengler, significa o fim do desenvolvimento de uma cultura. Seria, digamos assim, uma cultura petrificada, incapaz de avanços que não passem de um arremedo do que foi produzido durante seu respectivo auge criativo. Assim sendo, e se lembramos que o século 19 foi o século em que cada ramo da cultura procurou extrapolar seus limites naturais (a música de Wagner não pretende ser só música; o marxismo de Marx é quase uma religião, e o darwinismo acaba sendo alçado à posição de uma nova 'teologia'), fica claro por que Spengler interpreta nossos tempos como tempos de declínio. Na cidade, a manifestação dessa grandiosidade esvaziada de significado se dá através dos arranha-céus e das estradas intermináveis, observação essa que seria repetida por Lewis Mumford anos mais tarde.
Mais interessante ainda é a sugestão de que qualquer forma de pensamento tem seu fundo religioso. Se os antigos se atêm à geometria euclidiana e ao que é distintamente visível, não admira que seus deuses nos apareçam como estátuas; não como entes etéreos e ubíquos, mas como gravuras num livro ou como peças num museu. A idéia que formamos do Deus cristão é diametralmente oposta: não são poucas as querelas sobre a natureza ontológica da divindade 'faustiana'. Como consequência natural, as estátuas dos antigos, tão certas e tão inquebrantáveis, se dissolvem na pintura a óleo de Rembrandt, na polifonia de Bach, na análise complexa de Cauchy e na relatividade de Einstein. O paralelo é dos mais audaciosos, e não se pode querer transcrever nem sequer um esboço de sua 'demonstração' num texto tão curto. O máximo que podemos fazer, a essa altura, é sucumbir ao informalíssimo "faz muito sentido":
The belief in knowledge that needs no postulates is merely a mark of the immense naiveté of rationalist periods. A theory of natural science is nothing but a historically older dogma in another shape. And the only profit from it is that which life obtains, in the shape of a successful technique, to which theory has provided the key.Dessa maneira, até algo que nos parece a princípio trivial e intuitivo, como o conceito newtoneano de força, surge como consequência de uma predisposição intelectual bem mais ampla e envolvente. Que houve com os antigos que não a definiram antes, de vez que é algo tão presente e palpável? "Sentimo-la na pele!", diriam os inconformados. Pois é: depois que ela foi devidamente inventada, passamos a senti-la...
Finalizo com a transcrição de um dos trechos derradeiros, que pretende descrever o esgotamento da aventura cultural ocidental (em termos spenglerianos, o surgimento da civilização ocidental). Apesar de traduzido do alemão para o inglês, mantém uma força expressiva rara mesmo em livros da mais alta literatura. O Romance da Decadência termina mais ou menos assim:
With the formed state having finished its course, high history lays itself down weary to sleep. Man becomes a plant again, adhering to the soil, dumb and enduring. The timeless village and the "eternal" peasant reappear, begetting children and burying seed in Mother Earth - a busy, easily contented swarm, over which the tempest of soldier-emperors passingly blows. In the midst of the land lie the old world-cities, empty receptacles of an extinguished soul, in which a historyless mankind slowly nests itself. Men live from hand to mouth, with petty thrifts and petty fortunes, and endure. Masses are trampled on in the conflicts of the conquerors who contend for the power and the spoil of this world, but the survivors fill up the gaps with a primitive fertility and suffer on. And while in high places there is eternal alternance of victory and defeat, those in the depths pray, pray with that mighty piety of the Second Religiousness that has overcome all doubts forever. There, in the souls, world-peace, the peace of God, the bliss of grey-haired monks and hermits, is become actual - and there alone. It has awakened that depth in the endurance of suffering which the historical man in the thousand years of his development has never known. Only with the end of grand History does holy, still Being reappear. It is a drama noble in its aimlessness, noble and aimless as the course of the stars, the rotation of the earth, and alternance of land and sea, of ice and virgin forest upon its face. We may marvel at it or we may lament it - but so it is.
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