13 outubro, 2006

A Memória de Ortega y Gasset

El verdadero tesoro del hombre es el tesoro de sus errores, la larga experiencia vital decantada gota a gota en milenios. Por eso Nietzsche define al hombre superior como el ser de "la más larga memoria".
A definição dada por Ortega y Gasset, em seu La Rebelión de las Masas, ao termo massa ou, mais especificamente, ao homem-massa, sempre foi tema de muita discussão. Como se já não bastasse a novidade do fenômeno propriamente dito (a rebelião das ditas massas), há sempre uma certa dificuldade em precisar se este ou aquele indivíduo é também um homem-massa. Pergunta que caberia ao leitor: "serei eu, também, um homem-massa?"

O trecho epigrafado, retirado do Prólogo para franceses, parece permitir uma decisão mais rápida. O homem-massa de Ortega é o oposto do homem superior de Nietzshe; não se trata, pois, de uma distinção calcada em classes sociais, mas sim numa violenta falta de memória. O homem-massa pode ser motorisa de ônibus, torneiro mecânico, cardiologista ou físico de plasmas. Ele pode contribuir para o avanço mesmo do que há de mais abstruso e inacessível na tecnologia de ponta. Em que consiste, então, o cientista desmemoriado?

Antes mesmo de saber precisamente o que essa 'amnésia' significa, cabe notar que a definição de homem-massa, tal como vista até aqui, já impede que se fale em decadência assim como queria Spengler. O homem-massa de Ortega chega à civilização em que está inserido como o bebê chega ao mundo: nos primeiros momentos, o menor detalhe já é motivo para alumbramento; quando não lhe satisfazem as exigências, põe-se a chorar freneticamente; quando decide agir, fá-lo atabalhoadamente e com violência, sem evitar perigos conhecedíssimos e outros tantos que poderiam ser inferidos. Daí a propensão natural do homem-massa à revolução, à rebelião. Quem desconhece o que lhe antecedeu não tem por que ser escrupuloso no ato de destruí-lo.

Fica claro daí que o que se propõe não é um declínio, processo esse que, por mais degenerativo e incaracterístico que seja, mantém-se sempre ligado, como num contínuo, a tudo quanto veio antes, incluído aí o auge mesmo da cultura ou civilização em questão. O homem-massa, por outro lado, promove uma ruptura radical e irremediável; ele está só no mundo como um primitivo, alheio a qualquer tipo de tradição.

Se a perspectiva de uma sociedade dominada pelas tais massas deve necessariamente incluir um total desapreço pelas culturas anteriores, no âmbito individual esse desprezo pelo passado se transforma num desprezo pelo vizinho. Note-se que o homem-massa, tendo relegado o que lhe antecedeu a um plano de menor importância, interpretará o prestígio que porventura lhe for concedido como uma autorização para extravasar sua autoridade específica (a esta altura bastante limitada) e invadir arrogantemente a dos outros. A resposta que o homem-massa encontra em si mesmo já é mais que suficiente; não se lhe afigura necessário consultar quem quer que seja: fazê-lo seria sinal de subserviência, de uma muito detestada servidão. É exatamente o contrário do que se encontra na noção que Ortega tem de nobreza:
No le sabe su vida si no la hace consistir en servicio a algo trascendente. Por eso no estima como una opresión la necesidad de servir. Cuando esta, por azar, le falta, siente desasosiego y inventa nuevas normas más difíciles, más exigentes, que le opriman. Esto es la vida como disciplina - la vida noble. La nobleza se define por la exigencia, por las obligaciones, no por los derechos.
Reparem que só citei definições negativas do homem-massa - o que ele não é. Por mais extensiva que seja a descrição que Ortega faz do homem-massa, essa parece ser a maneira mais fácil de identificá-lo num texto curto: opondo a sua memória à do Ortega, opondo ele mesmo ao homem superior de Nietzsche, opondo sua 'liberdade' à 'servidão' dos nobres.