31 maio, 2008

Como e Por Que Discutir

Diferentemente do que pensava Schopenahuer, a maior motivação pra participar de um debate não é a perspectiva de vencê-lo, é a perspectiva de ver seu oponente derrotado. Pode parecer a mesma coisa, mas às vezes a necessidade de desacreditar a opinião do outro é bem mais premente que fazer prevalecer a sua própria. Se não me engano foi Oscar Wilde (discordo dele quase sempre, mas era um sujeito inteligente) quem disse que é a insipidez do argumento alheio que mantém a discussão viva.

É claro que Wilde queria dizer (ou ao menos é o que ele queria que entendêssemos) que uma opinião insípida, ainda que verdadeira, deve ser combatida. Isso, obviamente, é bobagem de quem quer soar bacaninha. É preciso ter disciplina de espírito até pra concordar com o ministro Eros Grau, ou com o ministro Ricardo Lewandowski. Ambos vêem o óbvio na questão da pesquisa com células-tronco: a arrogância da ciência. É pena que apontem uma origem tão esdrúxula pra essa arrogância (ela seria um véu para acobertar os interesses do, brr, Mercado). A burrice analítica, porém, não compromete a primeira impressão, essa sim completamente verdadeira.

A frase do Wilde é aproveitável quando é usada no sentido do Teorema da Autoridade Invertida, de que já falei aqui. A tacanhice da argumentação alheia é apenas indício de falsidade. Ufa, Fulano discorda de mim. Quem nunca teve esse tipo de alívio?

É por essas e outras que sempre senti falta de uma interpretação (brr) psicológica para o debate. Pode parecer ingenuidade, mas ainda acredito na esperança de aprendizado (aliás, se, como queria Schopenhauer, todo debate tem como objetivo a 'vitória', por que o dele seria uma exceção?). Minha experiência pessoal parece confirmar essa esperança: nunca mudei de idéia sobre questões fundamentais lendo livros; os livros só sedimentaram de vez a mudança. O ser humano está sempre seguindo indícios mais ou menos claros, e por algum motivo eles aparecem com mais frequência numa conversa com o vizinho do que num tratado de teologia. A única exceção que consigo pensar agora é o Orthodoxy, do Chesterton, mas bem que esse livro parece a cópia de um grande debate, não?

É graças a essa ingenuidade latente (de que me orgulho) que não posso fugir à pergunta: por que Fulano acredita nisso? Ignorância, má-fé ou eu que estou errado? Quando Sam Harris rejeita o argumento da contingência de Leibniz com um mero 'isso é fugir do problema', podemos pensar em ignorância e má-fé simultaneamente. Ignorância porque muita gente realmente acha que recorrer à única solução possível de um problema é fugir do problema. Isso corresponde a dizer que, sendo os catetos de um triângulo retângulo 3 e 4, concluir que a hipotenusa vale 5 representa uma fuga. E má-fé porque Harris lembra triunfante que o argumento não prova a existência do Deus cristão, quando é notório que essa nunca foi a intenção do argumento. Se bem que, pensando bem, talvez ele não saiba disso. Viram que complicado!

O problema dos comunistas não é menos intrigante. Na época de Hayek era mais plausível acreditar que os defensores do socialismo desistiriam da idéia assim que enxergassem suas consequências. O próprio Hayek sugere isso inúmeras vezes no Road to Serfdom. Mas e hoje? Como diferençar os meramente tapados dos genuinamente picaretas? Os casos extremos são de análise fácil, mas a banda intermediária, bem difusa, está longe de poder ser desprezada. Vai que há almas bem intencionadas lá por dentro. Eles precisam da nossa paciência.

30 maio, 2008

Cientistas Cristãos (2)

6. Nicolaus Copernicus (1473-1543)

Copérnico, sendo católico, foi o primeiro astrônomo a formular a teoria do heliocentrismo (De revolutionibus orbium coelestium, 1543). Assim como Galileu depois dele, Copérnico foi recebido com entusiasmo em Roma por suas teorias. A principal hipótese dele, porém, estava errada: o sol não é o centro do universo, é o centro do sistema solar apenas.

7. Galileu Galilei (1564-1642)

Ver aqui.

8. Blaise Pascal (1623-1662)

Pascal ainda é, creio eu, considerado o pai da teoria de jogos ou teoria das probabilidades. Na física, a contribuição principal foi na hidrostática, com o chamado princípio de Pascal: uma pressão aplicada a um fluido incompressível é transmitida integralmente para o restante do fluido (princípio da prensa hidráulica). Em meios não-científicos, ele é principalmente lembrado pela aposta de Pascal (Pascal's wager), que consiste em afirmar que, Deus existindo ou não, é sempre preferível acreditar que Ele existe. O ceticismo moderno mal consegue esconder sua revolta contra esse tipo de raciocínio.

9. Isaac Newton (1643-1727)

Está claro que Newton dispensa apresentações. O que nem todo mundo sabe é que ele se dedicava a experimentos de alquimia a à religião tanto quanto à mecânica. Também estudou óptica por muito tempo, e é natural que tivesse uma explicação mecanicista para o fenômeno da luz (a qual, para ele, era formada por pequenas partículas que eram desaceleradas ou aceleradas ao serem refratadas para um meio mais ou menos denso). A resistência que a teoria ondulatória da luz teve de enfrentar deve-se, em parte, ao grande prestígio de Newton.

10. Max Planck (1858-1947)

É considerado o fundador da teoria quântica (e um dos últimos a acreditar nela). Estudando a radiação emitida por um corpo negro, Planck chegou à conclusão de que a energia devia ser quantizada, mas preferiu assumir que sua análise estava errada a admitir essa hipótese. Só mudou de idéia mais tarde. Na expressão matemática utilizada para calcular a energia de um fóton (E = hf), aparece h, a constante de Planck. A mesma constante (só que reduzida) também aparece no cálculo de incertezas no princípio da incerteza de Heisenberg.

28 maio, 2008

Memória de Cabeleireiro

Por que o cabeleireiro sempre pergunta como você usa seu cabelo se ele teve oportunidade de ver isso quando você chegou lá? Supõem eles que usamos penteados diferentes só pra ir visitá-los?

25 maio, 2008

Assalto na Dutra

Bom, preferia não ter de ser assaltado pra poder verificar, ainda que pra um espaço amostral extremamente exíguo, uma dessas teses que gostamos de esfregar na cara dos outros numa mesa de bar. A primeira tese é a de que o povo (na acepção mais amorfa e generalizante possível) é em essência direitista, o que equivale a dizer que é natural ser de direita assim como é natural perder os dentes de leite, ficar calvo ou interessar-se pelo sexo oposto. A segunda tese, meio óbvia e decorrente da primeira, é a de que o povo brasileiro não sabe se expressar politicamente. Se soubesse, teríamos pelo menos um partido de direita.

Fui assaltado hoje pela manhã voltando de São Paulo pra São José dos Campos, no mesmo ônibus que sempre tomo. O sujeito subiu num dos pontos do caminho (aliás, por que é mesmo que esses ônibus de linha param nos pontos?) e sacou uma arma que eu gostaria de poder descrever em detalhes, mas não conheço nada a respeito. Vovós suspirando, crianças chorando e todo mundo tentando esconder objetos de valor. Consegui esconder minhas coisas à exceção do telefone celular, que resolvi meter no saco estendido diante de mim pra não levantar suspeitas (meninas, não adianta ligar, não vou poder atender). As imprecações do assaltante são as mesmas que vemos nas novelas: 'Motorista, sem gracinhas ou eu passo chumbo'; 'Quem esconder dinheiro leva bala' etc.

Mas esse assaltante era diferente, ao menos dos poucos que tive a infeliz oportunidade de observar em ação. Estava nervoso demais, falava alto demais. Se tivesse tido um pouco mais de paciência poderia ter levado vários outros celulares, relógios, iPods e alianças sem risco adicional. Saiu apressado, meio envergonhado. Já na porta, pronto pra descer, virou e disse:

-- Não sou ladrão. Meu filho está com câncer e não posso pagar o tratamento. Vocês me perdoem. Me perdoem e fiquem com Deus.

Mentira? É até provável, apesar de que o sujeito poderia ter simplesmente ido embora calado. A reação dos passageiros, porém, pareceu unânime: era mentira e, mesmo que não fosse, não justificava o assalto. Ônibus de linha não deveria parar nos pontos da estrada. E o pessoal que mora longe da rodoviária? Pega o circular antes; gasta mais mas garante a segurança de todos. O que segura a sociedade, disse outro, é a família; um familiar de cabeça fria poderia ter aconselhado o pai desesperado e evitado o assalto. Não se deve julgar, mas que está errado, está. Essa interpretação do crime surgiu naturalmente, sem qualquer esforço analítico. Por que ela não sai de dentro do ônibus?

17 maio, 2008

A Carne é Forte

Existem várias coisas que eu gostaria de melhorar em minha vida e que, se fossem jogadas contra mim num juízo final hipotético, o máximo que eu poderia fazer seria baixar a cabeça e resignar-me às agruras penitenciais. Curiosamente, comer carne não é uma delas, e acho cada vez mais difícil encontrar um argumento de ordem ética que me faça mudar de idéia. Trata-se de uma daquelas felizes ocasiões em que interesse pessoal e consciência limpa andam de mãos dadas.

Nesse sentido, é reconfortante ler artigos de vegetarianos inteligentes como o de Taylor Clark da Slate: Vegetarian myths, debunked. O título do artigo, porém, não faz o menor sentido. Antes pelo contrário, Clark mostra que os 'mitos' não são mitos, que eles existem mesmo, mas que não se aplicam a ele em específico. Clark não perderia tempo dizendo que gosta de bacon ou que não revira os olhos ao avistar um prato de carne se isso não fosse de alguma maneira notável. Acho inclusive que a maioria dos vegetarianos pensa como ele. Mas, convenhamos: daqueles que não pensam assim, quantos são vegetarianos? Alguém já viu um não-vegetariano dizendo que um hambúrguer de carne é nojento?

A verdade é que nós fazemos parte de vários pequenos grupos e é impossível responder por todos os nossos colegas. Imaginem se eu tivesse de justificar toda besteira cometida por um cristão, cearense, estudante de engenharia ou ouvinte de rock! Infelizmente, muitas vezes ocorre (e muitas vezes não é fácil evitá-lo) de você cair num grupo em que a idiotia predomina ou pelo menos tem voz forte. A idiotia pode até não predominar entre vegetarianos, mas o 'discurso' oficial do vegetarianismo é idiota. E esse discurso, nem adianta espernear, não foi construído por carnívoros implicantes; ele vem de dentro.

A parte do artigo de Clark que mais reflete essa idiotia é aquela em que ele diz estranhar a desfaçatez dos que comem carne suína e ainda assim paparicam seus bichos de estimação. Haveria aí uma incompatibilidade inarredável, uma hipocrisia típica dos que não pararam 5 minutos pra pensar no que fazem. Essa idéia parte de um sentimento louvável: o de benevolência. Também acho que os animais devem ser tratados com benevolência. Aliás, é o mesmo que Platão dizia, com a diferença de que ele incluía escravos entre os animais. A divergência começa precisamente aqui: eu acredito que seja possível comer carne (ou até caçar) sem deixar de ser benevolente com os animais; Stanley Clark vê uma dose de crueldade em cada McLanche Feliz, ainda que seja uma crueldade diluída em displicência.

O argumento pela belevolência com animais não é bem de ordem ética: como poderíamos falar em ética em relação a seres que não fazem idéia do que isso seja, que, mais, não fazem idéia nenhuma? Nesse momento algum ativista lembra que tirar proveito dos animais é duplamente cruel exatamente por isso. Se estendemos essa lógica às plantas, mais indefesas ainda, ouvimos que as plantas não sentem dor. Se perguntamos se não haveria problema em matar um porco anestesiado, ouvimos que os animais são diferentes das plantas. Ora, isso é bem verdade! Então por que não reconhecer que animais (irracionais) e seres humanos são diferentes também?

Não acho que seja necessário falar em cristianismo (alma, inteligência divina etc.) pra que essa diferença fique bem clara. O fato é que o porco tem uma existência meramente instintiva: ele não pretende emagrecer pra conquistar uma porquinha no chiqueiro vizinho, ele não faz planos que não estejam direcionados à satisfação de uma necessidade imediata. A existência de um porco está inteiramente projetada sobre o agora, é como um ponto sobre a linha dos tempos. Um acidente ou uma morte repentina não vai nem pode frustrar nada porque não havia nada pra ser frustrado; o sofrimento de seus companheiros é também instintivo e nem sequer existiria se fosse de alguma maneira prejudicial à espécie.

A maneira com que os ativistas à Peter Singer falam guarda uma similitude meio sinistra com a tal heartlessness of ideas: estima-se o conceito de humanidade em vez de se estimar o homem concreto; estima-se a comunidade animal em vez de se estimar animais específicos. É claro que Clark está a anos-luz de distância de um Singer, mas é esse raciocínio que o faz estranhar eu gostar de animais e ainda assim não ver problemas em comer carne. O pressuposto é o de que, por ambos pertencerem à comunidade animal, ambos merecem a mesma atenção. Ora, a atenção que qualquer animal merece é, pelo menos, a mínima necessária para que não sofra inutilmente. O que vier além disso depende de uma relação pessoal que nada tem a ver com a comunidade animal tomada em bloco. Estamos falando de um animal, não do Animal.

10 maio, 2008

Cientistas Cristãos (1)

As figuras que vão abaixo são todas muito conhecidas, mas o fato de serem cristãos aparece com alguma surpresa. O exemplo mais característico é o de Leibniz, que só é lembrado entre o populacho por ter inventado o cálculo e por uma caricatura grotesca de autoria do Voltaire. Depois de cada blurb vou colocar uma citação do sujeito que relacione a ciência a algum princípio cristão.

1. Gottfried Leibniz (1646-1716)

Não sei até que ponto isso é surpreendente, mas foi Leibniz quem inventou o sistema binário de números. Isso faz com que ele possa ser chamado, para usar o termo predileto dos historiadores da ciência, de pai da engenharia de computação. As contribuições à engenharia mecânica são várias: projetou bombas e prensas hidráulicas, submarinos, relógios, máquinas a vapor etc. Esse pessoal mais antigo ficava entediado e ia construir pirâmides. É assombroso. Quanto ao cálculo: a notação que usamos hoje para diferencial, integral etc. foi invenção de Leibniz. Não se trata apenas de uma notação, mas de um método (em oposição ao método geométrico de Newton). O resultado é que praticamente não há grandes contribuições ao cálculo vindo de anglo-saxônicos (excetuando Taylor e Maclaurin) durantes os séculos 17 e 18.

In whatever manner God created the world, it would always have been regular and in a certain general order. God, however, has chosen the most perfect, that is to say, the one which is at the same time the simplest in hypothesis and the richest in phenomena.

2. James Prescott Joule (1818-1889)

A idéia de ver calor como uma forma de energia parece óbvia hoje, como usualmente ocorre com as grandes descobertas. A coisa é de tal importância que o Joule passou a ser uma unidade derivada do sistema internacional de unidades (SI), a unidade de energia.

After the knowledge of, and obedience to, the will of God, the next aim must be to know something of His attributes of wisdom, power, and goodness as evidenced by His handiwork.

3. Johannes Kepler (1571-1630)

O trabalho de Kepler foi muito mais de observação (e de paciência) do que propriamente analítico. As chamadas três leis de Kepler (não podem ser chamadas de leis, mas isso é outro assunto) -- formato das órbitas, tempo/área de varredura e relação entre período e eixo de órbita -- só vieram a ser demonstradas matematicamente com o advento da dinâmica de Newton. Parece que ninguém mais que o Kepler levou a sério essa disposição de observar, e com isso aprender algo da, obra divina.

Great is God our Lord, great is His power and there is no end to His wisdom. Praise Him you heavens; glorify Him, sun and moon and you planets. For out of Him and through Him, and in Him are all things... We know, oh, so little. To Him be the praise, the honor and the glory from eternity to eternity.

4. Michael Faraday (1791-1867)

Diferentemente do Kepler, cujo mérito maior foi de observação empírica, Faraday teve insights teóricos que soam ainda mais impressionantes se levamos em conta que a matemática da época era bem limitada e que mesmo dessa matemática ele conhecia pouco. A lei da indução magnética de Faraday (que é uma das quatro equações de Maxwell) é, segundo consta, uma das leis de mais difícil 'visualização' na Física, ainda que se disponha de um ferramental matemático adequado. Menos conhecidas são suas contribuições como químico: descobriu o benzeno (o velho benzeno) e mexia com polímeros.

Speculations? I have none. I am resting on certainties. 'I know whom I have believed and am persuaded that He is able to keep that which I have committed unto Him against that day.'

5. James Clerk Maxwell (1831-1879)

Maxwell conseguiu sintetizar o eletromagnetismo inteiro em quatro equações simples (lei de Gauss, lei de Gauss para o magnetismo, lei da indução de Faraday e lei circuital de Ampère). Tudo sai daí. Lembra aquela expressãozinha para refração de um raio de luz entre meios com índice de refringência diferentes? Era empírica até ser demonstrada por uma equação de Maxwell (Snell, então, era uma espécie de Kepler da óptica geométrica). A primeira fotografia colorida (apresentada por ele mesmo na Royal Institution) foi possível graças a contribuições suas à análise de cores. On top of that, mexia com termodinâmica estatística (que é a que deve ser utilizado se quisermos resultados realmente precisos) e é considerado o pai da teoria de controle.

Almighty God, Who has created man in Thine own image, and made him a living soul that he might seek after Thee, and have dominion over Thy creatures, teach us to study the works of Thy hands, that we may subdue the earth to our use, and strengthen the reason for Thy service; so to receive Thy blessed Word, that we may believe on Him Who Thou has sent, to give us the knowledge of salvation and the remission of our sins. All of which we ask in the name of the same Jesus Christ, our Lord.

05 maio, 2008

Somos Livres?

Eu digo que sim, e pensei que fosse coisa óbvia. Estive conversando com uns amigos sobre livre-arbítrio e vi que não é bem assim (refiro-me à obviedade). Parece que uma vez mais o desenvolvimento desproporcional de uma área do conhecimento (conhecimento científico) tem gerado confusões. A comparação mais comum que ouço nesse contexto é a de um sistema de simulação computacional cujas variáveis são todas criadas e manipuladas pelo usuário. O usuário tem conhecimento de e poder sobre todas as variávies; é o Deus do sistema.

O absurdo dessa comparação é evidente: ela leva diretamente à conclusão de que o ser humano é tão livre quanto uma pedra. Mas é sabido que uma pedra, quando solta, cai sempre; eu, como humano, posso levantar, deitar, correr etc. Quando perguntamos ao autor da comparação se somos como a pedra, ele responde que não, que somos mais complicados: há uma miríade de impulsos nervosos que percorrem várias sinapses em poucos milissegundos e coisa e tal. Do ponto de vista filosófico, porém, essa complexidade fisiológica não acrescenta nada; seríamos apenas uma pedra que transmite milhares de sinais antes de cair. Basta pensar no mecanismo de apagar a vela do bolo na antiga abertura do Castelo Rá-Tim-Bum. Funcionalmente há mais complexidade naquilo do que num simples sopro? A mentalidade cientificista, mantendo uma coerência quase cega, só admite conceder qualquer complexidade aos entes se essa complexidade for também científica.

Um sintoma engraçado dessa maneira de pensar são os estudos que dizem ter desvendado essa ou aquela habilidade cognitiva por terem detectado atividade intensa na região setentrional esquerda do córtex cerebral. Usualmente, bastaria falar em causa e efeito pra acabar com a confusão, mas a mentalidade cientificista exige analogias mecânicas: é como se um grupo de pessoas se reunisse numa sala e acendesse as luzes do recinto. Da percepção bem óbvia de que há movimento lá dentro partimos pra conclusão de que sabemos do que eles conversam; mais ainda, conhecemos o princípio que lhes concede a própria fala.

Outra maneira de ver o problema: digamos que a vontade de comer rapadura excite o lóbulo direito do cérebro. Os indivíduos A e B estão com fome e, o que é pior, vieram do sertão cearense. Como justificar o fato de que A resolveu comer a guloseima e B não? Porque B é religioso e seu Messias proibiu a ingestão de rapadura, sob pena de prejudicar o desempenho sexual dos hereges. A disciplina e a piedade religiosas, diz-se, são dirigidas por determinada atividade neurológica. O indivíduo C, seguidor da mesma religião e também cearense, resolveu comer a rapadura ainda assim porque teve uma visão em que o anjo Sebastião, vestido com a camisa do vovô, afirmava ser a abstinência de rapadura uma grande bobagem e que deveria haver, por isso, um cisma na Igreja, restringindo o território sagrado dos comedores de rapadura à margem oriental do rio Banabuiú, território bastante propício ao plantio da cana-de-açúcar.

Segundo os cientificistas, as peripécias desenvolvidas no parágrafo anterior são fruto de mecanismos causais simples (determinadas impressões causadas por impulsos elétricos geraram a visão do anjo). Essa hipótese fica provada porque, caso danificássemos o lóbulo direito do ser humano, nada do que vai acima teria acontecido. Isso equivale a dizer que tudo que é necessário pra que algo aconteça é também suficiente pra que algo aconteça. Isso equivale a dizer que uma fuselagem sem asas e sem motor pode, estando parada, alçar vôo. Eu também acho que pode, mas uso o termo certo: milagre.

04 maio, 2008

Ora, Vírgulas!

Quando eu era criança tive de ler um livro chamado Ora, Vírgulas! no colégio. Não lembro os detalhes, mas contava o assombroso caso de uma cidade em que todas as vírgulas resolvem desaparecer. Os livros das bibliotecas, das escolas etc. ficam todos sem vírgulas, mais ou menos como numa versão light do último parágrafo de Ulysses. As crianças, claro, começam a perceber a importância das vírgulas e por aí vai.

Hoje, quando encontro uma pontuação que me desagrada, tenho vontade de vituperar: ora, vírgulas! Não quero dizer com isso que o problema seja sempre falta de virgulas; pode ser o contrário, pode ser um ponto-e-vírgula que deveria aparecer e não apareceu. Semana passada, estava lendo um livrinho do Paulo Francis, o ótimo Francis, e não parava de gritar 'ora, vírgulas!; ora, vírgulas!' enquanto socava a cama. Meu pai viu e perguntou: 'mas, filho, ele não ficou direitista antes de morrer?' O efeito terapêutico, porém, é altamente recomendável: algo como o Serenity Now! do pai do George no Seinfeld.

Confesso que nunca li romances do Jorge Amado (comecei uns três e desisti), mas já dirigi uns brados a textos dele, que Deus o tenha. Tenho um exemplo à mão: 'Ainda não consigo determinar as razões por que a obra de Campos de Carvalho não prosseguiu em sua carreira internacional. São coisas que acontecem, mais que inexplicáveis, infelizes.' Essa acumulação apressada de informações é algo de que todos nós, quando crianças, já fomos vítimas. Penso logo num pequerrucho fazendo um montinho de sujeira e jogando-o pra debaixo do tapete, displicente e bonachão.

Boa pontuação, para não falar em estilo, é a cortesia do prosador. É como se ele fosse espalhando rampas e escadinhas pelo caminho pra evitar estacadas desagradáveis. Deviam enfiar essa analogia em algum livrinho de produção de textos.

01 maio, 2008

Uma Testemunha Tardia

Façam-me o favor de ler essa crônica do Ruy Vasconcelos sobre o atendimento nos bares de Fortaleza: Cultivados grãos de um sadismo datado. Não precisa agradecer. O texto tem significado especial pra mim porque o péssimo serviço dos garçons fortalezenses sempre me pareceu um grande mistério. Como o próprio Ruy lembra, nós fortalezenses somos tidos como simpáticos e hospitaleiros. Mais intrigante ainda: os vários garçons cearenses que encontro em São Paulo são excelentes, exemplos de simpatia e hospitalidade. O que poderia ter ocorrido? Só fui descobrir agora porque era novo demais pra frequentar bares no começo da década de 90, mas bem que devia ter desconfiado.

Ontem mesmo fui a um dos bares-restaurante mais reputados de Fortaleza, desses que aparecem nas listinhas da revista Veja. Um garçom passou apressado e derrubou minha cerveja quase inteira. Trocou a toalha e, para o meu espanto, nada de trazer uma cerveja nova. Chamei o chefe (aquele mais arrumadinho) e perguntei por que não traziam outra. Resposta: eu devia ter falado com ele antes. Em bares fortalezenses, você está sempre errado.

Por muito tempo procurei palavras para descrever a postura desses luminares do atendimento. Ruy acerta na mosca: agem com 'desfaçatez e calculado cinismo'. Quando chamados, fingem que não ouvem e apressam o passo; há um apelo urgente vindo da cozinha ou de um cliente perdido no horizonte. Se um casal pede comida do restaurante, um dos dois tem de ser servido primeiro; passado tempo suficiente para que ele dê cabo ao lanche, chega o pedido do outro. A bebida, para a decepção geral dos sádicos, não é mais servida quente graças aos avanços galopantes da engenharia.

Já escrevi três parágrafos e ainda não dei um jeito de meter os EUA no meio! Faço-o agora: o atendimento lá é sempre bom porque os garçons trabalham com gorjeta (Ruy fala em boas gorjetas no Estoril; se não se tratar de truque retórico confesso-me desiludido). Alguém pode lembrar que temos os famosos 10%, mas no Brasil não se trabalha pelo que não se pode perder. Em São Paulo a gorjeta não é incomum, embora ainda se confunda um pouco com uma espécie de suborno amigável. O cliente suborna o garçom (especialmente se tiverem algo de grande relevância em comum, como o estado de origem ou o time do coração) e o garçom retribui com presteza e eventuais chopps gratuitos. Aqui não há diálogo; o garçom está sempre preocupado com espectros que lhe sugam a presença.

A verdade aparente é que o bom garçom está sempre querendo deixar de ser garçom (no caso dos EUA) ou pelo menos ficar menos pobre. É o bom e velho Capital operando suas maravilhas. Não vejo por que isso deve ser incompatível com relações mais cordiais na mesa do bar. É bem verdade que o fortalezense continua maciçamente esquerdista, mas a morbidez, pelo que pude perceber, já é coisa do passado. Precisamos importar garçons cearenses.