25 agosto, 2007

De Lilliput ao País dos Houyhnhnms

Informa-me um conhecido que o Carpeaux, em algum dos volumes de sua História da Literatura Universal, teria traçado um perfil psicológico de Jonathan Swift (1667-1745) e concluído que o sujeito sofria de alguma disfunção erétil. Só assim, explicaria Carpeaux, poderíamos dar conta de tanto azedume satírico. A princípio pode parecer estranho que se escrutine o desempenho amoroso de um padre, mas depois de uma leitura de Gulliver's Travels a coisa não parece tão absurda assim: Swift atirava para todos os lados, e a impudicícia de seus contemporâneos não poderia deixar de ser um alvo. Ainda bem.

As duas primeiras viagens de Lemuel Gulliver, para Lilliput (cujos habitantes não ultrapassam as seis polegadas ou aproximadamente 15 centrímetros) e para Brobdingnag (onde a situação se inverte e Gulliver passa a ser a miniatura), ilustram bem a discussão sobre o livrinho do Burke de que falei há uns posts. O Burke listava smallness como uma das características de tudo quanto é belo, e inclusive citava o nosso cacoete de atribuir o diminutivo aos objetos de nossa afeição: coisinha, amorzinho etc. É sugestivo que as moças sejam geralmente menores que seus pares (a ponto de 'pequena' ter também se transformado num apelativo carinhoso), apesar de algumas, talvez temendo representar um exagero liliputiano, tentarem disfarçar até isso. Exemplo pessoal: um dia desses perguntei à minha ex que altura exatamente ela tem e recebi como resposta um "1,58 e meio!". Ora, quem quer ter meio quer ter um inteiro!

Já não podemos falar de beleza em relação aos gigantes de Brobdingnag, por mais que eventualmente eles se revelem pessoas fofinhas. Gulliver observa com nojo indisfarçável a nudez de uma das gigantes:
I must confess no object ever disgusted me so much as the sight of her monstrous breast, which I cannot tell what to compare with, so as to give the curious reader an idea of its bulk, shape and colour. It stood prominent six foot, and could not be less than sixteen in circunference. The nipple was about half the bigness of my head, and the hue both of that and the dug so varified with spots, pimples and freckles, that nothing could appear more nauseous: (...). This made me reflect upon the fair skins of our English ladies, who appear so beautiful to us, only because they are of our own size, and their defects not to be seen but through a magnifying glass, where we find by experiment that the smoothest and whitest skins look rough and coarse, and ill coloured.
Mas é contra a torpeza moral dos seus (com 'seus' quero dizer o homem europeu moderno) que a sátira de Swift se volta com fúria particular. Ainda que não se aceite o princípio segundo o qual todo bom humor está sempre na oposição, o certo é que Swift não se arrisca e acaba construindo uma ode ao passado e às tradições. Na ilha de Glubbdubdrib, em que lhe é dada a oportunidade de conferenciar com qualquer morto de sua preferência, Gulliver dá um depoimento desconsolado:
I was chiefly disgusted with modern history. For having strictly examined all the persons of greatest name in the course of princes for an hundred years past, I found how the world had been misled by prostitute writers, to ascribe the greatest exploits in war to cowards, the wisest counsel to fools, sincerity to flatterers, Roman virtue to betrayers of their country, piety to atheists, chastity to sodomites, truth to informers. How many innocent and excellent persons had been comdemned to death or banishment, by the practising of great ministers upon the corruption of judges, and the malice of factions. How many villains had been exalted to the highest places of trust, power, dignity, and profit: how great a share in the motions and events of courts, councils, and senates might be challenged by bawds, whores, pimps, parasites, and buffoons: how low an opinion I had of human wisdom and integrity, when I was truly informed of the springs and motives of great enterprises and revolutions in the world, and of the contemptible accidents to which they owed their success.
Difícil não tentar imaginar o que Swift diria do Brasil atual. Provavelmente a mesma coisa, só que publicado na forma de estudo documentado, não na de sátira.

A última viagem de Gulliver, a essa altura quase se despedindo de seus últimos resquícios de sanidade, é para o país dos Houyhnhnms (é, eu sei que não dá pra pronunciar isso), seres idênticos aos nossos cavalos mas dotados de grande inteligência. Os Yahoos, que por outro lado são idênticos aos humanos à exceção da quantidade de pêlos e do tamanho das unhas, são os selvagens da ilha, tratados com justo desprezo por todos os Houyhnhnms. Gulliver eventualmente se convence de que a raça humana, com que teve de conviver penosamente por boa parte de sua vida, não é nada além de uma vertente um pouco mais desenvolvida (e por isso mesmo mais perigosa) dos Yahoos. Apesar do desejo de permanecer lá por toda a vida, sua aparência, tão próxima da dos Yahoos, acaba levando à sua expulsão da ilha. A sátira chega ao fim, mas não sem um derradeiro aviso:
But the Houyhnhnms, who live under the government of reason, are no more proud of the good qualities they possess, than I should be for not wanting a let or an arm, which no man in his wits would boast of, although he must be miserable without them. I dwell the longer upon this subject from the desire I have to make the society of an English Yahoo by any means not insupportable; and therefore I here entreat those who have any tincture of this absurd vice [pride], that they will not presume to come in my sight.