08 janeiro, 2008

Imaginação Moral

- Você, no lugar do Lord Jim, também teria pulado?

Quem foi Lord Jim? Por praticidade, transcrevo o primeiro parágrafo do ensaio The Moral Sense in Joseph's Conrad Lord Jim do George A. Panichas, da Universidade de Maryland (leia a íntegra aqui):
Lord Jim (1900), Joseph Conrad’s fourth novel, is the story of a ship which collides with "a floating derelict" and will doubtlessly "go down at any moment" during a "silent black squall." The ship, old and rust-eaten, known as the Patna, is voyaging across the Indian Ocean to the Red Sea. Aboard are eight-hundred Muslim pilgrims who are being transported to a "holy place, the promise of salvation, the reward of eternal life." Terror possesses the captain and several of his officers, who jump from the pilgrim-ship and thus wantonly abandon the sleeping passengers who are unaware of their peril. For the crew members in the safety of their life-boat, dishonor is better than death.
Se com 'você' eu estiver me referindo a uma amostra aleatória da população, é bem provável que a resposta à pergunta seja não só afirmativa, mas também obviamente afirmativa. Já se comentou o quanto a consternação de Lord Jim (consternação que começa no life-boat mesmo, ao contemplar o aspecto odiento de seus cúmplices) parece hoje exagerada ou até afetada. Se não havia alternativa que não envolvesse risco de vida, por que tanta autoflagelação?

Já Jim pensava diferente; nas palavras do próprio Conrad, he was one of us. Parece que desde muito cedo percebeu que, aonde quer que fosse, a sombra do passado o alcançaria e renovaria as angústias do famigerado pulo, numa espécie de mito do eterno retorno. A imaginação moral não dá espaço para o esquecimento, e de que adianta tanta imaginação moral uma vez que a patifaria já foi feita? Jim reconhece que o máximo que pode esperar é uma redenção parcial, a redenção de quem já se sabe perdido.

Falando em imaginação moral, pensa-se logo em Conrad porque muito de seus personagens parecem forjados com isso em mente. Ao explicar a gênese de Nostromo, seu romance de 1904, lembra que só lhe ocorreu contar a história do roubo de um carregamento de prata numa pequena república na América do Sul (cujos rumores ouviu pela primeira vez quando era ainda um jovem marinheiro) quando pensou em fazer do larápio um sujeito de bom caráter - a perfectly nice fellow. Nostromo em realidade é bem mais que isso; é respeitado e admirado em toda a republiqueta fictícia de Costaguana por sua bravura e lealdade. Reputação somente pode não parecer suficiente; a constância do caráter de Nostromo é-nos assegurada diretamente: He is a man with the weight of countless generations behind him and no parentage to boast of... Like the People.

Nostromo é então encumbido de salvar um carregamento de prata da sanha dos revolucionários locais. Circunstâncias forçam-no a esconder o tesouro numa ilha próxima até que as coisas voltem ao normal, mas prefere dizer que o carregamento foi perdido no mar para poder posteriormente resgatá-lo - e enriquecer - lentamente. Nostromo tenta em vão expiar parte de sua culpa ao exortar contra os interesses materiais dos donos da mina: os estrangeiros, os ricos, que prosperam às custas da lealdade de seus subordinados. Ora, Nostromo sabe que é tão ou mais culpado que o mais inescrupuloso dos capitalistas; ao seduzir a jovem Giselle, avisa que ela pretende casar-se com um ladrão.

A perspectiva de ter de voltar inúmeras vezes à ilha onde o tesouro se encontra enterrado (para recuperá-lo a pouco e pouco) é também, está claro, angustiante. Nostromo não poderia ele mesmo ser mais explícito: considera-se escravo da prata, escravo da ilha:
A transgression, a crime, entering a man's existence, eats it up like a malignant growth, consumes it like a fever. Nostromo had lost his peace; the genuineness of all his qualities was destroyed. He felt it himself, and often cursed the silver of San Tomé. His courage, his magnificence, his leisure, his work, everything was as before, only everything was a sham. But the treasure was real. He clung to it with a more tenacious, mental grip. But he hated the feel of the ingots. Sometimes, after putting away a couple of them in his cabin -- the fruit of a secret night expedition to the Great Isabel -- he would look fixedly at his fingers, as if surprised they had left no stain on his skin.
Já pouco antes de expirar tenta se livrar do segredo que lhe pesa tanto. A prata é incorruptível, assim como a imaginação que lhe nega um sono (eterno ou não) tranquilo: But there is something accursed in wealth. Señora, shall I tell you where the treasure is? To you alone... Shining! Incorruptible!