É sempre grande a tentação de procurar defeitos na obra de autores com quem não nos identificamos pessoalmente. Quanto mais sabemos sobre a biografia do sujeito mais corremos esse risco, é claro. O caso de Ernest Hemingway (1899-1961) é bem ilustrativo nesse sentido: trata-se de um grande escritor cuja figura me parece detestável em todos os sentidos imagináveis. Se eu tivesse de compilar uma listinha de celebridades artísticas que eu gostaria de conhecer, Hemingway apareceria por último (OK, penúltimo, sempre há a Lispector). Por quê?
Há detalhes biográficos que por mais condenáveis ainda suscitam uma espécie de volúpia da excentricidade: um certo excesso de autoritarismo, opiniões extremadas sobre determinados assuntos, hábitos atípicos etc. Mas há outros que primam pela mesquinharia e que não poderiam nos afetar senão de maneira negativa: invejinha de escritor, ingratidão e mendacidade. Do primeiro mal Hemingway dá-nos exemplo ao se mostrar inconformado com o sucesso de F. Scott Fitzgerald, apenas alguns anos mais velho que ele, enquanto seus originais eram sucessivamente rejeitados por jornais e revistas americanos. Quanto ao segundo, temos o testemunho das quatro mulheres que tiveram a infelicidade de se casar e se dedicar a alguém tão egoísta (o enredo de Across the River and Into the Trees, penúltimo romance de Hemingway, foi inspirado por uma jovem por quem ele se apaixonou já depois de ter-se casado pela quarta vez). Quanto ao último, só podemos lembrar as muitas anedotas mentirosas que Hemingway contava sobre suas experiências de guerra (e de caça, e de pesca). De fato, Hemingway, principalmente a partir da década de 50, passa a construir uma imagem de selvagem solitário (já não tira mais a barba); participa de safáris na África, isola-se em Havana, Key West ou Idaho, onde viria a se suicidar. Mas, curiosamente, nunca consegue abandonar o estilo bon vivant parisiense, Paris que ele tornava a visitar sempre que a selva começava a aborrecê-lo.
Mas e daí? O fato é que escreveu alguns livros impressionantes (The Sun Also Rises é um dos romances mais emocionantes, no bom sentido, que eu já li na vida) e mesmo quem o odeia como escritor (não conheço muitos) não pode negar a influência avassaladora que ele impôs na prosa em inglês a partir de 1926. Todo mundo parece dever um pouco a Hemingway. Mas como pode ele ser emocionante em determinados momentos se seu estilo é conhecido pelo motivo contrário, a secura, a economia das palavras? No prefácio que Carpeaux escreveu para um livro de Hemingway (e que me motivou a escrever esse post), Vida, obra, morte e glória de Hemingway (1971), ele dá o exemplo, já citado por mim aqui antes, das últimas linhas do The Sun Also Rises. Jake Barnes sofreu um ferimento na guerra que o deixou impotente (o próprio Hemingway feriu-se nos testículos, apesar de não ter ficado impotente) e Lady Brett é sua amiga, um tanto pervertida, diga-se, que apesar da perversão não parece conseguir esquecê-lo. Vão aí as últimas palavras do livro:
Há detalhes biográficos que por mais condenáveis ainda suscitam uma espécie de volúpia da excentricidade: um certo excesso de autoritarismo, opiniões extremadas sobre determinados assuntos, hábitos atípicos etc. Mas há outros que primam pela mesquinharia e que não poderiam nos afetar senão de maneira negativa: invejinha de escritor, ingratidão e mendacidade. Do primeiro mal Hemingway dá-nos exemplo ao se mostrar inconformado com o sucesso de F. Scott Fitzgerald, apenas alguns anos mais velho que ele, enquanto seus originais eram sucessivamente rejeitados por jornais e revistas americanos. Quanto ao segundo, temos o testemunho das quatro mulheres que tiveram a infelicidade de se casar e se dedicar a alguém tão egoísta (o enredo de Across the River and Into the Trees, penúltimo romance de Hemingway, foi inspirado por uma jovem por quem ele se apaixonou já depois de ter-se casado pela quarta vez). Quanto ao último, só podemos lembrar as muitas anedotas mentirosas que Hemingway contava sobre suas experiências de guerra (e de caça, e de pesca). De fato, Hemingway, principalmente a partir da década de 50, passa a construir uma imagem de selvagem solitário (já não tira mais a barba); participa de safáris na África, isola-se em Havana, Key West ou Idaho, onde viria a se suicidar. Mas, curiosamente, nunca consegue abandonar o estilo bon vivant parisiense, Paris que ele tornava a visitar sempre que a selva começava a aborrecê-lo.
Mas e daí? O fato é que escreveu alguns livros impressionantes (The Sun Also Rises é um dos romances mais emocionantes, no bom sentido, que eu já li na vida) e mesmo quem o odeia como escritor (não conheço muitos) não pode negar a influência avassaladora que ele impôs na prosa em inglês a partir de 1926. Todo mundo parece dever um pouco a Hemingway. Mas como pode ele ser emocionante em determinados momentos se seu estilo é conhecido pelo motivo contrário, a secura, a economia das palavras? No prefácio que Carpeaux escreveu para um livro de Hemingway (e que me motivou a escrever esse post), Vida, obra, morte e glória de Hemingway (1971), ele dá o exemplo, já citado por mim aqui antes, das últimas linhas do The Sun Also Rises. Jake Barnes sofreu um ferimento na guerra que o deixou impotente (o próprio Hemingway feriu-se nos testículos, apesar de não ter ficado impotente) e Lady Brett é sua amiga, um tanto pervertida, diga-se, que apesar da perversão não parece conseguir esquecê-lo. Vão aí as últimas palavras do livro:
"Oh, Jake," Brett said, "we could have had such a damned good time together."O diálogo é simples como todos os outros do livro, como todos os outros de todos os livros, e ainda assim temos a inescapável sensação de que o isn't it pretty to think so? remete a toda a amargura acumulada até então; o trecho final funciona como uma espécie de função recursiva que explode duma só vez a emotividade que nunca é, nem nesse final catártico, expressa explicitamente. Não é preciso dizer mais nada porque já entendemos, lembra Carpeaux. Não admira, então, que os trechos finais de vários livros de Hemingway sejam memoráveis. Temos o "e o velho sonhava com leões" de The Old Man and the Sea e o não menos impressionante desfecho de Farewell to Arms. Frederick Henry é ferido em guerra (por estilhaços de um shrapnel, assim como o autor) e acaba conhecendo Catherine Barkley no hospital, por quem se apaixona. Quando ele é chamado pra lutar novamente ela confessa que já espera um filho seu. Frederick decide dar 'adeus às armas' e fugir com Catherine. Mas há complicações no parto e Catherine morre. Ele entra no quarto do hospital para vê-la pela última vez. Últimas palavras do romance:
"Yes," I said. "Isn't it pretty to think so?"
It was like saying good-bye to a statue. After a while I went out and left the hospital and walked back to the hotel in the rain.
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