Já tiveram a sensação de estar lendo o pior livro possível para um determinado momento? Foi o que senti durante a última semana inteira, semana penosamente dedicada à leitura das 520 páginas do Le Rouge et le Noir, de Marie-Henri Beyle, vulgo Stendhal. Li-o na esperança de encontrar algo da glória napoleônica, de heroísmo militar em geral, ou pelo menos da piedade do mais alto escalão eclesiástico. Quanta ingenuidade! De fato, Julien Sorel, filho de carpinteiro, é obcecado por Napoleão e procura seguir-lhe os passos, da miséria à consagração universal, e, apesar de conseguir ascender socialmente, fá-lo de maneira a ser comentado em cafés e bailes parisienses, mas nunca em livros de história. O que poderia ser pior que small talk francês para quem anseia por bravura medieval e querelas teológicas?
Le Rouge et le Noir é um daqueles livros a que devemos certa reverência antes mesmo de começarmos a lê-lo. Ele é cheio de pioneirismos importantinhos, como dizer que o romance é um espelho da sociedade, e que se a imagem daí resultante nos parece aviltante é culpa da sociedade, não do romancista etc. Há também aquelas alusões bem pouco veladas, observação obrigatória em rodas de leitura de velhinhas hiperativas, do tipo fazer com que o social climber Sorel tenha de subir escadas para entrar no quarto de suas amantes. Já se pode até imaginar possíveis títulos de ensaios sobre o livro: Stendhal's Subtle Imagery: Making Money Through the Roof of the Night ou A Choice of Ladders: Either Social or Naughty. É claro que esses detalhes só soam ridículos porque a paródia é intencionalmente ridícula, mas ela serve pra dar uma idéia do meu drama pessoal.
Por que, afinal, tanta antipatia? Por que tanto ennui, como diriam os franceses? Primeiro porque o livro é francês. Pior, trata da alta sociedade francesa. Antes que a patrulha esquerdopata venha sugerir que é porque Stendhal, Sorel etc. eram liberals, defendo-me com o 'revisionismo' sempre indispensável nesses horas: Sorel despreza, ou ao menos diz desprezar, a aristocracia e a religião. Mas eis que, durante todo o livro, identifica-se somente com aristocratas e figuras eclesiásticas, e não por interesse. Admira extasiado (e inclusive faz questão de participar) do desfile em homenagem ao Rei de --. Mal consegue disfarçar a reverência que lhe surge espontaneamente ao contemplar a plácida figura do bispo de Agde. Declara-se entorpecido com os ritos, preces e canções que presencia; pressente o que poderíamos chamar cheiro da eternidade. É claro que tudo isso trai um caráter afeito ao grandioso, coisa que um orgulho plebeu tão forte já deixava entrever desde muito cedo.
Mas, infelizmente para nós, não há nada de grandioso nas peripécias de Sorel, apesar de seu oportunismo ser realmente exemplar. Refiro-me em particular ao romance com Mathilde, filha do marquês de la Mole, para quem Sorel trabalha como secretário. Lembram-se daquele filme Closer, em que os casais formam-se apenas para ruir depois de 5 minutos? É mais ou menos desse tipo a inconstância de Mathilde: julga-se apaixonada pelo nobre plebeu, mas, ao perceber que o possui completamente, enjoa e cai fora. Mas eis que Sorel, seguindo o conselho de um amigo especialista em relacionamentos, joga atenções para outra e, ó surpresa, lá está Mathilde apaixonada novamente.
O que seria isso senão uma ode, intencional ou não (provavelmente não), ao conservadorismo? Sorel pergunta a Mathilde: que garantia tem de que não será enjeitado de novo dentro em breve? Nenhuma, é claro. Isso lembra a observação de Chesterton segundo a qual todo bom revolucionário é em última análise também conservador: jamais conseguirá pintar o mundo inteiro de azul se amanhã já tiver mudado de idéia e preferir o vermelho. Muito pelo contrário, tem de querer sempre o azul, e com uma insistência obstinada. A mudança, longe de ser o aspecto mais importante da realidade, tem o péssimo hábito de degradar aquilo que foi erguido graças a um esforço de conservação. Muitas das virtudes que nos são mais caras não são muito mais que um esforço desse tipo. Ou alguém já ouviu falar em lealdade esporádica?
Já ficou claro que num embate entre Parmênides e Heráclito fico com Parmênides all the way. Graças a Aristóteles, também sabemos que mudanças não só existem como podem ser (e muitas vezes são) importantes. Quanto me perguntam se sou conservador, respondo: é claro, quem não gostaria de conservar o que é bom e de melhorar o que pode ser melhorado? Edmund Burke descrevia seu ideal de homem político precisamente assim: A disposition to preserve, and an ability to improve.
Le Rouge et le Noir é um daqueles livros a que devemos certa reverência antes mesmo de começarmos a lê-lo. Ele é cheio de pioneirismos importantinhos, como dizer que o romance é um espelho da sociedade, e que se a imagem daí resultante nos parece aviltante é culpa da sociedade, não do romancista etc. Há também aquelas alusões bem pouco veladas, observação obrigatória em rodas de leitura de velhinhas hiperativas, do tipo fazer com que o social climber Sorel tenha de subir escadas para entrar no quarto de suas amantes. Já se pode até imaginar possíveis títulos de ensaios sobre o livro: Stendhal's Subtle Imagery: Making Money Through the Roof of the Night ou A Choice of Ladders: Either Social or Naughty. É claro que esses detalhes só soam ridículos porque a paródia é intencionalmente ridícula, mas ela serve pra dar uma idéia do meu drama pessoal.
Por que, afinal, tanta antipatia? Por que tanto ennui, como diriam os franceses? Primeiro porque o livro é francês. Pior, trata da alta sociedade francesa. Antes que a patrulha esquerdopata venha sugerir que é porque Stendhal, Sorel etc. eram liberals, defendo-me com o 'revisionismo' sempre indispensável nesses horas: Sorel despreza, ou ao menos diz desprezar, a aristocracia e a religião. Mas eis que, durante todo o livro, identifica-se somente com aristocratas e figuras eclesiásticas, e não por interesse. Admira extasiado (e inclusive faz questão de participar) do desfile em homenagem ao Rei de --. Mal consegue disfarçar a reverência que lhe surge espontaneamente ao contemplar a plácida figura do bispo de Agde. Declara-se entorpecido com os ritos, preces e canções que presencia; pressente o que poderíamos chamar cheiro da eternidade. É claro que tudo isso trai um caráter afeito ao grandioso, coisa que um orgulho plebeu tão forte já deixava entrever desde muito cedo.
Mas, infelizmente para nós, não há nada de grandioso nas peripécias de Sorel, apesar de seu oportunismo ser realmente exemplar. Refiro-me em particular ao romance com Mathilde, filha do marquês de la Mole, para quem Sorel trabalha como secretário. Lembram-se daquele filme Closer, em que os casais formam-se apenas para ruir depois de 5 minutos? É mais ou menos desse tipo a inconstância de Mathilde: julga-se apaixonada pelo nobre plebeu, mas, ao perceber que o possui completamente, enjoa e cai fora. Mas eis que Sorel, seguindo o conselho de um amigo especialista em relacionamentos, joga atenções para outra e, ó surpresa, lá está Mathilde apaixonada novamente.
O que seria isso senão uma ode, intencional ou não (provavelmente não), ao conservadorismo? Sorel pergunta a Mathilde: que garantia tem de que não será enjeitado de novo dentro em breve? Nenhuma, é claro. Isso lembra a observação de Chesterton segundo a qual todo bom revolucionário é em última análise também conservador: jamais conseguirá pintar o mundo inteiro de azul se amanhã já tiver mudado de idéia e preferir o vermelho. Muito pelo contrário, tem de querer sempre o azul, e com uma insistência obstinada. A mudança, longe de ser o aspecto mais importante da realidade, tem o péssimo hábito de degradar aquilo que foi erguido graças a um esforço de conservação. Muitas das virtudes que nos são mais caras não são muito mais que um esforço desse tipo. Ou alguém já ouviu falar em lealdade esporádica?
Já ficou claro que num embate entre Parmênides e Heráclito fico com Parmênides all the way. Graças a Aristóteles, também sabemos que mudanças não só existem como podem ser (e muitas vezes são) importantes. Quanto me perguntam se sou conservador, respondo: é claro, quem não gostaria de conservar o que é bom e de melhorar o que pode ser melhorado? Edmund Burke descrevia seu ideal de homem político precisamente assim: A disposition to preserve, and an ability to improve.
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