Uma das melhores maneiras de maldizer o Brasil é observar que se o austríaco Otto Karpfen (1900-1978) tivesse ido pros EUA em vez vindo pra cá, ele hoje seria uma figura nacionalmente respeitada (o artigo sobre Carpeaux na Wikipedia em inglês é maior que na em português). Apesar do ambiente pouco receptivo -- de que ele nunca reclamava, é claro, além de exaltar as boas amizades que teve oportunidade de fazer --, foi o maior crítico de literatura que o Brasil já teve ou vai ter. Carpeaux também foi um dos primeiros a escrever sobre música erudita no país: o Uma Nova História da Música foi editado pela Ediouro como O Livro de Ouro da História da Música. A monumental História da Literatura Universal, originalmente publicada em 8 volumes, está hoje fora de circulação editorial. O esforço para imprimir a obra completa de Carpeaux, empreendimento conjunto da Topbooks e da Univercidade, é louvável mas anda a passo de tartaruga: até agora só dispomos dos 2 volumes referentes à obra ensaística de Carpeaux; o primeiro reúne os ensaios publicados em livros e o segundo os publicados em periódicos. É desse segundo volume que falo agora.
O primeiro impulso (pelo menos foi o meu) de quem tem em mãos um volume tão heterogêneo é buscar aqueles ensaios sobre autores mais conhecidos e que parecem ter sido os preferidos de Carpeaux: Conrad, Kafka (ó surpresa, Carpeaux também foi o primeiro a escrever sobre Kafka no Brasil), Dante, Shakespeare, T. S. Eliot, Goethe etc. Os ensaios mais memoráveis, naturalmente, estão todos no primeiro volume (penso principalmente em O Mistério de Joseph Conrad e Visão de Graciliano Ramos), mas Carpeaux faz o que pode no curto espaço de 4 ou 5 páginas. Depois passamos aos temas brasileiros: Graciliano Ramos, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Machado de Assis. Música? Há Bach, Verdi, Wagner, Schubert, Haendel, Wolf. Artes plásticas? Há El Greco, Goya, Van Dyck.
Imagino que Carpeaux tenha irritado muita gente com tanta erudição. Não à toa é comumente lembrado, com um despeito mal disfarçado e quando é lembrado at all, pelos seus conhecimentos 'enciclopédicos'. Escrevendo sobre Hemingway, confessa mui candidamente que o volume de contos Winners Take Nothing (de que eu, aliás, nunca tinha ouvido falar) é o único livro do americano que ele 'só' leu uma única vez. Também observa que costuma reler a Comédia de Dante todos anos. Seria um snob? Outra coisa que costumava irritar seus interlocutores (irritou até o nosso Gustavo Corção) é o estilo desajeitado de quem foi aprender o português depois dos 40 anos. Paulo Francis costumava dizer que o inglês de Conrad parece uma tradução do polonês, e talvez não seja exagero dizer que o português de Carpeaux parece, sei lá eu, alemão traduzido. Momento-exercício-psicológico-barato: como pode um austríaco gago (se brincar é simpatizante fascista...) que mal aprendeu o português querer nos dar lições sobre a nossa e todas as outras literaturas? Não se sabe ao certo como, mas o fato é que Carpeaux podia.
O estilo, já em si um tanto caótico por não ser de um native-speaker, não é dos mais atraentes ao jovem leitor por outros motivos: Carpeaux propõe uma série de questões e só as retoma bem mais tarde, quando ocorre de retomá-las efetivamente. Expõe opiniões antagônicas sem que saibamos ao certo se são suas ou de algum oponente imaginário. Numa época em que o que mais se advoga é o discurso seco e direto, Carpeaux surge com um emaranhado inextricável de caminhos alternativos. Parece ser o natural de quem já leu tanto. No ensaio Meu Dante, Carpeaux enumera as diversas perspectivas com que ele mesmo já encarou a grande obra do florentino: a factual, a mística, a historicista, a sentimental, a biografista. Qual delas seria a mais correta, se é que faz sentido falar em correção? Provavelmente uma síntese 'barroca' de todas elas.
São raros, pelo menos nesses volumes de ensaios, os momentos em que Carpeaux se deixa levar por uma veia mais polêmica. Normalmente prefere calar, e a ausência de certos nomes em seus ensaios é bastante conspícua. Mas esse não é o caso de Aldous Huxley. Em A erudição de Mr. Huxley, Carpeaux sugere que ele consulte o volume XXIII da Encyclopaedia Britannica, essa que é, segundo o próprio Huxley, sua leitura predileta. Ao afirmar que um criminoso não pode ser bom poeta, Huxley confessa ignorar o verbete referente ao poeta francês (e facinoroso) François Villon (1431-1463). Seria Carpeaux um snob? É mais provável que tenha ido ao país errado.
O primeiro impulso (pelo menos foi o meu) de quem tem em mãos um volume tão heterogêneo é buscar aqueles ensaios sobre autores mais conhecidos e que parecem ter sido os preferidos de Carpeaux: Conrad, Kafka (ó surpresa, Carpeaux também foi o primeiro a escrever sobre Kafka no Brasil), Dante, Shakespeare, T. S. Eliot, Goethe etc. Os ensaios mais memoráveis, naturalmente, estão todos no primeiro volume (penso principalmente em O Mistério de Joseph Conrad e Visão de Graciliano Ramos), mas Carpeaux faz o que pode no curto espaço de 4 ou 5 páginas. Depois passamos aos temas brasileiros: Graciliano Ramos, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Machado de Assis. Música? Há Bach, Verdi, Wagner, Schubert, Haendel, Wolf. Artes plásticas? Há El Greco, Goya, Van Dyck.
Imagino que Carpeaux tenha irritado muita gente com tanta erudição. Não à toa é comumente lembrado, com um despeito mal disfarçado e quando é lembrado at all, pelos seus conhecimentos 'enciclopédicos'. Escrevendo sobre Hemingway, confessa mui candidamente que o volume de contos Winners Take Nothing (de que eu, aliás, nunca tinha ouvido falar) é o único livro do americano que ele 'só' leu uma única vez. Também observa que costuma reler a Comédia de Dante todos anos. Seria um snob? Outra coisa que costumava irritar seus interlocutores (irritou até o nosso Gustavo Corção) é o estilo desajeitado de quem foi aprender o português depois dos 40 anos. Paulo Francis costumava dizer que o inglês de Conrad parece uma tradução do polonês, e talvez não seja exagero dizer que o português de Carpeaux parece, sei lá eu, alemão traduzido. Momento-exercício-psicológico-barato: como pode um austríaco gago (se brincar é simpatizante fascista...) que mal aprendeu o português querer nos dar lições sobre a nossa e todas as outras literaturas? Não se sabe ao certo como, mas o fato é que Carpeaux podia.
O estilo, já em si um tanto caótico por não ser de um native-speaker, não é dos mais atraentes ao jovem leitor por outros motivos: Carpeaux propõe uma série de questões e só as retoma bem mais tarde, quando ocorre de retomá-las efetivamente. Expõe opiniões antagônicas sem que saibamos ao certo se são suas ou de algum oponente imaginário. Numa época em que o que mais se advoga é o discurso seco e direto, Carpeaux surge com um emaranhado inextricável de caminhos alternativos. Parece ser o natural de quem já leu tanto. No ensaio Meu Dante, Carpeaux enumera as diversas perspectivas com que ele mesmo já encarou a grande obra do florentino: a factual, a mística, a historicista, a sentimental, a biografista. Qual delas seria a mais correta, se é que faz sentido falar em correção? Provavelmente uma síntese 'barroca' de todas elas.
São raros, pelo menos nesses volumes de ensaios, os momentos em que Carpeaux se deixa levar por uma veia mais polêmica. Normalmente prefere calar, e a ausência de certos nomes em seus ensaios é bastante conspícua. Mas esse não é o caso de Aldous Huxley. Em A erudição de Mr. Huxley, Carpeaux sugere que ele consulte o volume XXIII da Encyclopaedia Britannica, essa que é, segundo o próprio Huxley, sua leitura predileta. Ao afirmar que um criminoso não pode ser bom poeta, Huxley confessa ignorar o verbete referente ao poeta francês (e facinoroso) François Villon (1431-1463). Seria Carpeaux um snob? É mais provável que tenha ido ao país errado.
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