12 fevereiro, 2008

Memória Vermelha (1)

Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.
Na edição que tenho em mãos (Record, 2004) do primeiro volume das Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, há um prefácio bem desagradável, daqueles que muito provavelmente nem o autor do livro consentiria ver publicado, escrito por Nelson Werneck Sodré. Primeiro porque é escancaradamente hagiográfico. Segundo porque, a despeito do conselho de Graciliano citado acima, o fascismo tupinambá é nele pintado com cores exageradas e odientas.

A verdade é que a imagem Graciliano Ramos sai, pelas mãos do mesmo Graciliano, bastante acanalhada desse livro. Curioso isso, já que o tipo de sinceridade que aqui encontramos (a vida em presídios leva a episódios tão constrangedores que somente a proteção da tumba -- o livro é póstumo -- é capaz de nos animar a revelá-los) é sinal de grandeza de caráter. Sem dúvida que é. Ocorre que o estilo do Graciliano, já velho conhecido nosso, força-o a desrespeitar, também ele, seu próprio conselho. Ele tem uma inteligência que poderíamos chamar episódica: pequenos detalhes, sejam gestos, palavras, odores etc., aparentemente desimportantes, são comentados detidamente, enchem capítulos inteiros. A narrativa flui normalmente até que um pequeno incidente prende toda a atenção do escritor; há como que uma suspenção epifânica. Como observava Alvaro Lins, o tempo narrativo de Graciliano Ramos é adulterado. A promessa enunciada logo no comecinho é cumprida à risca:
Posso andar para a direita e para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente.
Essa técnica funciona às maravilhas em romances como Angústia, em que o narrador-protagonista fica assim livre pra enfileirar suas obsessões e delírios. Aqui a coisa é aborrecida porque dá ares de onipotência àquilo mesmo que ele desejava não exagerar, o fascismo tupinambá. Impossível ignorar que, por não se tratar de ficção, conhecemos os nomes dos bois, e a possibilidade de reduzir boa ficção a panfleto político é premente e desconcertante.

Não há, é certo, ficção. E por mais que Graciliano se esforce para retratar com justeza seus algozes, as linhas sofridas, minguadas, como que espremidas do ritmo confessadamente lento do escritor, elevam as peregrinações do preso a um martírio quase que insuportável ao leitor. Acompanhamos enojados as perambulações pelo porão fétido do Manaus, sentimos as picadas de percevejos escondidos num catre duro, o cheiro nauseabundo da ração macilenta etc. Essas temeridades, graças ao talento do narrador, se multiplicam, avultam, ganham proporções impensáveis, instransponíveis. O órgão perpetrador das iniquidades cresce proporcionalmente, e o preso (lamentamos tanto por saber seu nome!) sai arrasado, acanalhado.

Eis aí: o ótimo estilo de Graciliano Ramos lhe prestou (a ele e a nós) um grande desserviço.