Todo mundo sabe que os dois maiores embustes da literatura nacional chamam-se Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Sempre que surgem aquelas listinhas de 'não li e não gostei', fico tentado a citar o nome de ambos, mas fico só na tentação porque já li alguns livros deles. Especificamente falando da Lispector, li dois livros de contos -- Laços de Família e A Legião Estrangeira -- e uma novela, a última publicação dela, A Hora da Estrela, um dos piores livros que já li na vida. Há alguns bons contos nos dois primeiros, principalmente no Legião, mas ocorre que muita gente escreve bons contos e nós não temos tempo pra ler todos os livros do mundo. É preciso estabelecer prioridades.
Meu objetivo com esse post é provar que a Lispector não merece ser lida lançando mão apenas de critérios completamente arbitrários e alheios a qualquer corrente histórica da chamada crítica literária. Não analisaremos enredos e personagens, estilo ou qualquer tipo de escolha estética, profundidade psicológica ou perspicácia filosófica, a possibilidade de epifanias ou transportes místicos. Tudo isso não ultrapassa a superfície do problema, e temo que as contribuições de um Matthew Arnold ou de um Otto Maria Carpeaux seriam de todo inúteis nesse caso. É necessário, antes de tudo, observar como ela segurava o cigarro, como ela cortava o cabelo, como cruzava as pernas numa poltrona, como se comportava na cozinha ou na cama etc.
Por isso fui procurar uma entrevista dela. Acima vai a primeira parte, de 5, de uma concedida ao Julio Lerner em 1977, poucos meses antes de ela morrer. Tentem aguentar o primeiro minuto inteiro, em que o apresentador fala um monte de maluquices: o tom surreal tende a continuar na própria entrevista. A primeira coisa a se observar é que, para Lispector, tudo é complicado, ou pelo menos é essa a impressão que ela quer passar. Sua produção literária era 'intensa', 'caótica' e 'fora da realidade... da vida'. Podia até ser, mas isso não é algo que se diga numa entrevista, entendem? Logo depois: 'sou tímida e ousada ao mesmo tempo'. Não lembra os nomes das publicações em que saíram seus primeiros contos. Não é uma escritora profissional. Silêncios prolongados. Quando escreve se comunica com o mais secreto de si mesma. Entendem?
O erro mais comum do Lispector-fanboy é tentar explicar o contexto e o sentido dessas declarações. Sem dúvida é possível encontrar um sentido pra maioria delas, até sem muita dificuldade. Mas o crucial é perceber que não há como suportar, muito menos ler, alguém que, numa entrevista, diz ser tímido e ousado ao mesmo tempo. Isso é trabalho para escritores de orelhas de livro ou resenhistas. Somos aqui forçados a tomar uma decisão importantíssima: ou ela veste essa carapuça de afetação apenas pra escrever e dar entrevistas, o que já seria em si ridículo, ou era assim sempre, o que nos leva a lamentar a sorte de seu marido. Não dá pra deixar de imaginar o sujeito pedindo algum favor mais libidinoso e obtendo como resposta um 'sou ousada, mas ao mesmo tempo tímida' ou um 'agora não posso, estou entretida com um diálogo com a parte mais secreta de meu ser'.
A Lispector sofre do que gosto de chamar 'síndrome de mulherzinha', que corresponde, em linguagem popular, a uma frescura generalizada com laivos de sofisticação. Trata-se de um mal que ameaça a carreira literária de qualquer moça e que eventualmente destruiu a de muitas, como Virginia Woolf, Cecilia Meireles e, por pouco, Lygia Fagundes Telles, que no final das contas só escapou porque lia muito Edgar Poe e Dostoievski. Rachel de Queiroz foi a única que esteve sempre imune. Fomos enganados.
Meu objetivo com esse post é provar que a Lispector não merece ser lida lançando mão apenas de critérios completamente arbitrários e alheios a qualquer corrente histórica da chamada crítica literária. Não analisaremos enredos e personagens, estilo ou qualquer tipo de escolha estética, profundidade psicológica ou perspicácia filosófica, a possibilidade de epifanias ou transportes místicos. Tudo isso não ultrapassa a superfície do problema, e temo que as contribuições de um Matthew Arnold ou de um Otto Maria Carpeaux seriam de todo inúteis nesse caso. É necessário, antes de tudo, observar como ela segurava o cigarro, como ela cortava o cabelo, como cruzava as pernas numa poltrona, como se comportava na cozinha ou na cama etc.
Por isso fui procurar uma entrevista dela. Acima vai a primeira parte, de 5, de uma concedida ao Julio Lerner em 1977, poucos meses antes de ela morrer. Tentem aguentar o primeiro minuto inteiro, em que o apresentador fala um monte de maluquices: o tom surreal tende a continuar na própria entrevista. A primeira coisa a se observar é que, para Lispector, tudo é complicado, ou pelo menos é essa a impressão que ela quer passar. Sua produção literária era 'intensa', 'caótica' e 'fora da realidade... da vida'. Podia até ser, mas isso não é algo que se diga numa entrevista, entendem? Logo depois: 'sou tímida e ousada ao mesmo tempo'. Não lembra os nomes das publicações em que saíram seus primeiros contos. Não é uma escritora profissional. Silêncios prolongados. Quando escreve se comunica com o mais secreto de si mesma. Entendem?
O erro mais comum do Lispector-fanboy é tentar explicar o contexto e o sentido dessas declarações. Sem dúvida é possível encontrar um sentido pra maioria delas, até sem muita dificuldade. Mas o crucial é perceber que não há como suportar, muito menos ler, alguém que, numa entrevista, diz ser tímido e ousado ao mesmo tempo. Isso é trabalho para escritores de orelhas de livro ou resenhistas. Somos aqui forçados a tomar uma decisão importantíssima: ou ela veste essa carapuça de afetação apenas pra escrever e dar entrevistas, o que já seria em si ridículo, ou era assim sempre, o que nos leva a lamentar a sorte de seu marido. Não dá pra deixar de imaginar o sujeito pedindo algum favor mais libidinoso e obtendo como resposta um 'sou ousada, mas ao mesmo tempo tímida' ou um 'agora não posso, estou entretida com um diálogo com a parte mais secreta de meu ser'.
A Lispector sofre do que gosto de chamar 'síndrome de mulherzinha', que corresponde, em linguagem popular, a uma frescura generalizada com laivos de sofisticação. Trata-se de um mal que ameaça a carreira literária de qualquer moça e que eventualmente destruiu a de muitas, como Virginia Woolf, Cecilia Meireles e, por pouco, Lygia Fagundes Telles, que no final das contas só escapou porque lia muito Edgar Poe e Dostoievski. Rachel de Queiroz foi a única que esteve sempre imune. Fomos enganados.
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