Ingmar Bergman (1918-2007) morreu há alguns meses e ninguém parece tentado a negar sua mestria enquanto filmmaker. Realmente seria difícil encontrar um cineasta capaz de criar com tanta frequência cenas memoráveis como a que é mostrada acima, d'O Sétimo Selo (1957), em que Antonius Block desafia a Morte para um jogo de xadrez, ou a sequência inicial de Morangos Silvestres (1957), em que o ancião Dr. Borg se vê sendo puxado pelo próprio cadáver, ou a rápida passagem de tanques de guerra peja janela do trem em O Silêncio (1963), ou os últimos momentos de Gritos e Sussuros (1972), quando toda a pesada melancolia que permeia o filme se dissipa com a serenidade do rosto de Agnes.
Mas e a tão alardeada 'profundidade' de Bergman, seria ela real? Que querem dizer com profundidade, afinal? Certamente se referem à temática tão recorrente em Bergman: a religião, o sentido da vida, a perspectiva privilegiada da velhice, o desencanto com a vida terrena, a incomunicabilidade das angústias modernas etc. Citam-se duas ou três figuras de renome (os preferidos são Kierkegaard e Kafka) e já temos aí todos os ingredientes para uma obra 'profunda'. A criação de atmosferas sombrias e coerentes com a temática abordada é, quem poderia negá-lo?, nada menos que genial: em O Silêncio os personagens, provavelmente fugindo da guerra, vão parar num país cuja língua é completamente desconhecida (trata-se de uma invenção do próprio Bergman). A sensação é de completa incomunicabilidade, a despeito de Ester ser, muito caracteristicamente, uma afamada tradutora de literatura. O silêncio familiar, atípico por si só, chega a um paroxismo com o afastamento do mundo exterior. Em Morangos Silvestres Dr. Isak é examinado por um inspetor que parece ter acabado de sair dum livro de Kafka: o primeiro teste consiste em ler ler uma inscrição em língua desconhecida no quadro-negro.
Se é mesmo verdade (como eu acredito que seja) que Bergman tem um talento aparentemente insuperável para a evocação imagética, resta saber o que ele tem a nos dizer sobre as questões levantadas com certa recorrência em seus filmes. Infelizmente, não muito. Isso já fica claro nesse que é considerado seu melhor filme, O Sétimo Selo. O cavaleiro medieval Antonius Block, confrontado com a Morte em pessoa, parece mais do que nunca interessado em conhecer a natureza divina, se é que ela existe. Pressiona a própria Morte, coitada, a contar seus segredos, se é que há segredos. Questiona inclusive uma menina que será queimada por alegar ter visto o diabo -- Deus existe (certamente o demônio saberá informar)? poderei vê-lo? para onde vamos? A impressão que dá é que Block seria uma pessoa completamente diferente caso lhe entregassem, mui candidamente, uma fotografia de Deus. É claro que Bergman já sabe, ou acredita saber, a resposta a todas essas perguntas. Em suas próprias palavras (The Magic Lantern - An Autobiography): ''You were born without purpose, you live without meaning... When you die, you are extinguished.''
Todo o dilema religioso da obra de Bergman (da pequena parte que eu conheço, é claro) é de uma ingenuidade tal que ele se nos afigura mais verdadeiro quando é expresso por uma criança -- o Alexander de Fanny e Alexander (1983), um garoto de 12 anos inconformado com o fato de Deus ainda não ter mandado matar seu padrasto assassino. "Se Deus existir, eu gostaria de dar-lhe um chute na bunda. Ninguém pensa!", diz o jovenzinho incrédulo. Quem nunca passou por semelhante dilema existencial durante a primeira adolescência? Esse poderia ser um dos casos mais fantásticos de ironia involuntária da história do cinema.
Mas e se Deus não é uma realidade confiável, se o máximo que conseguimos ao procurar esse tipo de segurança é frustração, o que resta? Uma infância traumatizada por uma religiosidade opressiva, é claro. Janer Cristaldo que o diga. Mais uma vez citando de sua autobiografia (retiro os trechos da hagiografia publicada por Woody Allen no NY Times por ocasião da morte de Bergman; clique aqui para ler): ''Most of our upbringing was based on such concepts as sin, confession, punishment, forgiveness and grace... This fact may well have contributed to our astonishing acceptance of Nazism.'' Quem souber conciliar confissão, perdão e graça ao nazismo que me avise, fazendo favor. Restaria algo mais? Há tambem o carpe diem, último refúgio dos ateus. Ele está presente em todos os filmes de Bergman que vi até agora: na anamnese da infância de Dr. Borg, na serena resignação de Agnes, na satisfação com que Antonius Block se delicia com morangos silvestres e leite fresco junto aos amigos e no discurso prafrentex do tio beberrão e mulherengo de Fanny e Alexander.
O vazio existencial de Bergman é provavelmente o mais atraente que já vi no cinema. Isso não significa que deva ser rejeitado com menos veemência.
Mas e a tão alardeada 'profundidade' de Bergman, seria ela real? Que querem dizer com profundidade, afinal? Certamente se referem à temática tão recorrente em Bergman: a religião, o sentido da vida, a perspectiva privilegiada da velhice, o desencanto com a vida terrena, a incomunicabilidade das angústias modernas etc. Citam-se duas ou três figuras de renome (os preferidos são Kierkegaard e Kafka) e já temos aí todos os ingredientes para uma obra 'profunda'. A criação de atmosferas sombrias e coerentes com a temática abordada é, quem poderia negá-lo?, nada menos que genial: em O Silêncio os personagens, provavelmente fugindo da guerra, vão parar num país cuja língua é completamente desconhecida (trata-se de uma invenção do próprio Bergman). A sensação é de completa incomunicabilidade, a despeito de Ester ser, muito caracteristicamente, uma afamada tradutora de literatura. O silêncio familiar, atípico por si só, chega a um paroxismo com o afastamento do mundo exterior. Em Morangos Silvestres Dr. Isak é examinado por um inspetor que parece ter acabado de sair dum livro de Kafka: o primeiro teste consiste em ler ler uma inscrição em língua desconhecida no quadro-negro.
Se é mesmo verdade (como eu acredito que seja) que Bergman tem um talento aparentemente insuperável para a evocação imagética, resta saber o que ele tem a nos dizer sobre as questões levantadas com certa recorrência em seus filmes. Infelizmente, não muito. Isso já fica claro nesse que é considerado seu melhor filme, O Sétimo Selo. O cavaleiro medieval Antonius Block, confrontado com a Morte em pessoa, parece mais do que nunca interessado em conhecer a natureza divina, se é que ela existe. Pressiona a própria Morte, coitada, a contar seus segredos, se é que há segredos. Questiona inclusive uma menina que será queimada por alegar ter visto o diabo -- Deus existe (certamente o demônio saberá informar)? poderei vê-lo? para onde vamos? A impressão que dá é que Block seria uma pessoa completamente diferente caso lhe entregassem, mui candidamente, uma fotografia de Deus. É claro que Bergman já sabe, ou acredita saber, a resposta a todas essas perguntas. Em suas próprias palavras (The Magic Lantern - An Autobiography): ''You were born without purpose, you live without meaning... When you die, you are extinguished.''
Todo o dilema religioso da obra de Bergman (da pequena parte que eu conheço, é claro) é de uma ingenuidade tal que ele se nos afigura mais verdadeiro quando é expresso por uma criança -- o Alexander de Fanny e Alexander (1983), um garoto de 12 anos inconformado com o fato de Deus ainda não ter mandado matar seu padrasto assassino. "Se Deus existir, eu gostaria de dar-lhe um chute na bunda. Ninguém pensa!", diz o jovenzinho incrédulo. Quem nunca passou por semelhante dilema existencial durante a primeira adolescência? Esse poderia ser um dos casos mais fantásticos de ironia involuntária da história do cinema.
Mas e se Deus não é uma realidade confiável, se o máximo que conseguimos ao procurar esse tipo de segurança é frustração, o que resta? Uma infância traumatizada por uma religiosidade opressiva, é claro. Janer Cristaldo que o diga. Mais uma vez citando de sua autobiografia (retiro os trechos da hagiografia publicada por Woody Allen no NY Times por ocasião da morte de Bergman; clique aqui para ler): ''Most of our upbringing was based on such concepts as sin, confession, punishment, forgiveness and grace... This fact may well have contributed to our astonishing acceptance of Nazism.'' Quem souber conciliar confissão, perdão e graça ao nazismo que me avise, fazendo favor. Restaria algo mais? Há tambem o carpe diem, último refúgio dos ateus. Ele está presente em todos os filmes de Bergman que vi até agora: na anamnese da infância de Dr. Borg, na serena resignação de Agnes, na satisfação com que Antonius Block se delicia com morangos silvestres e leite fresco junto aos amigos e no discurso prafrentex do tio beberrão e mulherengo de Fanny e Alexander.
O vazio existencial de Bergman é provavelmente o mais atraente que já vi no cinema. Isso não significa que deva ser rejeitado com menos veemência.
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