Escrevi há uns meses o post Duas Histórias (leia aqui), em que se faz uma comparação entre as versões de dois livros (a saber, o História para o Ensino Médio, dos brasileiros Claudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, e o Modern Times, do historiador inglês Paul Johnson) sobre a Revolução Russa. Por mais sacrílego que seja misturar Paul Johnson e Claudio Vicentino numa mesma discussão, a comparação não é de todo despropositada porque o livro de Vicentino é um dos mais utilizados em escolas de ensino médio brasileiras, inclusive na minha, uma escola particular e de inclinações católicas. Surge naturalmente a pergunta: por que diabos uma escola católica adotaria um livro abertamente marxista? Primeiro porque nunca ouvi falar de um livro didático de história, no Brasil, que não seja marxista. Segundo porque o catolicismo vagabundo de hoje nem sequer se dá ao trabalho de verificar o que estão ensinando pras suas crianças, se é que perceberia algo de errado se se desse ao trabalho.
Pois bem. O livro do Vicentino, por ter uma exposição muito grande, ainda mantém um mínimo de decoro: gramática e ortografia são respeitadas; procura-se encadear idéias, por mais absurdas que sejam, com um mínimo de respeito pela sanidade mental do leitor etc. Ainda assim não escapa de vários erros factuais, como dizer que a Revolução Russa teve apoio popular desde sempre, ou dizer que todo o poder foi transferido para o proletariado, quando na realidade estave sempre restrito a uma cúpula cada vez menos numerosa do Partido, dentre muitos outros. Coisas que, em países um pouco mais desenvolvidos, já são obviedades desde a década de 40.
Não é o caso do Nova História Crítica, do Mario Schmidt, que tem gerado tanto estardalhaço desde a publicação do artigo de Ali Kamel n'O Globo (leia aqui o artigo com trechos do livro). Aqui a mistificação é escancarada. A impressão que dá é que o autor se sente protegido pela indiferença (e/ou burrice) de pais e educadores, a ponto de estar suficientemente confortável pra propugnar toda sorte de baboseira e mentira, como defender a revolução cultural chinesa, a ditadura de Fidel Castro ou alegar que não havia desigualdades sociais na URSS. Num país onde escolas 'elitizadas' e 'católicas' adotam livros mendazes e defasados em mais de meio século, não chega a admirar que o livro de Schmidt tenha chegado, via MEC, às mãos de 750 mil alunos da rede pública. É sempre necessário que surja um caso grotesco como esse para que a esquerdopatia do ensino brasileiro volte a ser comentada, como se a análise dos livros 'melhores' (como o de Vicentino) já não fosse suficiente. Muito merecidamente, o caso já teve repercussão internacional (veja aqui). Orgulho de ser brasileiro? Erm...
Ser considerado paranóico é a sina de quem quer que critique a universidade (ou o ensino em geral) brasileiro, principalmente na área de humanas, onde o desastre é consideravelmente maior. Na última vez em que caí na besteira de discutir com um universitário (ciências sociais) esquerdinha, perguntei se eles liam José Guilherme Merquior, um dos maiores cientistas políticos brasileiros e respeitado (depois que morreu, é claro) até pela própria esquerda. Descobri que liam, sim: um trecho de 50 páginas de De Praga a Paris, livro que, en passant, foi escrito em inglês porque não havia quem quisesse publicá-lo por aqui. Já vi outro livro seu, Michel Foucault (edição esgotada), em que mostra metodicamente a fraude que foi Foucault, sendo citado por Roger Kimball, mas nunca por um brasileiro. Já que somos todos paranóicos e confundimos bananeiras com agentes comunistas, o máximo que podemos fazer é procurar por indícios de doutrinação em exames de vestibular e análogos.
É o que tem feito um dos mais notórios paranóicos do jornalismo brasileiro, Reinaldo Azevedo. Recentemente, em seu blog (v. link ao lado), ele publicou uma pequena compilação de exemplos tirados das seguintes instituições: escolas públicas do Paraná, Enem (nacional), Universidade Federal do ABC, Universidade Federal de Pernambuco e Mackenzie, além da rede pública nacional (caso do livro de Schmidt). Não seria muito difícil multiplicar os exemplos. Na USP, Gilberto Freyre foi esquecido e Florestan Fernandes é estudado com afinco. Na UFG, Freyre também foi relegado ao ostracismo. No instituto de tecnologia onde estudo o departamento de humanidades recomenda textos de Florestan Fernandes, Milton Santos e Eric Hobsbawn, mas nada de Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Roberto da Matta.
Quando Monteiro Lobato deu o título Paranóia ou Mistificação a seu famoso artigo, havia a possibilidade de que o alvo de suas críticas fosse ambos, como de fato era. Enquanto o brasileiro só conseguir enxergar mistificação em exemplos caricatos como o livro de Schmidt, o senso comum estará fadado a ser confundido com paranóia.
Pois bem. O livro do Vicentino, por ter uma exposição muito grande, ainda mantém um mínimo de decoro: gramática e ortografia são respeitadas; procura-se encadear idéias, por mais absurdas que sejam, com um mínimo de respeito pela sanidade mental do leitor etc. Ainda assim não escapa de vários erros factuais, como dizer que a Revolução Russa teve apoio popular desde sempre, ou dizer que todo o poder foi transferido para o proletariado, quando na realidade estave sempre restrito a uma cúpula cada vez menos numerosa do Partido, dentre muitos outros. Coisas que, em países um pouco mais desenvolvidos, já são obviedades desde a década de 40.
Não é o caso do Nova História Crítica, do Mario Schmidt, que tem gerado tanto estardalhaço desde a publicação do artigo de Ali Kamel n'O Globo (leia aqui o artigo com trechos do livro). Aqui a mistificação é escancarada. A impressão que dá é que o autor se sente protegido pela indiferença (e/ou burrice) de pais e educadores, a ponto de estar suficientemente confortável pra propugnar toda sorte de baboseira e mentira, como defender a revolução cultural chinesa, a ditadura de Fidel Castro ou alegar que não havia desigualdades sociais na URSS. Num país onde escolas 'elitizadas' e 'católicas' adotam livros mendazes e defasados em mais de meio século, não chega a admirar que o livro de Schmidt tenha chegado, via MEC, às mãos de 750 mil alunos da rede pública. É sempre necessário que surja um caso grotesco como esse para que a esquerdopatia do ensino brasileiro volte a ser comentada, como se a análise dos livros 'melhores' (como o de Vicentino) já não fosse suficiente. Muito merecidamente, o caso já teve repercussão internacional (veja aqui). Orgulho de ser brasileiro? Erm...
Ser considerado paranóico é a sina de quem quer que critique a universidade (ou o ensino em geral) brasileiro, principalmente na área de humanas, onde o desastre é consideravelmente maior. Na última vez em que caí na besteira de discutir com um universitário (ciências sociais) esquerdinha, perguntei se eles liam José Guilherme Merquior, um dos maiores cientistas políticos brasileiros e respeitado (depois que morreu, é claro) até pela própria esquerda. Descobri que liam, sim: um trecho de 50 páginas de De Praga a Paris, livro que, en passant, foi escrito em inglês porque não havia quem quisesse publicá-lo por aqui. Já vi outro livro seu, Michel Foucault (edição esgotada), em que mostra metodicamente a fraude que foi Foucault, sendo citado por Roger Kimball, mas nunca por um brasileiro. Já que somos todos paranóicos e confundimos bananeiras com agentes comunistas, o máximo que podemos fazer é procurar por indícios de doutrinação em exames de vestibular e análogos.
É o que tem feito um dos mais notórios paranóicos do jornalismo brasileiro, Reinaldo Azevedo. Recentemente, em seu blog (v. link ao lado), ele publicou uma pequena compilação de exemplos tirados das seguintes instituições: escolas públicas do Paraná, Enem (nacional), Universidade Federal do ABC, Universidade Federal de Pernambuco e Mackenzie, além da rede pública nacional (caso do livro de Schmidt). Não seria muito difícil multiplicar os exemplos. Na USP, Gilberto Freyre foi esquecido e Florestan Fernandes é estudado com afinco. Na UFG, Freyre também foi relegado ao ostracismo. No instituto de tecnologia onde estudo o departamento de humanidades recomenda textos de Florestan Fernandes, Milton Santos e Eric Hobsbawn, mas nada de Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Roberto da Matta.
Quando Monteiro Lobato deu o título Paranóia ou Mistificação a seu famoso artigo, havia a possibilidade de que o alvo de suas críticas fosse ambos, como de fato era. Enquanto o brasileiro só conseguir enxergar mistificação em exemplos caricatos como o livro de Schmidt, o senso comum estará fadado a ser confundido com paranóia.
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