23 maio, 2006

Uma Lúgubre Inciência

Plato thought nature but a spume that plays
Upon a paradigm of things.

- Yeats
De Praga a Paris é um "acerto de contas" de José Guilherme Merquior com o estruturalismo (e não uma biografia do Milan Kundera, como o bem-humorado autor faz questão de lembrar), movimento intelectual que se desenvolveu grandemente na França enquanto Merquior estudava lá (Collège de France, década de 60), sob a tutela de ninguém menos que o próprio Cl. Lévi-Strauss, hoje quase centenário. O brasileiro pretende assumir a postura de historiador das idéias, para quem o juízo de valor aparece apenas quando inevitável. Desde muito cedo, porém, Merquior parece profundamento incomodado com alguns aspectos do estruturalismo, mormente no campo da crítica literária (vide o ensaio Alguns problemas da crítica estruturalista, no volume A astúcia da mímese), de tal maneira que essa pretendida imparcialidade, felizmente para quem lê, tende a desaparecer. Isso é ainda mais verdadeiro quando se trata do pós-estruturalismo em geral e do desconstrucionismo (Derrida) em particular.

Com a didática que lhe é costumeira, Merquior põe-se a investigar as origens mesmas do movimento estruturalista, encontrando-as no círculo de Praga de 1930 (daí o título do livro), encabeçado principalmente por Roman Jakobson e Jan Murakovski, ou, antes, no próprio Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure. Para entender o porquê de o estruturalismo ter-se manifestado mais naturalmente no campo da linguística, basta ter em mente a noção de estrutura subjacente a todo o movimento:
Estrutura, no seu sentido matemático, significa um conjunto de relações abstratas definidas de modo formal e subentende um modelo válido para vários conteúdos diferentes, sendo estes ditos isomórficos exatamente porque compartilham a mesma estrutura.
Ora, desde já se percebe o perigo atrelado à tentativa de estender o estruturalismo às demais ciências naturais e humanas: o objetivo último é nada menos que o universal. Merquior mostra, intencionalmente ou não, que por mais ambiciosa que tenha sido a empreitada de cunho estrutural - seja na antropologia de Lévi-Strauss, na crítica de Roland Barthes ou na psicanálise de Jacques Lacan - seu valor cognitivo se apresenta muito mais como uma interpretação alternativa para o fenômeno humano que como uma rede-paradigma, passível de abarcar todo o observável e de prever todo o porvir.

A tara estruturalóide veio a comprometer a visão crítica do próprio Jakobson: em sua obra mais madura, mostra-se adepto do que chama "poesia da gramática", hipotése segundo a qual qualquer efeito poético pode (e deve) ser explicado em termos gramaticais, isto é, só se pode atingir o poético através de uma conjunção de fatores linguísticos - tempos verbais convenientemente escolhidos, determinada disposição de termos numa oração etc. Na verdade - diz Merquior e o senso comum -, um poema pode conter peculiaridades linguísticas que em nada contribuem para seu valor literário final, bem como destacar-se do ponto de visto literário sem que haja um mísero detalhe digno de nota em sua estrutura:
Do fato de que a literatura é feita de linguagem não se conclui que o significado literário (muito menos o valor) seja algo reduzível à linguagem. Meu carro é feito de metal, vidro e borracha; mas nunca passaria pela minha cabeça dizer que é "sobre" borracha, vidro ou metal; é "sobre" transporte.
Muito mais lamentável que esse reducionismo grosseiro é o desperdício de insights que poderiam ser dedicados a uma visão mais abrangente do fenômeno literário (como a de Murakivski). Afinal, uma coisa é certa: a defesa de uma hipotése tão estreita como a de Jakobson exige uma perspicácia e uma força criativa descomunais. Como nos sairíamos se tentássemos, em cada nuance de um texto, entrever suas supostas origens linguísticas? Como no caso de Levi-Strauss e Barthes, um talento fora do comum acaba levando o estudioso a lugares que o invidíduo ordinário evitaria com reverente desconfiança. A impressão que nos fica é que o movimento estruturalista foi conduzido por homens que não desconfiaram, ou não desconfiaram o bastante, de sua própria inteligência.

Se o primeiro passo para o recrudescimento da idéia estruturalista foi dado pelo círculo de Praga, coube ao francês Claude Lévi-Strauss introduzi-la no terreno da antropologia. Assim como entende Merquior, esse seria o estágio "responsável" do estruturalismo, e isso advém do fato de Lévi-Strauss parecer estar ciente, ele mesmo, das limitações da idéia estrutural. Apesar de nunca tê-lo dito explicitamente, o francês não se mostra particularmente refratário à argumentação de que, afinal, o estruturalismo não pôde alcançar tudo aquilo a que se propôs alcançar. Não obstante, seria absurdo supor que, frustradas as grandiloquentes metas iniciais, os estudos por ele realizados são desprovidos de qualquer valor epistemológico; muito pelo contrário: se não puderam elucidar o paradigma central (se é que ele existe) das relações humanas, nada impede que deixem entrever porções consideráveis dessa totalidade.

A passagem do estruturalismo para a crítica literária já não foi tão "responsável", tendência que veio a se agravar a partir da fase final da obra de Roland Barthes. Se o estudo desse último sobre a tragédia de Racine merece entusiásticos elogios de Merquior, o mesmo não se pode dizer de S/Z, estudo (de duzentas páginas) sobre uma novela de Balzac (Sarrasine, de trinta páginas), em que a extrapolação da idéia estruturalista parece bem visível. Lançando mão de uma terminologia no mínimo abstrusa, a obsessão com a idéia de uma estrutura normativa leva-o a interpretações no mínimo forçadas, como a de achar que um aspecto central da novela tem de, necessariamente, ecoar em todos os demais nichos narrativos. Se o personagem principal é homossexual, os filhos da empregada doméstica de seu vizinho também deverão ter uma relação ao menos dúbia com o homossexualismo. Esse encadeamento paradigmático de relações tolhe os personagens de maneira a evitar que eles sejam o que deveriam ser: seres humanos. A tendência estruturalóide em Barthes fica evidente a partir da inversão - que remonta à "poesia da gramática" de Jakobson - da clássica distinção feita por Saussure: para Barthes, a semiologia é um ramo da linguística, e não o contrário.

Não chega a surpreender que o estruturalismo tenha sido aceito com um incontido regozijo nos departamentos de Letras mundo afora: finalmente o estudioso da literatura poderia tratá-la com a autoridade cabível a um cientista. O estudo do texto pelo texto, ignorando solenemente o contexto histórico e cultural em que se encontra inscrito, aliado a um apelo tresloucado ao jargão indecifrável, relegou os não-especialistas à posição de meros espectadores, enquanto os gurus da nova ciência desfilavam com a empáfia incontestável do obscurantismo. Merquior cita uma pequena passagem de Lacan sobre a imagem no espelho:
O fato é que a forma total do corpo pela qual o sujeito antecipa numa miragem a maturação da sua força é dada a ele apenas enquanto Gestalt, ou seja, numa exterioridade na qual esta forma é certamente mais constituinte do que constituída, mas na qual ela lhe aparece acima de tudo num tamanho contrastante que a fixa e numa simetria que a inverte, em contraste com os movimentos turbulentos que o sujeito sente animá-lo.
Antecipo meus parabéns a quem conseguir entendê-la.

Finalmente, o desconstrucionismo de Jacques Derrida: sabemos que se trata de uma apostasia, mas não sabemos se se trata de um pós-estruturalismo ou de um antiestruturalismo. Há argumentos que defendam ambas as possibilidades, mas o certo é que, ao levar a independência do significante (proposta por Platão e ratificada por Saussure) ao infinito e além, Derrida decretou o que gostaríamos de chamar a anarquia do significante: inútil achar que podemos deduzir seu significado, seja qual for a circunstância textual. "A primeira coisa liberada pelo movimento da Liberação do Significante é o direito a um filosofar desvairado." Apesar de o desconstrucionismo advogar uma suposta 'reconstrução' do texto, ela em nada, ao que parece, alivia a impotência do leitor ou estudioso ante a irrevogável imperscrutabilidade dos signos. Restam-nos as imposições oraculares de um Derrida ou de um Foucault, mestres de uma ciência que, por ter abdicado qualquer resquício de rigor e de inteligibilidade, mereceu o nefando epíteto 'uma lúgubre inciência'.