Depois de assistir a três filmes do Hitchcock quase em sequência, preciso me desintoxicar um pouco falando deles:
1. Rope (Festim Diabólico) - 1948
Que eu tenha visto, esse é o único filme do Hitchcock em que se procura dar alguma justificativa ideológica ao assassinato. Os jovens Brendan e Philip (John Dall e Farley Granger), inspirados pelo velho professor Rupert Cadell (James Stewart), resolvem matar o colega David por se acreditarem intelectualmente superiores e, portanto, parte integrante do grupo seleto de luminares para quem o assassínio não é crime, mas um 'privilégio'. Pra se certificarem de sua inteligência superior, resolvem dar uma festa (os pais e a namorada de David são convidados) no apartamento onde o crime foi cometido -- o corpo se encontra no baú sobre o qual o jantar é servido. O pedantismo exultante de Brendan é de tal maneira pronunciado que Rubert começa a desconfiar, e as expressões faciais de Stewart, nesses momentos de desconfiança, são aproveitadas como de costume, numa espécie de dress rehearsal para o Rear Window de 1954. A reação de Rubert ao descobrir tudo é a do intelectual minimamente honesto que finalmente tem de enfrentar o horror de suas crias ideológicas: uma espécie de epifania que jamais aconteceria não fosse a insistência com que o mundo real interfere no mundo das idéias. É pena que, como sói acontecer, foi preciso que uma desgraça abrisse o caminho em direção à verdade.
2. Dial M For Murder (?) - 1954
Aqui já estamos de volta ao tipo de crime mais comum em Hitchcock: o passional. Como diria o Chief Inspector Hubbard (John Williams), may God protect us from the gifted amateur! Ao descobrir que sua mulher Margot (Grace Kelly) tinha encontros amorosos com Mark Halliday (Robert Cummings), Tony Wendice (Ray Milland) resolve arquitetar, com a ajuda -- forçada -- de seu ex-colega de faculdade Swann (Anthony Dawson), o 'assassinato perfeito'. Esse filme foi claramente ressuscitado no A Perfect Murder, versão moderninha com Michael Douglas e Gwyneth Paltrow. Diferentemente do personagem de Douglas, a engenhosidade de Wendice é tamanha que fica difícil não bancar o advogado do diabo, ainda que isso signifique sacrificar o pescocinho da Grace Kelly. Principalmente porque os assassinos de Hitchcock costumavam aceitar como verdadeiros gentlemen a derrota quando a percebiam inevitável: geralmente com um gole de uísque. Oferecendo um trago para os seus algozes, é claro.
3. Vertigo (Um Corpo que Cai) - 1958
Stewart (Det. 'Scottie' Ferguson) está de volta, dessa vez ao lado de Kim Novak (no papel da possuída Madeleine Elster), para interpretar um detetive com acrofobia graças a uma perseguição que acabou com um seu colega caindo de um prédio de vários andares. Scottie resolve se aposentar depois do acidente, mas um antigo conhecido (Gavin Elster, por Tom Helmore) lhe pede que siga sua esposa Madeleine em suas estranhas peregrinações. Segundo Gavin, Madeleine 'recebia' periodicamente o espírito de uma misteriosa tataravó que cometera suicídio ao ser abandonada pelo marido. Scottie, ora vejam, acaba se apaixonando por Madaleine, que em verdade não era Madaleine: Scottie se envolveu com uma moça fisicamente idêntica a ela, contratada por Gavin para que ele pudesse assassinar sua mulher e dar ao caso aparências de suicídio -- inclusive com o testemunho de Scottie, que não pôde subir a torre (de onde Madeleine teria se jogado, quando em realidade foi empurrada) em função de sua acrofobia. Após a morte de Madeleine, Scottie encontra casualmente Judy Barton, comparsa de Gavin e sósia da finada, a mulher que ele de fato tinha perseguido nos últimos dias. A temática de espelhos, já recorrente no filme, ganha um aspecto ao sinistro quando Scottie insiste em que Judy se vista exatamente como Madeleine. A obsessão de Scottie em recriar eventos chega a tal ponto que, ao descobrir tudo, força Judy a subir a mesma torre de onde Madeleine teria se jogado, apenas pra perceber, contra a própria vontade, que tudo se repetiria com perfeição: inclusive a queda. E o ciclo se fecha outra vez.
1. Rope (Festim Diabólico) - 1948
Que eu tenha visto, esse é o único filme do Hitchcock em que se procura dar alguma justificativa ideológica ao assassinato. Os jovens Brendan e Philip (John Dall e Farley Granger), inspirados pelo velho professor Rupert Cadell (James Stewart), resolvem matar o colega David por se acreditarem intelectualmente superiores e, portanto, parte integrante do grupo seleto de luminares para quem o assassínio não é crime, mas um 'privilégio'. Pra se certificarem de sua inteligência superior, resolvem dar uma festa (os pais e a namorada de David são convidados) no apartamento onde o crime foi cometido -- o corpo se encontra no baú sobre o qual o jantar é servido. O pedantismo exultante de Brendan é de tal maneira pronunciado que Rubert começa a desconfiar, e as expressões faciais de Stewart, nesses momentos de desconfiança, são aproveitadas como de costume, numa espécie de dress rehearsal para o Rear Window de 1954. A reação de Rubert ao descobrir tudo é a do intelectual minimamente honesto que finalmente tem de enfrentar o horror de suas crias ideológicas: uma espécie de epifania que jamais aconteceria não fosse a insistência com que o mundo real interfere no mundo das idéias. É pena que, como sói acontecer, foi preciso que uma desgraça abrisse o caminho em direção à verdade.
2. Dial M For Murder (?) - 1954
Aqui já estamos de volta ao tipo de crime mais comum em Hitchcock: o passional. Como diria o Chief Inspector Hubbard (John Williams), may God protect us from the gifted amateur! Ao descobrir que sua mulher Margot (Grace Kelly) tinha encontros amorosos com Mark Halliday (Robert Cummings), Tony Wendice (Ray Milland) resolve arquitetar, com a ajuda -- forçada -- de seu ex-colega de faculdade Swann (Anthony Dawson), o 'assassinato perfeito'. Esse filme foi claramente ressuscitado no A Perfect Murder, versão moderninha com Michael Douglas e Gwyneth Paltrow. Diferentemente do personagem de Douglas, a engenhosidade de Wendice é tamanha que fica difícil não bancar o advogado do diabo, ainda que isso signifique sacrificar o pescocinho da Grace Kelly. Principalmente porque os assassinos de Hitchcock costumavam aceitar como verdadeiros gentlemen a derrota quando a percebiam inevitável: geralmente com um gole de uísque. Oferecendo um trago para os seus algozes, é claro.
3. Vertigo (Um Corpo que Cai) - 1958
Stewart (Det. 'Scottie' Ferguson) está de volta, dessa vez ao lado de Kim Novak (no papel da possuída Madeleine Elster), para interpretar um detetive com acrofobia graças a uma perseguição que acabou com um seu colega caindo de um prédio de vários andares. Scottie resolve se aposentar depois do acidente, mas um antigo conhecido (Gavin Elster, por Tom Helmore) lhe pede que siga sua esposa Madeleine em suas estranhas peregrinações. Segundo Gavin, Madeleine 'recebia' periodicamente o espírito de uma misteriosa tataravó que cometera suicídio ao ser abandonada pelo marido. Scottie, ora vejam, acaba se apaixonando por Madaleine, que em verdade não era Madaleine: Scottie se envolveu com uma moça fisicamente idêntica a ela, contratada por Gavin para que ele pudesse assassinar sua mulher e dar ao caso aparências de suicídio -- inclusive com o testemunho de Scottie, que não pôde subir a torre (de onde Madeleine teria se jogado, quando em realidade foi empurrada) em função de sua acrofobia. Após a morte de Madeleine, Scottie encontra casualmente Judy Barton, comparsa de Gavin e sósia da finada, a mulher que ele de fato tinha perseguido nos últimos dias. A temática de espelhos, já recorrente no filme, ganha um aspecto ao sinistro quando Scottie insiste em que Judy se vista exatamente como Madeleine. A obsessão de Scottie em recriar eventos chega a tal ponto que, ao descobrir tudo, força Judy a subir a mesma torre de onde Madeleine teria se jogado, apenas pra perceber, contra a própria vontade, que tudo se repetiria com perfeição: inclusive a queda. E o ciclo se fecha outra vez.
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