18 outubro, 2007

O Neo-Iluminista Merquior

O entusiasmo com que se lê José Guilherme Merquior (1941-1991) pela primeira vez é bem compreensível entre nós: raramente encontramos, hoje, outros nomes que se aproximem dele em termos de honestidade intelectual, inteligência e erudição. Atualmente é lembrado como simples polemista ou como 'aquele sujeito que escrevia discursos para o Collor', como se o emprego de ghost-writers por parte de políticos fosse algo novo ou degradante.

Merquior combateu com a elegância e a paciência de sempre alguns dos maiores mitos do século 20: marxismo, freudismo e formalismo (tanto literário como filosófico), sendo este último um tema recorrente de seus derradeiros anos. Já falei aqui sobre o De Praga a Paris, de 1986, acerto de contas dele com os estruturalismos e pós-estruturalismos franceses. Como não poderia deixar de ser, foi devidamente perseguido por isso, e hoje vários de seus livros nem sequer são editados, obrigando o leitor interessado a peregrinações ao sebo mais próximo.

A evolução do pensamento de Merquior fica mais clara no volume Crítica, que reúne ensaios do período 1964-1989. Enquanto alguns ídolos da juventude são gradualmente superados (principalmente Heidegger e Lucáks), cresce, cada vez mais conspícua, uma fé um tanto ou quanto misteriosa no progresso e na primazia da razão. Merquior declara-se neo-iluminista e mal consegue disfarçar (se é que tenta disfarçar) a antipatia por poetas que, reconhecidamente grandes, nutrem uma visão pessimista da modernidade. E é assim que chega a considerar o 'reacionário' T. S. Eliot apenas um grande poeta menor.

Se me permitem alguns exercícios de psicologia barata, diria ser perfeitamente natural a crescente aversão de Merquior ao esoterismo tipicamente moderno. Além do formalismo estético, argumenta ele, esse esoterismo leva invariavelmente a uma condenação em bloco da sociedade tecno-liberal moderna. É esse modernismo que condena a priori a modernidade que irrita Merquior mais que qualquer outra coisa. Não surpreendentemente, afasta-se dos 'obscurantismos' da filosofia de Heidegger, da literatura 'abissal' de Joyce e do simbolismo de Mallarmé. Eu dizia que essa aversão é natural por Merquior ter convivido tão de perto, e por tanto tempo, com o estruturalismo francês da década de 60. Para alguém que leu tudo que há pra ler de Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard et caterva e ainda conseguiu escapar de uma congestão cerebral, é apenas lógico esperar uma extrema sensibilidade a charlatanices linguísticas e a irracionalismos cabeça-de-vento.

Ocorre que, ao denunciar mui devidamente esse irracioanlismo tresloucado, Merquior parte num átimo para uma defesa da razão iluminista como elemento restaurador. Além da palavra 'razão', 'progresso' é uma das que se repetem com mais insistência em seus ensaios. Não deixa de ser curioso que o implacável crítico do marxismo, o 'ópio dos intelectuais' nas palavras de seu professor e amigo Raymond Aron, se deixe levar por vaguidades como 'marcha da civilização' ou 'inexorável progresso histórico'. Em As Idéias e as Formas, lemos:
Esta delirante culpabilização da racionalidade científica e do progresso histórico -- que mal difere, queira ou não Adorno, dos anátemas oraculares do irracionalismo de direita, em Jung ou Heidegger, por exemplo -- aponta para uma curiosa patologia do humanismo. Entre a Renascença e a Ilustração, entre Leonardo e Goethe, o humanismo ocidental era, basicamente, inclusivo: uma ideologia que incorporava o progresso social e intelectual, a Reforma, a ciência, a revolução burguesa. Em constraste com isso, muito humanismo moderno se fez excludente: repele o mundo que o cerca, excomunga as massas e a civilização.
A acusação de humanismo excludente estaria perfeitamente justificada caso estivesse dirigida a sanguessugas da modernidade à Foucault, que se nutrem de seus mais caros pressupostos apenas para condená-la com um nojinho incontido. Merquior, porém, acaba se revelando um inveterado otimista, cético de qualquer crítica sistemática dirigida contra sua querida modernidade. O ceticismo propugnado por ele, indispensável até certo ponto, atinge um paroxismo que o impede de enxergar outra coisa senão negativismo no catolicismo (a religião positiva por excelência) de T. S. Eliot ou no 'reacionarismo' de Irving Babbitt. Aliás, qualquer consideração um pouco mais demorada sobre temas transcendentais corre o risco de receber a solene desaprovação racionalista de nosso neo-iluminista.

No fim das contas a impressão que temos é que -- apesar de ter lidado de frente, e denunciado com tanto brilhantismo, o que há de mais desprezível na intelectualidade ocidental moderna -- Merquior acreditava numa redenção iminente graças ao inevitável triunfo da razão humana. Em homenagem aos dez anos da morte de Merquior, seu amigo José Mário Pereira escreveu um emocionante depoimento (leia aqui) em que é citado um episódio que me parece emblemático da passagem de seu amigo por esse mundo:
Curiosamente, sempre que saíamos do escritório do advogado, então na Praça Pio X, Merquior pedia para irmos até a igreja da Candelária. Postava-se a admirar o interior, fazendo comentários estéticos, e nunca falava em religião ou fé.
Merquior entrou na Igreja e entendeu tudo o que lá havia para ser entendido, menos as questões relacionadas a religião ou fé. A fé dele, a fé no progresso, não permitiu que ele visse que a ameaça dos que querem destruir sua Igreja é real e premente.