24 fevereiro, 2007

Duas Histórias (1)

Inauguro com esse post um ramo do conhecimento chamado 'história comparada'. Se é mesmo verdade que, como Aristóteles dizia, 'História é o que o historiador faz', passemos a comparar duas delas: a primeira é de responsabilidade conjunta de Cláudio Vincentino e Gianpaolo Dorigo, autores do História Para o Ensino Médio - História Geral e do Brasil, que utilizei durante todo o ensino médio; a segunda é a de Paul Johnson, em seu Modern Times - The World From the Twenties to the Nineties. O primeiro tema escolhido é a Revolução Russa.

Na versão tupiniquim a mendacidade começa logo no primeiro parágrafo, num quadrinho chamado Para Pensar Historicamente:
Inicialmente comparada à Revolução Francesa, por caracterizar uma libertação do país dos grilhões absolutistas, adaptando-se às exigências sociais e políticas do século XX, a Revolução Russa, a nosso ver, não teve paralelo histórico. Diferentemente do que aconteceu na Revulução de 1789, não foi a burguesia russa que assumiu o poder. Foram os líderes do proletariado, que comandaram o processo revolucionário, forçando uma ruptura social e política inédita (...). A partir disso, podemos nos fazer algumas perguntas: a transformação revolucionária teria sido insuficiente? Permaneceram estruturas e comportamentos incompatíveis com os anseios revolucionários? O colapso da União Soviética teria decorrido do que foi feito ou do que deixou de ser feito durante o processo revolucionário?
Bom, não vou comentar o tom de melancolia contida, principalmente nas últimas três perguntas, com o fato de a Revolução não ter obtido sucesso a longo prazo. Cabe realmente saber se, como a dupla sugere, a Revolução teria 'adaptado' o país às 'exigências' sociais e políticas do século XX e se foram realmente os líderes do proletariado que comandaram o processo revolucionário. Em tempo: em se tratando de livros de história de ensino médio, revolução é sinônimo de adaptação (não pode haver adaptação que se dê por outros métodos), e as tais 'exigências', essas entidades quase sobrenaturais, provêm diretamente do determinismo histórico de Marx. Antes de tentar responder a essas perguntas, sigamos adiante com a versão brasileira.

Num trecho referente ao governo de Lenin, ficamos sabendo que
As mudanças nas estruturas tradicionais de poder, entretando, ativaram a oposição dos mencheviques e czaristas (que passaram a ser chamados de russos brancos). Apoiados pelas potências aliadas, receosas da propagação da revolução de caráter popular pelo mundo, as duas facções mergulharam o país numa sangrenta guerra civil (...).
Surgem, aqui, mais duas questões: a Revolução tinha mesmo caráter popular? E, mesmo que tivesse, foram os mencheviques e czaristas, essas duas facções malvadas, os responsáveis pela guerra civil sangrenta? Outro detalhe é que a polícia política revolucionária, a Tcheca, criada ainda sob os auspícios de Lenin, só vem a ser mencionada na seção referente a Stalin. Falando na seção de Stalin, a única imagem que o livro traz nessa parte é uma foto do metrô de Moscou, com a seguinte caption: "Foi durante o segundo plano quinquenal, que visava (sic) acelerar o desenvolvimento, que se construiu o metrô de Moscou."

Passemos para a versão de Johnson. Quanto às alegações de que a Revolução teve, desde o início, um caráter popular, Johnson observa sobre Lenin:
He had no real power-base in Russia. He had never sought to create one. He had concentrated exclusively on building up a small organization of intellectual and sub-intellectual desperadoes, which he could completely dominate. It had no following at all among the peasants. It had a few adherents among the unskilled workers. Lenin's intransigence had driven all the ablest socialists into the Menshevik camp.
O fato de Lenin, por puro oportunismo (já que não tinha apoio popular), ter criado o slogan 'todo poder aos sovietes' parece ter sido evidência suficiente, para a dupla brasileira, de que o proletariado de fato dirigiu o processo revolucionário. A realidade é que o processo de tomada de decisões, na medida em que isso ia se tornando possível, ficou a cargo de um reduzido grupo de desperadoes. A Revolução foi de fato levada a cabo por camponeses, que já eram em número de 103,2 milhões em 1913, contra no máximo 15 milhões de membros do 'proletariado' (na acepção mais larga do termo). A advertência de Engels segundo a qual a pior coisa que pode acontecer a um líder revolucionário é chegar ao poder quando as condições para a Revolução ainda não estão 'maduras' não parece ter diminuído a pressa de Lenin.

Resta saber de onde surgiu a violência. A dupla tupiniquim dá a entender que mencheviques e czaristas começaram a lambança, mas, para a nossa surpresa, o próprio Lenin parece discordar dessa visão:
Believing, as he did, that violence was an essential element in the Revolution, Lenin never quailed before the need to employ terror. From the French Revolution he could quote Robespierre: 'The attribute of popular government in revolution is at one and the same time virtue and terror, virtue without which terror is fatal, terror without which virtue is impotent. The terror is nothing but justice, prompt, severe, inflexible; it is thus an emanation of virtue.'
Por algum motivo que escapa ao nosso entendimento, Vicentino e Dorigo também se esquecem de mencionar os crimes praticados pela Tcheca, antes mesmo que Stalin chegasse ao poder. Os 'grilhões' absolutistas, por outro lado, são pintados com tintas macabras. Não se sabe o porquê, já que
The Tsar's secret police, the Okhrana, had numbered 15 000, which made it by far the largest body of its kind in the old world. By contrast, the Cheka, within three years of its establishment, had a strenght of 250 000 full-time agents. Its activities were on a correspondingly ample scale. While the last Tsars had executed an average of seventeen a year (for all crimes), by 1918-19 [ou seja, sob Lenin] the Cheka was averaging 1 000 executions a month for political offences alone.
Aqui termina o nosso primeiro exercício de 'história comparada'. Como diria o Cobrador de Rubem Fonseca: só rindo.