03 fevereiro, 2006

Tempos Modernos

O jovem hodierno, no afã de ter seu status social efetivamente ratificado como cool, procura ser, às vezes desesperadamente:

1. Ecologicamente Consciente: Engraçado como, num repente, tornou-se obrigatório gostar de animais, ainda que façamos questão de mantê-los a uma distância considerável. São todos muito bonitinhos; compramos coalas de pelúcia, tamanduás de pelúcia, ornitorrincos de pelúcia; assistimos à Marcha dos Pinguins... enfim, trata-se de verdadeira brutalidade não advogar sua causa, assim como é inconcebível não se divertir com um cachorro lambendo nossa cara, esse último método considerado por muitos o mais singelo dos despertadores. Surgem também os vegetarianos engajados (e há toda uma variedade deles, dependendo da ideologia), que nos olham com um ar de novidade estupefata quando pedimos um bife, como se comer peixe cru ou tomates secos fosse uma invenção muito mais antiga.

2. Extremamente Ocupado: Confesso que não conheço ninguém que não seja extremamente ocupado. Não que eu conheça muita gente, mas a variedade é considerável: estudantes (das mais diferentes estirpes), professores, administradores, voluntários de alguma ONG, advogados, arquitetos, cachaceiros, desempregados etc. Todos eles organizaram seus afazeres de tal maneira que não sobra tempo para nada e, o que é mais curioso, todos eles fazem questão que eu (e o mundo) saiba muito bem disso. Seja porque precisam responder aos seus scraps no Orkut ou porque se comprometeram a participar de uma passeata pela preservação das tartarugas marinhas, o tempo é sempre uma realidade opressora para essas pessoas. Isso tudo me leva à inescapável conclusão de que sou o sujeito mais desocupado desse mundo: nunca me falta tempo para fazer o que realmente quero e, se acontece de eu adiar algum compromisso importante, eu mesmo sou o primeiro a me convencer de que foi menos por falta de tempo que por preguiça ou por alguma lógica convenientemente engendrada para me levar à conclusão de que o adiamento era, afinal, a melhor opção.

3. Tolerante e Eclético: As duas coisas acabam por se confundir nesse contexto. Numa conversa minimamente séria, é dificílimo ouvir comentários do tipo "eu detesto isto ou aquilo" simplesmente porque uma pessoa séria não se deve deixar levar por impressões tão arrebatadoras. Hoje em dia tudo é aceitável e até potencialmente bom se nos conseguirmos despir, claro está, de preconceitos. Não gostou desse disco? Tente outro dia, provavelmente ainda não chegou sua hora: esse disco realmente pressupõe um estado de espírito bem peculiar. E aquele livro, diz-me você que é uma porcaria? Não, não, impossível: falta-lhe simplesmente uma maior identificação com o autor, o que, nem preciso dizer, não é culpa dele.

Vejamos o que José Guilherme Merquior tem a dizer sobre o assunto:
Mas a verdade é que, enquanto a tolerância frente à multiplicidade de posições e correntes ideológicas é um inestimável valor social, a indulgência indiscriminada face a teorias e interpretações é uma autêntica abdicação intelectual. [Tarefas da crítica liberal]
Nem é preciso dizer que essa tolerância desenfreada acaba por distorcer a própria crítica literária, e aqui, obviamente, não me refiro apenas aos jovens. A primeira consequência disso é o gradativo sumiço da crítica deliciosamente parcial (Impartiality is a pompous name for indifference, which is an elegant name for ignorance, no dizer de G. K. Chesterton), em que a intromissão de aspectos pessoais - a qual, se efetuada com o devido cuidado, só tende a enriquecer a crítica - ainda era lícita. O crítico genuinamente entusiasmado tornou-se, assim, uma espécie em extinção, e agonizará sozinho até que deixemos os golfinhos um pouco de lado. (Harold Bloom, quando fala em Shakespeare, é uma das poucas exceções que conheço.)

A segunda consequência, ainda mais desastrosa, é o nivelamento de opiniões de que fala Merquior no mesmo Tarefas da crítica liberal. Limito-me a citá-lo novamente porque não há nada a acrescentar:
O humanistazinho que vem nos dizer que a obra de Kafka é “polissêmica” e que, “portanto”, cada uma de suas contraditórias interpretações é “tão válida quanto a outra” não é um tolerante simpaticão – é um pobre de espírito ou um medroso mental, alguém incapaz de cumprir uma das mais nobres entre as aspirações humanas: a de procurar a verdade. Ninguém, é certo, pode ser legitimamente considerado “dono da verdade” – exceto a própria realidade, o princípio perfeitamente objetivo do conhecimento do real. Não levar isso em conta é confundir liberdade crítica com licença relativista. A obra de Kafka é sem dúvida polissêmica e até ambígua; mas seus níveis de sentido são suficientemente hierarquizados para que uns valham mais que os outros e algumas de suas “leituras” são, simplesmente, falsas – desmentidas pela verdade do texto e do seu contexto cultural. Portanto, todas as interpretações não se equivalem.