15 fevereiro, 2006

Huntington no Primeira Leitura

This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.

Fábio Santos, em textos de 6 e 8 de fevereiro, procura refutar a tese mais famosa do cientista político norte-americano Samuel P. Huntington, segundo a qual a fonte primordial de conflitos em potencial no mundo contemporâneo é de ordem cultural, ou, como ele procura definir, de ordem civilizacional. O problema da crítica de Santos parece residir numa interpretação demasiado literal da expressão clash of civilizations. Afirma ele que "A noção de uma guerra de civilizações, por outro lado, pode levar ao encastelamento das sociedades ocidentais — algo já perceptível em certas reações européias à agitação de imigrantes muçulmanos."

A noção de uma guerra de civilizações pode, sem dúvida, levar a essa noção de encastelamento, mas não é isso que Huntington sugere. O entendimento do termo choque não deveria ficar confinado ao campo bélico, de maneira que a presente polêmica das charges dinamarquesas já poderia ser encarada como uma espécie de choque. Huntington tampouco ignora que fundamentalismo não é regra no mundo islâmico (seria um erro grosseiro para alguém bem informado), antecipando, ele próprio, ainda que indiretamente, a sugestão de Fábio Santos: "A luta contra o fundamentalismo, como bem defendem os neoconservadores norte-americanos, deve ser uma batalha de valores levada para dentro das sociedades islâmicas e seus Estados nacionais."

O emprego dessa classificação civilizacional, leva, realmente, a certa confusão entre nação e civilização; trata-se do ônus da simplificação, previsto e discutido pelo próprio autor no início do livro. Outra consequência disso é insuflar "um certo 'sentimento cruzadista' — a noção de que há um 'nós' e um 'eles' inconciliáveis." Isso é bem verdade, mas não estaria esse sentimento cruzadista mais próximo da realidade do que Santos gostaria de acreditar? Obviamente, não podemos perder de vista a possibilidade de uma convivência pacífica, mas são copiosos os exemplos, muitos deles citados por Huntington, em que as diferenças culturais, se não levam a conflitos de fato, impedem qualquer aproximação, realçando a noção de "nós" e "eles". [Isso é particularmente perceptível nas relações com as nações asiáticas.] Não são poucos os americanos que, apesar de nunca terem tido contato direto com muçulmanos, fazem questão de manter a distância. Digo isso por experiência própria.

Engraçado como esse impressão vem ser confirmada, no dia 7, por um artigo do Reinaldo Azevedo: "Ocidentais não podem desenhar o profeta em terras islâmicas? Já começa a ser um problema também nosso, embora ninguém seja obrigado a viver sob um céu que não o proteja: melhor correr." Além disso, Fábio Santos parece querer diminuir a reação islâmica; com certeza, o mundo deles não está em chamas, como querem acreditar muito, mas, se apenas 200 participam de uma passeata, muitos outros aquiescem à violência de casa mesmo. Também não seria exagero presumir que muitos outros ainda, apesar de repudiarem a violência, acham que a falta dos jornais europeus foi mais grave que a depredação em massa. E isso é anadmissível para "nós".

Assim como Fábio Santos enfatiza o "choque" dentro da civilização islâmica, Reinaldo Azevedo teme o "choque" dentro da civilização ocidental, aludindo aos versos de T. S. Eliot com muita propriedade:
O choque é interno; está entre nós. Os que toleram a baderna islâmica e voltam a sua língua e a sua pena contra a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa estão promovendo a mais perigosa das guerras culturais: contra a democracia e seus valores. Os bárbaros já chegaram. Estão no poder. Estão na mídia e na academia dizendo que a civilização que construímos não presta. Preferem flertar com a ditadura islâmica em nome da tolerância. Morremos. Sem estrondo, com suspiros de multiculturalismo banal e conformista.
E não será significativo que Huntington tenha reservado uma seção do último capítulo de seu livro (que não cito por ter esquecido meu exemplar em São Paulo) à descaracterização, de origens internas, dos Estados Unidos? Insiste ele no perigo que os famigerados multiculturalistas ou "orientalistas" representam para a preservação de valores tipicamente ocidentais, os quais correm o risco de ser solapados por essa tolerância descaradamente suicida. Achar que Huntington ignora isso é simplificar a simplificação.