24 fevereiro, 2006

A Cidade de Lewis Mumford

Não é por acaso, pois, que mais de uma cidade histórica alcançou seu ponto culminante no diálogo que resume sua experiência total da vida. No Livro de Jó, vê-se Jerusalém; em Platão, Sófocles e Eurípedes, Atenas; em Shakespeare e Marlowe, Dekker e Webster, a Londres elisabetana. Num sentido, o diálogo dramático é, ao mesmo tempo, o símbolo mais pleno e a justificação final da vida na cidade. Pela mesma razão, o símbolo mais relevante do fracasso da cidade, na sua própria inexistência como personalidade social, é a ausência do diálogo - não necessariamente o silêncio, mas igualmente o som ruidoso de um coro que pronuncia as mesmas palavras, num conformismo acuado embora complacente. O silêncio de uma cidade morta tem mais dignidade que os vocalismos de uma comunidade que não conhece nem o retiro nem a oposição dialética, nem a observação irônica nem a disparidade estimulante, nem um conflito inteligente nem uma resolução moral ativa. Semelhante drama está destinado a ter um fatal último ato.
Essa me parece ser a caracterização de cidade mais interessante dentre as muitas propostas por Lewis Mumford em seu The City in History: Its Origins, Its Transformations and Its Prospects [Edição brasileira da Martins Fontes, A Cidade na História, traduzida por Neil R. da Silva], livro de 1961. A imagem de um drama urbano vem por acasião da descrição da cidade antiga, mais precisamente da pólis grega, na qual, segundo argumenta Mumford, o ideal da cidade teria se desenvolvido grandemente, a despeito de suas falhas.

Se nas primeiras páginas Mumford se dedica a tentar esclarecer os processos orgânicos que teriam dado origem à cidade primitiva (e, nesse sentido, opõe-se a algumas idéias falaciosas, como a de que a guerra é tão antiga quanto qualquer ajuntamento humano), é só a partir da discussão da antiguidade oriental, e, principalmente, da pólis grega, que ele começa a delinear seu modelo de cidade ideal. Da pólis grega (refere-se principalmente a Atenas), absorve a noção do cidadão ciente de sua invididualidade e que, por isso mesmo, é capaz de "dialogar" e tomar parte na "oposição dialética" da vida urbana; um avanço radical, portanto, em relação à massa amorfa de trabalhadores egípcios ou mesopotâmicos, submetidos aos desvarios de um monarca convenientemente deificado. Também chama a atenção para a necessidade de limitar o crescimento urbano, de vez que essa hipertrofia ameaça sacrificar a própria função da cidade: o intercâmbio social, assim como a manutenção (e, preferivelmente, a ampliação) do legado cultural herdado.

Desse pequeno sumário já se percebe que uma crítica às idéias de Platão concernentes à cidade estava por vir. O pensador ateniense, ao sugerir que a cidade fosse dividida em três partes (os governantes, representados por sábios e filósofos que teriam bastante tempo livre para exercer suas funções eminentemente intelectuais; os soldados, que cuidariam da defesa da cidade; e os trabalhadores rurais, responsáveis pela alimentação de toda a população) excluiu a possibilidade de um ambiente que foi responsável pelo surgimento de cidadãos como ele próprio. Uma comunidade assim petrificada, em que cada componente deve limitar-se a fazer, durante toda sua existência, apenas aquilo a que foi designado ao nascer, representa realmente um empecilho à criatividade e ao dinamismo social. Ademais - e essa é uma observação de Aristóteles, seu discípulo -, seria necessário um território do tamanho de Alexandria para que um terço da população pudesse alimentar a si próprio e aos dois terços restantes. Vale lembrar que, apesar das muitas objeções, Mumford reconhece na cidade teórica de Platão (mais tarde refinada por Aristóteles) alguns dos aspectos quintessenciais ao desenvolvimento sadio do tecido urbano: o deliberado controle do crescimento e a implementação, ainda que incipiente, de medidas sanitárias.

O reductio ad absurdum dos erros gregos referentes ao planejamento de um crescimento ordenado será perpetrado pelos romanos, representados pela capital Roma. Aqui, a primeira impressão que se tem (e já li esse comentário pela Internet) é que Mumford é um verdadeiro detrator da civilização romana. Em verdade, se tomarmos o cuidado de limitar essa detração ao âmbito físico do desenvolvimento citadino, ele não deixa de sê-lo. É em Roma que vemos florescer os aspectos que, segundo parece, mais contrariam a idéia que Mumford faz de um ambiente urbano harmonioso. Em páginas cuja severidade das críticas só será igualada na descrição da cidade industrial moderna, Mumford promove um verdadeiro desfile das aberrações testemunhadas pelos habitantes menos privilegiados de Roma. Numa época em que as instalações sanitárias raramente chegavam ao segundo andar das edificações, a paisagem urbana era invariavelmente infestada por excrementos jogados a esmo, além de toda sorte de lixo, até que alguém se desse ao trabalho de recolher toda a porcaria para utilizar como fertilizante no campo. Os corpos dos mortos eram jogados em valas, abertas de improviso (e dificilmente fechadas) paralelamente às ruas, por falta de, vejam só, espaço. Os conjuntos habitacionais, apinhados e pessimamente construídos - desabamentos não eram incomuns -, representavam risco de vida constante aos que não tinham mais onde morar.

Semelhante drama, pelo menos para Roma, esteve de fato destinado a um fatal último ato, como bem sabemos. Não deixa de ser curioso que o crescente temor gerado pelas muitas invasões do período tenha gerado um meio, posto que artificial, de impedir o crescimento desenfreado das cidades: a muralha. A cidade medievel é cercada por uma quantidade tão vasta de falsas impressões (propugnadas levianamento pelos que vieram depois) que, mesmo com algum conhecimento prévio, não há como não considerar essa seção a mais impressionante de todo o livro. Mumford não só desmente o grosso dessas impressões; frequentemente aponta um caminho diametralmente oposto, a começar pelo próprio advento do ajuntamento urbano medieval:
A necessidade política de se criarem cidades surgiu primeiro que a necessidade econômica. Nos humildes começos das novas cidades da Idade Média, as considerações de ordem militar sempre foram capitais. Um governante (...) construía rudes fortalezas e estimulava seus súditos a nelas residirem, para que pudessem assumir a responsabilidade da sua defesa permanente.
Esse núcleo urbano inicial se desenvolveria razoavelmente bem antes mesmo que as novas necessidades econômicas impulsionassem a 'revolução' urbana e comercial do século XI. Mumford destaca ainda o papel das guildas (que mais tarde dariam origem às universidades) na manutenção de um ambiente humano afeito às interações sociais indispensáveis a qualquer cidade. Até mesmo as renitentes acusações referentes à higiene medieval são postas em perspectiva:
Acentuo a persistência rural na cidade medieval por causa da falsa imagem contrária que por muito tempo se impôs como uma idéia fixa, quase por demais firmemente irracional para ser removida pela apresentação da prova real. As pessoas ainda confundem a decadência cumulativa, que preencheu os espaços verdes, com a estrutura original, que era aberta e sólida. Enquanto esses espaços abertos permaneceram, os rudes dispositivos sanitários da pequena cidade medieval não foram necessariamente tão ofensivos quanto eram pintados. Queixas como as feitas pelos Frades Predicantes, em Beziers, 1345, por causa dos maus odores saídos de um curtume, dificilmente teriam sido feitas se os maus odores fossem constantes universais.
Em tempo: Mumford se revela, realmente, um grande defensor da cidade medieval, principalmente quando esta é contrastada com a que se lhe seguiu. Afirma que "As contradições da vida medieval eram de menor importância, comparadas com aquelas que encerramos em nosso próprio peito." A importância de um contato mais direto com o meio rural e da existência de amplos espaços abertos para jardins e parques vai ser enfatizada à exaustão até o fim do livro. Os capítulos seguintes, que tratam das cidades modernas (a Coketown - termo cunhado por Charles Dickens em seu Hard Times - ou cidade industrial dos séculos XVII e XVIII e a Megalópolis dos séculos XIX e XX) chegam a ser tediosos. As repreensões, sempre inexoráveis, se estendem por mais de cem páginas, e não chega a ser surpreendente que se compare essa parte do livro ao The Condition of the Working Class in England, de Engels; de fato, Mumford não é menos obstinado que o alemão.

Essas críticas são não raro tidas como exageradas e infundadas; Mumford não se abstém de usar termos como "caos padronizado", "devastação urbana", "devoradores de espaço" ou "galinheiro" para se referir à cidade e a seus componentes, mas convém indagar se já não estaríamos por demais habituados ao tal caos padronizado para realmente perceber a realidade dessas advertências. Basta perceber que não nos incomoda tanto permanecer horas consecutivas em ambientes fechados, iluminados artificialmente, nem tampouco o barulho ensurdecedor das cidades ou até mesmo de shopping centers (ou de algumas bibliotecas). A verdade é que Mumford escreve terrivelmente bem - impressão que persiste mesmo no texto traduzido -, e sabe usar essa habilidade para pintar um quadro sinistro do mundo contemporâneo, valendo-se inclusive das contribuições de Huxley e Orwell. Diz ele do homem "pós-histórico":
Uma das antigas prerrogativas dos deuses era criar o homem da sua própria carne, como Atum, ou à sua própria imagem, como Javé. Quando o clero científico acreditado for um pouco mais além, com as suas atividades atuais, o novo homúnculo em tamanho natural também será processado: já se podem ver modelos antecipatórios em nossas galerias de arte. Parecerá ele admiravelmente semelhante a um homem ataviado num "traje espacial": externamente, um enorme inseto cheio de escamas. Mas a face interior será incapaz de expressão, tão incapaz como a de um cadáver: e quem saberá perceber a diferença?
O que não significa que não admita a possibilidade de melhoras. Mumford aponta as Cidades-Jardim de Ebenezer Howard (cidades de tamanho limitado, cercadas por um cinturão verde e com zoneamento cuidadosamente planejado, mantendo estreito contato com as áreas rurais adjacentes) como um modelo a ser seguido. O sucesso dessas cidades na europa atestam a sua factibilidade. Vale lembrar, também, que as críticas de Mumford não são digiridas ao capitalismo em particular: os processos destrutivos da cidade, acredita ele, são inerentes à própria cidade, e não à ideologia que a governa.

Ao final da leitura, tem-se a impressão de que, pelo menos para Lewis Mumford, o conselho de Cândido - "devemos cultivar nosso jardim" - não é tão metafórico assim.