18 janeiro, 2007

A Origem da Tragédia Berliniana

No ensaio que abre o volume The Proper Study of Mankind, intitulado The Pursuit of the Ideal, Isaiah Berlin (1909-1997) declara que
At a certain stage in my reading, I naturally met with the principal works of Machiavelli. They made a deep and lasting impression upon me, and shook my earlier faith. I derived from them not the most obvious teachings - on how to acquire and retain political power (...) - but something else.
Que outros ensinamentos não tão óbvios seriam esses? A que exatamente ele se refere com earlier faith? A resposta será dada com mais detalhes no ensaio The Originality of Machiavelli, em que Berlin chama nossa atenção para a distinção básica proposta por Maquiavel, a distinção entre o tipo romano e o tipo cristão. Maquiavel desde sempre deixa claro que prefere um Estado nos moldes da República Romana ou do início do Império, e não vê como virtudes tipicamente cristãs - humildade, aceitação do sofrimento, esperança de uma vida eterna após a morte - possam levar o homem a esse ideal. A despeito do grande desacordo existente entre os comentadores do pensador florentino, parece existir um consenso quanto a esse ponto em específico: Maquiavel em nenhum momento tenta nos convencer de que valores cristãos são 'inferiores' ou de qualquer maneira repreensíveis a priori (apesar de ele ainda ser tido por muitos como um anti-cristão exacerbado); apenas acredita que eles são incompatíveis com uma determinada organização social, uma organização (forte e estável) que ele deseja e acredita ser possível ver reestabelecida entre os seus.

Berlin não demora a apontar o caráter revolucionário dessa suposta incompatibilidade: desde (pelo menos) Platão estávamos - e de certa maneira estamos até hoje - acostumados a pensar em termos de um ideal único, um fim glorioso em que culminaria toda cogitação verdadeiramente 'inteligente' ou 'lógica' ou 'racional'. Admite-se inclusive a possibilidade de que não é dado ao ser humano alcançar esse fim, mas isso não implica sua não-existência. Voltaire afirma que o governo ideal será divisado univocamente por quem quer que se dê ao trabalho de analisar a questão com suficiente cuidado e racionalidade (o seu famoso bom senso), e Comte se pergunta por que deveríamos aceitar dissidências (ou heresias) em questões políticas se não as aceitamos na Física ou na Matemática. Temos aí a origem da tragédia berliniana: Maquiavel parte a rocha da conhecimento, inicialmente maciça e aparentemente indestrutível, em dois pedaços mutuamente incompatíveis:
If what Machiavelli believed is true, this undermines one major assumption of Western thought: namely that somewhere in the past of the future, in this world or the next, in the church or the laboratory, in the speculations of the metaphysician or the findings of the social scientist, or in the uncorrupted heart of the simple good man, there is to be found the final solution of the question of how men should live. If this is false, the idea of the sole true, objective, universal human ideal crumbles. The very search for it becomes not merely Utopian in practice, but conceptually incoherent.
Cada metade da rocha deu origem a muitas outras, obviamente menores e ainda mais diferentes entre si - mas esse, é claro, não foi um passo empreendido por Maquiavel. É ao comentar a obra do alemão Johann Herder (1744-1803), no Herder and the Enlightenment, que Berlin fala pela primeira vez em pluralismo. Uma consequência de ordem prática desse pluralismo é que, se reconhecemos que não há somente um objetivo final legítimo, há uma brutal divisão de esforços. É natural supor dedicação exclusiva e inquebrantável a um ideal que sabemos verdadeiro e único: por ele sacrificaríamos até nossas próprias vidas. Mas eis que Berlin (ou, antes dele, Giambattista Vico e Johann Herder) distingue uma profusão de alternativas igualmente plausíveis e que não raro são tragicamente incompatíveis entre si. O próprio John Stuart Mill admitia que devemos restringir a liberdade individual dos cidadãos (através das leis) para que não descambemos numa sociedade incapaz de garantir qualquer liberdade, por mais sufocada que seja. Troca-se um pouco de liberdade pela possibilidade de viver pacificamente em sociedade, e o nobre ideal de liberdade nem por isso passa a ser menos nobre.

Em vez de esforço exclusivo na perseguição de um único fim, o que Herder propõe é a existência de perspectivas culturais incomensuráveis. Incomensuráveis, mas não imperscrutáveis, e é exatamente nesse particular que Vico, Herder e Berlin se distanciam do relativismo (tal como o termo é empregado hoje em dia). A esse respeito Berlin não poderia mais claro:
'I prefer coffee, you prefer champagne. We have different tastes. There is no more to be said.' That is relativism. But Herder's view, and Vico's, is not that: it is what I should describe as pluralism - that is, the conception that there are many different ends that men may seek and still be fully rational, fully men, capable of understanding each other and sympathising and deriving light from each other, as we derive it from reading Plato or the novels of medieval Japan - worlds, outlooks, very remote from our own.
O esforço não é mais exclusivo, mas de maneira alguma diminui: muito pelo contrário, sabemos por experiência própria que poucas coisas são mais difíceis que penetrar os recessos mais íntimos de qualquer cultura que nos seja distante. Se queremos compreender o povo egípcio, os costumes egípcios ou a arte egípcia, precisamos primeiro entender - ainda que superficialmente, e ainda que ela nos pareça, hoje, particularmente repulsiva - a mentalidade egípcia como um todo. A tragédia berliniana não se cansa de refrescar nossa memória quanto às dificuldades inerentes a esse processo, mas, diferentemente do relativismo ou do multiculturalismo, ao menos admite a possibilidade de persegui-lo com um mínimo de sucesso. Acusar Berlin de relativismo (algo longe de ser incomum) não é, então, apenas uma falha circunstancial: trata-se de negar o fundamento mais básico da doutrina pela qual ele é mais conhecido. Se somos capazes de entender e derive light de culturas tão diferentes da nossa é porque há algo em comum entre todas elas. De fato, ainda somos todos humanos.