Comecei a falar do Copleston num outro post e a coisa acabou se transformando num texto sobre o debate com o Russell. Minha intenção original era escrever sobre o livro dele (o primeiro de 9 volumes, cada um deles com umas 500 páginas), A History of Philosophy. Parece existir um consenso no sentido de considerar essa obra a melhor história da filosofia escrita em inglês. Copleston justifica a existência de 'mais uma' história da filosofia ao direcionar seu livro a seminaristas católicos, o que necessariamente implica um ponto de vista, digamos, não destrutivo em relação à filosofia antiga e principalmente em relação à medieval. Como não poderia deixar de ser, Copleston também se queixa do desprezo com que é tratado hoje o legado medieval. É aquela mania que, nas palavras de Mario Ferreira dos Santos, os franceses têm de saltar de Aristóteles a Descartes, os italianos de Aristóteles a Campanella e os alemães de Aristóteles a Kant, levantando problemas já resolvidos com séculos de antecedência.
Mas a nossa preocupação, pelo menos por enquanto, é com a filosofia antiga (de Tales a Plotino), tema desse primeito volume. Um dos aspectos mais perturbadores do período envolve, claro está, seus dois maiores nomes: Platão e Aristóteles. O afresco de Rafael que vai acima -- com Platão, à esquerda, apontando para o alto (supostamente para o mundo das Formas ou Idéias), e Aristóteles para baixo, ressaltando o caráter empírico das coisas --, apesar de coerente, parece ter gerado muita confusão com o tempo. Copleston repete com insistência que, nada obstante as muitas divergências entre ambos, não há discordância quanto a qual seria o verdadeiro objeto da filosofia: a realidade metafísica, transcendente do mundo, em oposição à mera percepção sensorial.
Assim como é comum exagerarem a enfâse que Aristóteles dá ao empírico, exagera-se também o idealismo de Platão, a ponto de hoje sua filosofia ser considerada 'abstrata' e 'distante' demais, como se o sujeito só vivesse no mundo das nuvens. Inclusive procuram justificar essa idéia com a biografia dele: Platão teria se desiludido com a vida política em geral e com a democracia ateniense em particular quando seu mestre Sócrates foi condenado à morte e se tornou um recluso dado a abstrações fantásticas. Daí que muitos interpretem a imagem acima como se Platão estivesse sugerindo, antes de mais nada, um conhecimento das Formas (modelos ideais) para que só depois esse conhecimento pudesse ser aplicado à vida prática. Por exemplo, se queremos uma constituição justa para o Brasil, precisaríamos primeiro conhecer os ideais de Justiça, Coerência, Plausibilidade etc. em sua forma límpida para só depois começar a escrever. Ora, essa interpretação pressupõe que todo legislador é nada menos que Deus: só Deus teria conhecimento suficiente das Formas pra poder tomá-las como ponto de partida. O homem deve partir de manifestações mais palpáveis (e.g., estudar o exemplo de boas constituições, entender por que outras tantas foram um fracasso) e a partir daí seguir numa via ascensional que com muito custo o levaria às Formas propriamente ditas.
A maior objeção de Aristóteles à teoria das Formas é a seperação que Platão impôs entre elas e as coisas sensíveis. Se é verdade que uma constituição é tanto melhor quanto mais se aproximar do modelo de Justiça, como podem constituição e Justiça existir separadamente? Que espécie de interação existe entre elas? Qual a relação entre as Formas e o mundo sensível em geral, qual a relação das Formas entre si? Platão parece ter se debatido com esse problema (a lacuna entre o mundo das idéias e o mundo sensível) até a morte, sem solução explícita. Não ajuda muito o fato de só terem sobrevivido seus diálogos (obras populares de divulgação); todas as transcrições de suas aulas na Academia, onde se supõe que haveria um tratamento mais sistemático desses problemas, foram perdidas. De qualquer maneira Aristóteles, que foi seu aluno na Academia durantes muitos anos, conheceria eventuais soluções platônicas caso elas existissem. Muito pelo contrário, Aristóteles não só aponta esse problema como pinta a filosofia platônica em geral com traços bem grosseiros. Copleston reconhece como válida a crítica central de Aristóteles (o problema da lacuna), mas observa que muitas outras objeções são frutos de uma incompreensão (intencional ou não) do Estagirita.
Por exemplo, Aristóteles não tinha como não saber que o próprio Platão estava ciente dessa deficiência. Tentou resolvê-la, n'O Banquete, dando a entender que as Formas seriam Idéias de Deus, cuja relação com o mundo sensível se daria através da 'imitação' ou da 'participação', apesar de os termos não serem elaborados com mais rigor. Já no Timeu lemos que as Idéias existem independentemente, antes mesmo da criação do mundo, e que o Demiurgo as teria utilizado como modelo para criar as coisas sensíveis. Aristóteles parece tão entusiasmado com a sua solução para o problema (a idéia da imanência) que acaba sendo injusto com os ensinamentos do mestre. Vejam esse exemplo. Aristóteles diz:
Mas a nossa preocupação, pelo menos por enquanto, é com a filosofia antiga (de Tales a Plotino), tema desse primeito volume. Um dos aspectos mais perturbadores do período envolve, claro está, seus dois maiores nomes: Platão e Aristóteles. O afresco de Rafael que vai acima -- com Platão, à esquerda, apontando para o alto (supostamente para o mundo das Formas ou Idéias), e Aristóteles para baixo, ressaltando o caráter empírico das coisas --, apesar de coerente, parece ter gerado muita confusão com o tempo. Copleston repete com insistência que, nada obstante as muitas divergências entre ambos, não há discordância quanto a qual seria o verdadeiro objeto da filosofia: a realidade metafísica, transcendente do mundo, em oposição à mera percepção sensorial.
Assim como é comum exagerarem a enfâse que Aristóteles dá ao empírico, exagera-se também o idealismo de Platão, a ponto de hoje sua filosofia ser considerada 'abstrata' e 'distante' demais, como se o sujeito só vivesse no mundo das nuvens. Inclusive procuram justificar essa idéia com a biografia dele: Platão teria se desiludido com a vida política em geral e com a democracia ateniense em particular quando seu mestre Sócrates foi condenado à morte e se tornou um recluso dado a abstrações fantásticas. Daí que muitos interpretem a imagem acima como se Platão estivesse sugerindo, antes de mais nada, um conhecimento das Formas (modelos ideais) para que só depois esse conhecimento pudesse ser aplicado à vida prática. Por exemplo, se queremos uma constituição justa para o Brasil, precisaríamos primeiro conhecer os ideais de Justiça, Coerência, Plausibilidade etc. em sua forma límpida para só depois começar a escrever. Ora, essa interpretação pressupõe que todo legislador é nada menos que Deus: só Deus teria conhecimento suficiente das Formas pra poder tomá-las como ponto de partida. O homem deve partir de manifestações mais palpáveis (e.g., estudar o exemplo de boas constituições, entender por que outras tantas foram um fracasso) e a partir daí seguir numa via ascensional que com muito custo o levaria às Formas propriamente ditas.
A maior objeção de Aristóteles à teoria das Formas é a seperação que Platão impôs entre elas e as coisas sensíveis. Se é verdade que uma constituição é tanto melhor quanto mais se aproximar do modelo de Justiça, como podem constituição e Justiça existir separadamente? Que espécie de interação existe entre elas? Qual a relação entre as Formas e o mundo sensível em geral, qual a relação das Formas entre si? Platão parece ter se debatido com esse problema (a lacuna entre o mundo das idéias e o mundo sensível) até a morte, sem solução explícita. Não ajuda muito o fato de só terem sobrevivido seus diálogos (obras populares de divulgação); todas as transcrições de suas aulas na Academia, onde se supõe que haveria um tratamento mais sistemático desses problemas, foram perdidas. De qualquer maneira Aristóteles, que foi seu aluno na Academia durantes muitos anos, conheceria eventuais soluções platônicas caso elas existissem. Muito pelo contrário, Aristóteles não só aponta esse problema como pinta a filosofia platônica em geral com traços bem grosseiros. Copleston reconhece como válida a crítica central de Aristóteles (o problema da lacuna), mas observa que muitas outras objeções são frutos de uma incompreensão (intencional ou não) do Estagirita.
Por exemplo, Aristóteles não tinha como não saber que o próprio Platão estava ciente dessa deficiência. Tentou resolvê-la, n'O Banquete, dando a entender que as Formas seriam Idéias de Deus, cuja relação com o mundo sensível se daria através da 'imitação' ou da 'participação', apesar de os termos não serem elaborados com mais rigor. Já no Timeu lemos que as Idéias existem independentemente, antes mesmo da criação do mundo, e que o Demiurgo as teria utilizado como modelo para criar as coisas sensíveis. Aristóteles parece tão entusiasmado com a sua solução para o problema (a idéia da imanência) que acaba sendo injusto com os ensinamentos do mestre. Vejam esse exemplo. Aristóteles diz:
The Forms are supposed to explain sensible objects. But they will themselves be sensible: the Ideal Man, for instance, will be sensible, like Socrates. The Forms will resemble the anthropomorphic gods: the latter were only eternal men, and so the Forms are only "eternal sensibles".Copleston comenta:
This is not a very telling criticism. If the Ideal Man is conceived as being a replica of concrete man on the ideal plane, in the common sense of the word "ideal", as being actual man raised to the highest pitch of development, then of course Ideal Man will be sensible. But is it at all likely that Plato himself meant anything of this kind? Even if he may have implied this by the phrases he used on certain occasions, such an extravagant notion is by no means essential to the Platonic theory of Forms. The Forms are subsistent concepts or Ideal Types, and so the subsistent concept of Man will contain the idea of corporeality, for instance, but there is no reason why it should itself be corporeal: in fact, corporeality and sensibility are ex hypothesi excluded when it is postulated that the Ideal Man means an Idea.A primeira pergunta a ser feita é: como um gênio do porte de Aristóteles incorreria numa incompreensão tão primária? Pode-se argumentar que a noção de Formas separadas dos objetos sensíveis é tão estranha ao sistema aristotélico, segundo o qual as formas são a essência imanente das coisas (e por isso estão diretamente atreladas a elas), que esse tipo de erro seguiria por tabela. Mas seria de uma ingenuidade monstruosa supor que Aristóteles não compreendia bem a filosofia de Platão; como poderia ele ter adaptado e desenvolvido diversos pontos da herança platônica se não a tivesse compreendido pelo menos superficialmente? Parece mais razoável supor que Aristóteles, convencido de determinadas insuficiências da teoria das Formas, resolveu exagerar e/ou simplificar alguns pontos com fins polêmicos ou didáticos. Assim como dificilmente escapamos à tentação de expor uma teoria que sabemos falsa com traços mais grosseiros que o que seria aconselhável, assim pareceu lícito a Aristóteles extrapolar, às vezes indevidamente, alguns aspectos da teoria em questão. Muito mais importante é o comentário que ele faz sobre a separação entre Idéias e objetos:
It must be held to be impossible that the substance, and that of which it is the substance, should exist apart; how therefore, can the Ideas, being the substance of things, exist apart? The Forms contain the essence and inner reality of sensible objects; but how can objects which exist apart from sensibles contain the essence of those sensibles? In any case, what is the relation between them? Plato tries to explain the relation by the use of terms such as "participation" and "imitation", but Aristotle retorts that "to say that they (i.e. sensible things) are patterns and the other things share in them, is to use empty words and poetical metaphors.Aqui a crítica parece ser válida, mas Aristóteles ainda dá a entender que as Idéias são entidades dotadas de existência física, sensível, como que para deixar patente o absurdo da teoria. Ocorre que a 'separação' platônica poderia muito bem significar uma espécie de independência (em oposição a uma separação meramente espacial) e, se é verdade que ainda resta a Platão explicar a relação entre Idéias e objetos, também é verdade que Aristóteles, ao rejeitar completamente o 'exemplarismo' platônico, fica impedido de fornecer qualquer matriz transcendental que justifique a fixidez das essências. A síntese do que há de válido em Platão e Aristóteles só veio muito mais tarde, com os filósofos cristãos. Antes, é sempre bom lembrar, de Descartes, Campanella, Kant...
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