09 agosto, 2007

Copleston vs. Russell

Sempre que me perguntam por que acho que Bertrand Russell (1872-1970), fora do campo da lógica, não foi muito mais que um grande palpiteiro, mando o link de um debate dele com o padre jesuíta Frederick Copleston (1907-1994), transmitido em 1948 pela rádio BBC de Londres. Leiam aqui. Apesar de o Russell levar uma surra do começo ao fim do debate, aqueles poucos conhecidos meus que tiveram paciência de lê-lo inteiro chegaram à conclusão de que o Russell se saiu bem, ou que houve uma espécie de 'empate'. Suponho que a educação quase irritante do bom padre explique, pelo menos em parte, esse fenômeno, como quando ele diz haver um 'impasse' sempre que Russell resolve fugir vexaminosamente da discussão. Complementa a explicação o fato de o agnosticismo intelectual do Russell ser regra quase geral hoje em dia.

O debate começa com a exposição do argumento da contingência de Leibniz como prova metafísica da existência de Deus (é sempre necessário agregar 'metafísica' ou 'filosófica' ao termo 'prova', sob pena de nos exigerem uma fotografia do dito-cujo):
First of all, I should say, we know that there are at least some beings in the world which do not contain in themselves the reason for their existence. For example, I depend on my parents, and now on the air, and on food, and so on. Now, secondly, the world is simply the real or imagined totality or aggregate of individual objects, none of which contain in themselves alone the reason for their existence. There isn't any world distinct from the objects which form it, any more than the human race is something apart from the members. Therefore, I should say, since objects or events exist, and since no object of experience contains within itself reason of its existence, this reason, the totality of objects, must have a reason external to itself. That reason must be an existent being. Well, this being is either itself the reason for its own existence, or it is not. If it is, well and good. If it is not, then we must proceed farther. But if we proceed to infinity in that sense, then there's no explanation of existence at all. So, I should say, in order to explain existence, we must come to a being which contains within itself the reason for its own existence, that is to say, which cannot not exist.
Russell começa dizendo que uma 'proposição necessária', como por exemplo a proposição 'um ser que é somente potência existe necessariamente', tem por força que ser analítica, declaração clara de que tudo que não existe na filosofia dele não existe em lugar algum. Quando Copleston se dá ao trabalho de reduzir o argumento de Leibniz a uma proposição que pode ser considerada analítica -- 'se há um ser contingente há um ser necessário' --, Russell resolve negar a própria inteligibilidade do termo 'contingente'. Copleston adverte repetidas vezes que esse tipo de posicionamento corresponde a reduzir a filosofia inteira a apenas um ramo dela, a lógica, e que essa redução é, ironia das ironias, logicamente insustentável. Num dos últimos parágrafos, Russell confessa não ver sentido no termo 'contingente' assim como Copleston o emprega porque, ora vejam, os seres não podem ser nada além de contingentes -- because there isn't anything else they could be --, uma negação a priori justamente daquilo que se procura mostrar. É como se alguém tentasse demonstrar o teorema de Pitágoras tomando como hipótese que o teorema de Pitágoras não é válido: Russell pretende levar um debate adiante ao mesmo tempo em que nega a legitimidade da única terminologia cabível a ele.

Tão esquisito quanto isso possa parecer, ainda não se compara às atrocidades que ele vem a dizer sobre o argumento moral. É prática comum do agnóstico achar deplorável a idéia de que não pode haver valores transcendentes e universais sem uma entidade igualmente transcendente que lhes confira sustentação: Richard Dawkins considera-a disgusting. É impressionante como o Copleston, com perguntas simples e diretas somente (no que mais parece um arremedo dos mais eficientes do método socrático), consegue levar o Russell a conclusões que ele mesmo deveria considerar inaceitáveis. Acompanhem:
C: You distinguish blue and yellow by seeing them, so you distinguish good and bad by what faculty?

R: By my feelings.

C: By your feelings. Well, that's what I was asking. You think that good and evil have reference simply to feeling?
E, quando Russell responde que podemos errar em nosso julgamento do que é certo e errado, Copleston pode candidamente concluir:
C: Yes, one can make mistakes, but can you make a mistake if it's simply a question of reference to a feeling or emotion? Surely Hitler would be the only possible judge of what appealed to his emotions.
É claro que nossos 'sentimentos' não podem ser os árbitros de toda valoração moral porque, de acordo com os 'sentimentos' do Hitler, tudo que ele fez foi muito bom (e quem melhor que Hitler para interpretar os sentimentos de Hitler?). A idéia de que o homem é medida de todas as coisas é de origem sofista (Protágoras), com a diferença que eles foram mais honestos que Russell e a levaram à sua última consequência: a de que não pode haver erro de julgamento quando o 'sentimento' é o único árbitro. Se saio do banho e o vento me parece frio, ele é frio e ponto. Protágoras sustentava abertamente a posição de que cada um tem sua verdade, e não à toa foi combatido, juntamente com os outros sofistas, por Sócrates e Platão.

Mas Russell, preferindo não levar sua idéia original adiante, lança mão de um artifício mais tosco ainda: igualar moralidade com a opinião da maioria. O mais curioso é que ele estava longe de poder ser caracterizado como um multiculturalista na acepção moderna: deixa claro no próprio debate que abomina práticas como o canibalismo e é notório que relegava comunidades inteiras para a lata de lixo da moralidade. Dirão que Russell escreveu muito e mudou de idéia com frequência ao longo dos anos, mas é possível encontrar esse tipo de contradição na própria transcrição do debate. Apesar de se dizer tão sensível a transgressões morais, não tem respaldo teórico nem para condenar personalidades à Hitler.

O 'impasse' não termina porque Russell insiste, a despeito de seus pressupostos, em condenar Hitler e the like. É forçado a apelar a uma noção quase inacreditável de obrigatoriedade moral: 'aquilo que nossos pais e babás ensinam'. É sério, leiam lá. Hitler e Assurbanipal são condenáveis, apesar de terem sido fiéis aos seus 'sentimentos', porque existe uma massa amorfa de opiniões sem origem e sem explicação, uma espécie de guia comportamental empírico que rege toda a nossa percepção de certo e errado. O que Russell faz aqui, assim como na discussão sobre Deus, é negar a possibilidade de qualquer inspeção mais cuidadosa sobre tudo aquilo que realmente importa. Trata-se de um agnosticismo que corresponde, no sentido mais estrito possível, a uma abdicação intelectual, a um solene escárnio em relação a tudo que ultrapasse o limitado domínio da filosofia analítica. Fora desse pequeno domínio há apenas o império do achismo e as lições de nossas babás.