Outro dia reparei em algo que ainda agora considero genial: existe uma tácita superioridade do salgado em relação ao doce. Esse é o tipo da coisa de que poucos, acredito, discordariam, apesar de não se sentir a necessidade de expressá-lo claramente. A vontade de doce pode até ser mais forte e repentina, mas também passa mais rápido e a saciedade a ela relacionada lembra uma espécie de enjôo. A vontade de doce é instável, volúvel, passageira. Não é à toa que representa o maior deleite de muitas moças.
Pois bem, essa 'superioridade' que eu percebi, se aceitamos a distinção proposta por Edmund Burke em seu A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, está relacionada à idéia do sublime, não da beleza. De fato, Burke chega a concluir, depois de muito divagar sobre os pontos de união de nossos sentidos, que a doçura é a beleza do paladar. Da mesma maneira podemos dizer com muita propriedade que um belo pedaço de picanha bovina, e não um brigadeiro, é sublime. É claro que há quem diga que o brigadeiro pode ser sublime, mas isso não passa de uma variante da veadagem contemporânea (convém reparar, aliás, na maneira sub-reptícia com que o vocábulo 'sublime' foi sequestrado por esse pessoal). Sublime, para nós, está associado ao grandioso, ao estupeficante, àquilo capaz de nos deixar num estado de (é esse o termo que Burke usa com mais insistência) astonishment.
Se a intenção é diferençar o belo do sublime, algumas dicotomias se apresentam logo como bastante úteis: o sublime traz a idéia de grandioso (no sentido de dimensões generosas mesmo) assim como a beleza se aproxima mais do pequeno (alguém duvida que um gatinho perderia boa parte de sua beleza se tivesse dois metros de altura?). Se o belo desperta em nós impulsos amorosos, o sublime é muito mais provavelmente capaz de produzir um misto de assombro, medo e até mesmo dor.
Burke se distingue da maioria dos que se dedicaram a esse tópico por atribuir uma importância marginal à razão humana. Considere-se como exemplo o prazer que sentimos ao presenciar qualquer tipo de desastre ou calamidade ou sofrimento. Esse prazer é inegável e existe desde sempre, ou não seríamos capazes de explicar o sucesso de espetáculos de gladiadores, de touradas, das tragédias grega e elizabetana, ou até mesmo de filmes trágicos de recentemente. A primeira resposta que nossa razão procura dar consiste em lembrar que só nos divertimos com o sofrimento que é sabidamente fictício (touradas e gladiadores já contrariam esse argumento). Mas basta lembrar a maneira com que acompanhamos a história para perceber que as coisas não são bem assim: batalhas e morticínios históricos ganham um colorido todo especial exatamente por sabermos que eles de fato ocorreram. O assassínio de Júlio César seria um episódio bem menos interessante caso não passasse de ficção. Até mesmo quando passamos a acontecimentos puramente mitológicos ainda entretemos alguma esperança de realidade, a menos que alguém acredite que seja completamente impossível haver um fundo real para mitos como os de Medéia ou Saturno.
A próxima justificativa é menos edificante e consiste em dizer que nos divertimos porque aquele sofrimento não pode ser nosso. É claro que se minha própria mãe me matasse eu não teria condições de subtrair qualquer tipo de prazer do mito de Medéia (já que eu estaria morto), mas não me parece lícito atribuir essa distância a qualquer impressão que eu tenha do mito em si. Muito pelo contrário, é mais natural supor que a morte perderia gradativamente todo e qualquer interesse (e, como consequência, seu caráter sublime) para mim se minha natureza fosse alheia a ela, isto é, se eu fosse imortal. Para Burke, todas essas construções tardias da razão procuram mascarar um processo que se dá antes que qualquer arrazoado tenha tempo de ser produzido:
Pois bem, essa 'superioridade' que eu percebi, se aceitamos a distinção proposta por Edmund Burke em seu A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, está relacionada à idéia do sublime, não da beleza. De fato, Burke chega a concluir, depois de muito divagar sobre os pontos de união de nossos sentidos, que a doçura é a beleza do paladar. Da mesma maneira podemos dizer com muita propriedade que um belo pedaço de picanha bovina, e não um brigadeiro, é sublime. É claro que há quem diga que o brigadeiro pode ser sublime, mas isso não passa de uma variante da veadagem contemporânea (convém reparar, aliás, na maneira sub-reptícia com que o vocábulo 'sublime' foi sequestrado por esse pessoal). Sublime, para nós, está associado ao grandioso, ao estupeficante, àquilo capaz de nos deixar num estado de (é esse o termo que Burke usa com mais insistência) astonishment.
Se a intenção é diferençar o belo do sublime, algumas dicotomias se apresentam logo como bastante úteis: o sublime traz a idéia de grandioso (no sentido de dimensões generosas mesmo) assim como a beleza se aproxima mais do pequeno (alguém duvida que um gatinho perderia boa parte de sua beleza se tivesse dois metros de altura?). Se o belo desperta em nós impulsos amorosos, o sublime é muito mais provavelmente capaz de produzir um misto de assombro, medo e até mesmo dor.
Burke se distingue da maioria dos que se dedicaram a esse tópico por atribuir uma importância marginal à razão humana. Considere-se como exemplo o prazer que sentimos ao presenciar qualquer tipo de desastre ou calamidade ou sofrimento. Esse prazer é inegável e existe desde sempre, ou não seríamos capazes de explicar o sucesso de espetáculos de gladiadores, de touradas, das tragédias grega e elizabetana, ou até mesmo de filmes trágicos de recentemente. A primeira resposta que nossa razão procura dar consiste em lembrar que só nos divertimos com o sofrimento que é sabidamente fictício (touradas e gladiadores já contrariam esse argumento). Mas basta lembrar a maneira com que acompanhamos a história para perceber que as coisas não são bem assim: batalhas e morticínios históricos ganham um colorido todo especial exatamente por sabermos que eles de fato ocorreram. O assassínio de Júlio César seria um episódio bem menos interessante caso não passasse de ficção. Até mesmo quando passamos a acontecimentos puramente mitológicos ainda entretemos alguma esperança de realidade, a menos que alguém acredite que seja completamente impossível haver um fundo real para mitos como os de Medéia ou Saturno.
A próxima justificativa é menos edificante e consiste em dizer que nos divertimos porque aquele sofrimento não pode ser nosso. É claro que se minha própria mãe me matasse eu não teria condições de subtrair qualquer tipo de prazer do mito de Medéia (já que eu estaria morto), mas não me parece lícito atribuir essa distância a qualquer impressão que eu tenha do mito em si. Muito pelo contrário, é mais natural supor que a morte perderia gradativamente todo e qualquer interesse (e, como consequência, seu caráter sublime) para mim se minha natureza fosse alheia a ela, isto é, se eu fosse imortal. Para Burke, todas essas construções tardias da razão procuram mascarar um processo que se dá antes que qualquer arrazoado tenha tempo de ser produzido:
Chuse a day to represent the most sublime and affecting tragedy we have; appoint the most favourite actors; spare no cost upon the scenes and decorations; unite the greatest efforts of poetry, painting and music; and when you have collected your audience, just at the moment when their minds are erect with expectation, let it be reported that a state criminal of high rank is on the point of being executed in the adjoining square; in a moment the emptiness of the theatre would demonstrate the comparative weakness of the imitative arts, and proclaim the triumph of the real sympathy.Parece não lhe ocorrer que esse predomínio das paixões (no caso anterior, o da 'simpatia', esse interesse mórbido que temos pela vida, e morte, de nossos semelhantes) antes de qualquer intervenção da razão torna impossível o projeto a que ele mesmo se propõe, o qual consiste em nada menos que estabelecer, através da razão, um itinerário de nossas paixões. Burke parece se dar conta disso antes mesmo do término de seu inquérito, quando se contenta com apontar de maneira inequívoca as diferenças entre o belo e o sublime, termos que até hoje, e principalmente hoje, costumam ser usados como sinônimos por muitos.
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