17 março, 2008

Resposta Cristã (1)

O lado positivo, se é que pode ser considerado assim, da onda de livros ateístas publicados recentemente é a resposta cristã a ela associada. Felizmente nem todo cristão é um liberal christian; há aqueles que ainda se dignam a defender a ortodoxia. Dinesh D'Souza (1961-), um indiano naturalizado americano, destaca-se entre eles por falar bem (Daniel Dennett foi pisoteado no debate na Tufts College, onde ensina; cheguei a ficar com pena do velhinho. Vejam no Youtube.) e por responder aos 'novos ateus' valendo-se apenas da lógica e de evidências científicas. Christopher Hitchens, apesar de ser mais articulado que o Dennett, também apanhou feio (ver aqui). Richard Dawkins, talvez na que tenha sido a decisão mais prudente de sua vida, não aceitou debater com Paul Johnson; é razoável que também não aceite possíveis convites do D'Souza.

O que impressiona em D'Souza é sua capacidade de vencer os dois 'lados' dos debates: o lado propriamente intelectual, em que se analisa a lógica dos argumentos, a precisão dos dados etc., e o lado 'popular', em que se analisa somente a impressão deixada sobre o público. A verdade é que ele já parte em desvantagem dupla: não só o público é a priori hostil ao argumento religioso como, provavelmente uma variante do mesmo problema, está despreparado para recebê-lo, mesmo quando não há hostilidade de fato. É preciso lançar mão de analogias, paralelos engraçadinhos e coisas do tipo pra compensar a falta de imaginação metafísica dos ouvintes. Por exemplo, quando D'Souza repete o argumento da contingência para a existência de Deus (algo que leitores de Aristóteles, Tomás de Aquino e Leibniz recebem com naturalidade) e surge a clássica pergunta 'mas quem criou Deus?', é preciso ilustrar a situação com algo mais 'palpável': a criação literária. Dostoievski, argumenta D'Souza, está num plano existencial distinto do de seus personagens; as regras que valem pra esses últimos não valem pra ele e por aí vai.

Está claro que desse processo acabam surgindo generalizações um tanto apressadas ou simplificações indevidas, mas nada que se distancie da caricaturização inevitável em qualquer debate. O mesmo não se pode dizer de Dennett, que diz ser a religião culpada pelas atrocidades stalinistas porque, ora vejam, Stalin considerava-se a si mesmo um 'deus' (concluo daí que se ele se considerasse um grande industrial a culpa passaria a ser do capitalismo). Apesar de nem todos os novos ateus se expressarem com estupidez tão desabrida, é essa em essência a resposta que dão às observações sobre o comunismo. O What's So Great About Christianity, último livro do D'Souza, serve como espécie de compilação das respostas que tem dado a Hitchens, Dawkins, Dennett, Harris & cia. Gostaria de recordar aqui uma em particular.

Ela diz respeito ao argumento ontológico a favor da existência de Deus, sugerido pela primeira vez por Anselmo de Cantuária (1033-1109), escolástico italiano. Partindo da definição de que Deus é 'aquilo que não pode concebivelmente ser superado' e admitindo que a existência de fato é superior à existência apenas no mundo das idéias, Santo Anselmo declarou que a existência de Deus segue de sua própria definição. Ora, se Deus não existisse, 'aquilo que não pode concebivelmente ser superado' seria apenas uma idéia, e assim seria possível conceber algo superior: a idéia concretizada. A definição fica contradita; por absurdo, fica provado que Deus deve forçosamente existir. A questão aqui não consiste em aceitar ou não o argumento de Santo Anselmo (ele já recebeu boas críticas), mas sim observar a que nível de delinquência interpretativa chegou Christopher Hitchens ao tentar refutá-lo. 'Se perguntássemos a uma criança num livro de contos de fadas por que ela acredita em dragões', declara Hitchens, 'ela responderia que pode imaginar dragões, de onde segue que eles devem existir'. Mas Anselmo não provou que qualquer coisa imaginável existe, bolas! Ele provou que 'aquilo que não pode concebivelmente ser superado', e não qualquer outra coisa, existe necessariamente.

No exemplo acima fica clara a hipocrisia dos que, partindo de uma proposta racionalista, pretendem contestar a razoabilidade da religião. Se Hitchens, Dawkins e Dennett dizem utilizar apenas a razão, e ainda não a desenvolveram a ponto de conseguir diferençar Stalin de Deus ou de entender uma premissa lógica simples, o que lhes resta? Se não a tivessem rechaçado tão pomposamente, restaria a graça divina.

Nos próximos posts falo sobre o caso Galileu, o antagonismo entre ciência e religião e outros absurdos correlatos.