12 abril, 2008

Potência Desperdiçada

Primeiro reparo. É bobagem afirmar que a vida começa com a concepção. Tanto o óvulo como o espermatozóide já eram vivos antes de se unirem. O que dá para dizer é que a fusão dos gametas marca a criação da identidade genética única do que poderá tornar-se um ser humano, se as condições ambientais ajudarem. Temos, portanto, um ser humano em potência, para utilizar a distinção aristotélica, autor tão caro à igreja. E não faz muito sentido embaralhar potencialidades com atualidades; afinal, no longo prazo somos todos cadáveres.
O trecho acima, caso ainda não tenham reconhecido tão peculiar desenvoltura, é do Hélio Schwartsman, colunista da Folha (havendo estômago para tanto, leia a íntegra do artigo aqui). Façamos então um primeiro reparo ao reparo de Schwartsman: ninguém afirma que a vida começa com a concepção; afirma-se que a vida humana começa com a concepção humana. Particulamente não conheço muitos pesquisadores pro-life (obviamente, não conheço nem se conhece ninguém em lugar nenhum) que neguem que espermatozóide e ameba tenham vida também.

O mais curioso é que Schwartsman reconhece a diferença essencial entre gametas isolados e óvulo fecundado: este último pode vir a se tornar um ser humano tal como os encontramos nas ruas. Mas que importância tem essa potência se seremos todos cadáveres um dia? Seguindo a mesmíssima lógica, que importância tem qualquer coisa se seremos todos cadáveres um dia? Imagino que o problema aqui seja, como quase sempre ocorre, de falta de imaginação: se o óvulo fecundado tivesse a aparência de um bonequinho microscópico o problema desapareceria. Toda a questão acaba se resumindo à percepção sensorial, o último e único refúgio dos materialistas: o porco sente dor, não se pode matá-lo; o feto, até certo ponto, não sente, então pode-se matá-lo.

Chesterton era conhecido como príncipe dos paradoxos não por escrever paradoxalmente, mas por perceber paradoxos na argumentação dos outros. Um paradoxo que não lhe poderia escapar é esse: os que defendem o aborto e a pesquisa irrestrita com células-tronco são, em geral, os mesmos que acreditam numa origem 'evolutiva' da vida (aquela que surge com a combinação de alguns elementos químicos e uma sorte danada). A argumentação avança da seguinte maneira: existe uma probabilidade minúscula de que a vida tenha surgido assim, então devemos abracá-la como hipótese mais plausível e reconhecer que tudo o que temos hoje, matemática, cinema e carros elétricos é graças a ela. Já a probabilidade bem maior de que o embrião venha a se tornar um ser humano deve ser desprezada porque, ora vejam, existe uma probabilidade também grande de que ele venha a ser descartado ou perdido. Está-se a desperdiçar diariamente mecanismos bem mais viáveis que a, segundo eles mesmos, origem da vida! Samuel Johnson, numa frase que hoje já deve ser citada até em gibi da turma da Mônica, dizia que o patriotismo é o último refúgio dos patifes. Hoje o último refúgio dos patifes é a probabilidade.

Pra testar esse meu novíssimo aforismo, basta perguntar a alguém que acredita na origem espontânea da vida se ele acredita na improvável possibilidade de a força gravitacional falhar amanhã. Não vai acreditar, e não vai acreditar porque a probabilidade é minúscula. Se me pedem pra provar que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus, faço um desenho e demonstro; se me pedem pra provar que a gravidade deve funcionar amanhã, o melhor que posso fazer é rezar (Newton rezaria).

Vejam como a probabilidade é sempre usada de maneira conveniente: a pesquisa com células-tronco embrionárias deve ser propugnada e até financiada pelo estado porque existe uma probabilidade minúscula de os cientistas conseguirem controlar seu desenvolvimento. Maureen L. Condic, professora de neurobiologia e anatomia na Universidade de Utah (leia o artigo dela na First Things aqui) chega a concluir que as dificuldades (científicas) são tamanhas que o mais sensato seria continuar a pesquisa com células-tronco adultas. A vantagem das células-tronco adultas é que, além de não levantarem questões éticas espinhosas, têm dado resultados mais palpáveis.

A resposta que comumente se dá a tanta sensatez é que ainda não há bons resultados com células-tronco embrionárias precisamente porque não se pesquisou o suficiente. É assim que se troca, mui graciosamente, a certeza de um problema ético pela possibilidade de um avanço científico. O sujeito que pensa assim tem tanta fé em ciência quanto o fundamentalista religioso tem fé em sua religião. Paradoxalmente, o fanático cientificista deplora o fanatismo religioso. Paradoxalmente, os príncipes do paradoxo somos nós.