Entusiasmado com a constatação de que três das quatro coisas que mais afligem minha paciência estão de alguma maneira relacionadas com o barulho (são elas: pessoas com mastigação barulhenta, qualquer tipo de barulho enquanto durmo e o barulho do telefone), resolvi escrever sobre o silêncio. Até o quarto membro da minha listinha, o calor, tem sua relação com a falta de silêncio: o pesquisador norte-americano William J. Shaffor, da Princeton University, mostrou recentemente que a agitação das partículas de ar (provocada pelo aumento excessivo da temperatura) num ambiente suficientemente pequeno e cuidadosamente vedado leva a colisões intermoleculares de uma intensidade tal que podem ser percebidas pelo ouvido humano.
Mas o silêncio tem uma história comprida e tortuosa, e muito me admira que ainda não tenham escrito (até onde eu saiba) uma História Universal do Silêncio. Como todo conceito excessivamente simples, o de silêncio pode assumir desdobramentos os mais variados e até mesmo contraditórios. Bem sei que essa última frase nada significa sem exemplos. Tomemos o capítulo LV das Memórias Póstumas, O Velho Diálogo de Adão e Eva:
Qualquer um percebe que o 'grito' só tem seu efeito marcante exatamente porque não podemos ouvi-lo: como diria Ortega, a moeda falsa circula apoiada pela moeda verdadeira. E, nesse caso como em muitos outros, a moeda verdadeira é o silêncio.
Em se tratando do efeito contrapontístico (mesmo na acepção não-musical do termo) do silêncio, pensa-se logo em música. O silêncio pode ser empregado numa inversão repentina ou num lânguido crescendo, e não chega a admirar que tenham surgido ocasiões para utilizações mais inovadoras do herói desse post: o compositor John Cage, por exemplo, resolveu 'compor' uma piece que consiste em quatro minutos e trinta e três segundos do mais inveterado silêncio. Quando perguntaram a respeito da importância do silêncio em sua obra, Cage limitou-se a responder que Until I die there will be sounds. And they will continue following my death. As for silence, there's a countdown to its extinction. A música popular brasileira também faz uso sublime do silêncio. Por exemplo, nos intervalos entre uma e outra música.
Na primeira imagem, Harpócrates, o deus helênico do silêncio.
Mas o silêncio tem uma história comprida e tortuosa, e muito me admira que ainda não tenham escrito (até onde eu saiba) uma História Universal do Silêncio. Como todo conceito excessivamente simples, o de silêncio pode assumir desdobramentos os mais variados e até mesmo contraditórios. Bem sei que essa última frase nada significa sem exemplos. Tomemos o capítulo LV das Memórias Póstumas, O Velho Diálogo de Adão e Eva:
BRáS CUBASOutro exemplo bem conhecido, e que segue a mesma linha, pode ser encontrado no Anna Karenina de Tolstói, no momento em que Levin e Kitty finalmente se reconciliam:
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VIRGíLIA
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BRáS CUBAS
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VIRGíLIA
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BRáS CUBAS
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VIRGíLIA
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BRáS CUBAS
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VIRGíLIA
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BRáS CUBAS
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VIRGíLIA
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BRáS CUBAS
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VIRGíLIA
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'Here,' he said, and wrote the initial letters: w, y, a, m: t, c, b, d, i, m, n, o, t? These letters meant: 'When you answered me: "that cannot be", dit it mean never or then?' There was no likelihood that she would be able to understand this complex phrase, but he watched her with such a look as if his life depended on her understanding these words.Nesses dois casos fica claro que o silêncio (ou a ausência de palavras, ou a ausência da necessidade de representá-las) dá conta de um entendimento ulterior, uma união especial que prescinde de qualquer elaboração linguística para fazer-se inteligível. Ora, ocorre que o silêncio pode vir a representar algo diametralmente oposto: o reconhecimento de que não há como estabelecer qualquer tipo satisfatório de comunicação. É mais ou menos disso que Italo Calvino reclama em sua palestra Exatidão:
She glanced at him seriously, then leaned her knitted brow on her hand and began to read. Occasionally she glanced at him, asking with her glance: 'Is this what I think?'
'I understand,' she said, blushing. (...)
'Well, here, read this. I'll tell you what I would wish. Would wish very much!' She wrote the initial letters: t, y, c, f, a, f, w, h. It meant: 'that you could forgive and forget what happened'.
He seized the chalk with his tense, trembling fingers and, breaking it, wrote the initial letters of the following: 'I have nothing to forgive and forget, I have never stopped loving you.'
A linguagem me parece sempre usada de modo aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ouço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta. A literatura - quero dizer, aquela que responde a essas exigências - é a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser.Feliz ou infelizmente, essa constatação pode ter contornos bem mais trágicos: o que em Calvino é apenas um repúdio contra o desleixo com que é tratada a linguagem, em outras mentes mais radicais pode adquirir a forma de um ultimatum contra qualquer possibilidade de comunicação humana. É a impressão que se depreende do manjadíssimo O Grito, do norueguês Edvard Munch:
Qualquer um percebe que o 'grito' só tem seu efeito marcante exatamente porque não podemos ouvi-lo: como diria Ortega, a moeda falsa circula apoiada pela moeda verdadeira. E, nesse caso como em muitos outros, a moeda verdadeira é o silêncio.
Em se tratando do efeito contrapontístico (mesmo na acepção não-musical do termo) do silêncio, pensa-se logo em música. O silêncio pode ser empregado numa inversão repentina ou num lânguido crescendo, e não chega a admirar que tenham surgido ocasiões para utilizações mais inovadoras do herói desse post: o compositor John Cage, por exemplo, resolveu 'compor' uma piece que consiste em quatro minutos e trinta e três segundos do mais inveterado silêncio. Quando perguntaram a respeito da importância do silêncio em sua obra, Cage limitou-se a responder que Until I die there will be sounds. And they will continue following my death. As for silence, there's a countdown to its extinction. A música popular brasileira também faz uso sublime do silêncio. Por exemplo, nos intervalos entre uma e outra música.
Na primeira imagem, Harpócrates, o deus helênico do silêncio.
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