Com o advento da mecânica quântica, no início do século 20, tornou-se mais ou menos comum estender o conceito de dualidade às relações humanas. Os gurus das chamadas ciências alternativas fizeram-nos o favor de explicar tudo o que há de insólito no mundo através da dualidade partícula-onda, do princípio da incerteza e das equações de Schrödinger. Está claro que não fazem a mínima idéia do que falam. Em verdade, como já chegou a confessar um professor de Física meu, ninguém realmente entende dessas coisas.
Não é de estranhar, então, que Robert Louis Stevenson não seja lido com a mesma seriedade que se costuma dedicar a alguns de seus contemporâneos, como Henry James e Joseph Conrad. Stevenson, com seu The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, continua a já brilhante tradição do fenômeno da dupla personalidade (em suas muitas variações) na literatura em inglês (dois que vieram antes: Frankenstein, de Mary Shalley e o sinistro William Wilson de Edgar Poe; dois que vieram depois: The Picture of Dorian Gray, do Wilde, e o quase desconhecido The Secret Sharer, de Conrad) e acaba legando à posteridade uma história que é amiúde lembrada menos por sua qualidade literária que por seus atributos potencialmente teatrais. Já não são poucas as versões cinematográficas direta ou indiretamente inspiradas na novela de Stevenson e, como já era de se esperar, o sucesso (ou não) de cada um delas depende, more often than not, da capacidade (ou não) que o protagonista tem de transfigurar-se de Jekyll para Hyde e vice-versa.
Seria tolice achar que o objetivo útimo de Stevenson consistia em entreter uma platéia de deslumbrados. A seriedade com que tratava da problemática moral por trás das tais transformações, a recorrência do tema em seus textos menos cênicos e a genuína admiração com que se referia a outras obras da mesma vertente nos leva, sem muita dificuldade, a essa constatação. Em referência ao Crime e Castigo de Dostoievski, diz Stevenson que "it is the greatest book I have read easily in ten years. Henry James could not finish it: all I can say is, it nearly finished me. It was like having an illness."
Nós todos conhecemos bem a trajetória de Dr. Jekyll; sua vida é um dos lugares-comuns mais caros à psicologia moderna. Trata-se de um sujeito que, vindo de família rica e respeitável, além de ser inteligente e afeito à ciência, esperava nada menos que um futuro brilhante. De fato: como médico, conquistou a confiança dos pacientes e o respeito da sociedade. Nutria, porém, um escrúpulo inexpugnável por sua idoneidade moral: era severo censor de seus próprios desleixos e preferiria qualquer coisa a uma mancha em sua dignidade. Surge, assim, a idéia da repressão, dos impulsos a muito custo mantidos por debaixo da figura impecável do bom médico; surge, finalmente, Mr. Hyde.
Existe, também aqui, a velha disputa interna entre o bem e o mal. A princípio Jekyll controla as aparições de seu colega sem caráter; mas, a partir do momento em que elas se tornam mais frequentes, torna-se mais difícil também desvencilhar-se dele. O temperamento maligno de Hyde começa a predominar, e Jekyll chega à derradeira conclusão de que chegará o dia em que sua própria figura desaparecerá, e em que Hyde poderá dedicar-se ao crime e à destruição sem mais remorsos.
A punição destinada a Jekyll por ter dado liberdade aos seus impulsos mais medonhos foi nada menos que o próprio desaparecimento. É claro que essa tentação não poderia deixar de vir com um invólucro dos mais atraentes, num discurso que deve muito à formação religiosa do autor:
O esforço interno, o confronto dialético entre o bem e o mal ou, ainda, a simples dualidade de caráter aparecerá muitas outras vezes nas histórias de Stevenson. Em The Suicide Club, o príncipe da Bohemia, acostumado às altas regalias de sua posição, tem como divertimento preferido misturar-se à multidão disfarçado de homem comum. Em Markheim, o personagem de mesmo nome é tentado pelo próprio demônio a continuar em sua vida criminosa, mas acaba desistindo. Em A Lodging for the Night, é a vez de ninguém menos que François Villon, poeta francês do século 15 e inveterado bandido, rever (ou fingir que revê) sua conduta nada louvável. A despeito do esforço empreendido pelos luminares modernosos da psicologia e da sociologia, a questão da natureza dual do homem ainda está, felizmente, por ser solucionada.
Não é de estranhar, então, que Robert Louis Stevenson não seja lido com a mesma seriedade que se costuma dedicar a alguns de seus contemporâneos, como Henry James e Joseph Conrad. Stevenson, com seu The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde, continua a já brilhante tradição do fenômeno da dupla personalidade (em suas muitas variações) na literatura em inglês (dois que vieram antes: Frankenstein, de Mary Shalley e o sinistro William Wilson de Edgar Poe; dois que vieram depois: The Picture of Dorian Gray, do Wilde, e o quase desconhecido The Secret Sharer, de Conrad) e acaba legando à posteridade uma história que é amiúde lembrada menos por sua qualidade literária que por seus atributos potencialmente teatrais. Já não são poucas as versões cinematográficas direta ou indiretamente inspiradas na novela de Stevenson e, como já era de se esperar, o sucesso (ou não) de cada um delas depende, more often than not, da capacidade (ou não) que o protagonista tem de transfigurar-se de Jekyll para Hyde e vice-versa.
Seria tolice achar que o objetivo útimo de Stevenson consistia em entreter uma platéia de deslumbrados. A seriedade com que tratava da problemática moral por trás das tais transformações, a recorrência do tema em seus textos menos cênicos e a genuína admiração com que se referia a outras obras da mesma vertente nos leva, sem muita dificuldade, a essa constatação. Em referência ao Crime e Castigo de Dostoievski, diz Stevenson que "it is the greatest book I have read easily in ten years. Henry James could not finish it: all I can say is, it nearly finished me. It was like having an illness."
Nós todos conhecemos bem a trajetória de Dr. Jekyll; sua vida é um dos lugares-comuns mais caros à psicologia moderna. Trata-se de um sujeito que, vindo de família rica e respeitável, além de ser inteligente e afeito à ciência, esperava nada menos que um futuro brilhante. De fato: como médico, conquistou a confiança dos pacientes e o respeito da sociedade. Nutria, porém, um escrúpulo inexpugnável por sua idoneidade moral: era severo censor de seus próprios desleixos e preferiria qualquer coisa a uma mancha em sua dignidade. Surge, assim, a idéia da repressão, dos impulsos a muito custo mantidos por debaixo da figura impecável do bom médico; surge, finalmente, Mr. Hyde.
Existe, também aqui, a velha disputa interna entre o bem e o mal. A princípio Jekyll controla as aparições de seu colega sem caráter; mas, a partir do momento em que elas se tornam mais frequentes, torna-se mais difícil também desvencilhar-se dele. O temperamento maligno de Hyde começa a predominar, e Jekyll chega à derradeira conclusão de que chegará o dia em que sua própria figura desaparecerá, e em que Hyde poderá dedicar-se ao crime e à destruição sem mais remorsos.
A punição destinada a Jekyll por ter dado liberdade aos seus impulsos mais medonhos foi nada menos que o próprio desaparecimento. É claro que essa tentação não poderia deixar de vir com um invólucro dos mais atraentes, num discurso que deve muito à formação religiosa do autor:
Will you be wise? Will you be guided? Will you suffer me to take this glass in my hand and to go forth from your house without further parley? or has the greed of curiosity too much command of you? Think before you answer, for it shall be done as you decide. As you decide, you shall be left as you were before, and neither richer nor wiser, unless the sense of service rendered to a man in mortal distress may be counted as a kind of riches of the soul. Or, if you shall so prefer to choose, a new province of knowledge and new avenues to fame and power shall be laid open to you, here, in this room, upon the instant; and your sight shall be blasted by a prodigy to stagger the unbelief of Satan. (p. 59)A passagem parece uma reedição do episódio da tentação da serpente, e quando se fala em tentação tem-se o costume de pensar em desejos sexuais mal contidos. Não é o caso. Stevenson tem o cuidado de não associar crimes dessa natureza à figura de Hyde; realmente, em sua primeira aparição pública, quando ataca uma garotinha na calçada, nada tenta nesse sentido. Stevenson parece inclusive empenhado em dissociar sexo de pecado, o que seria muito comum na mentalidade dos que gostava de chamar prurient fools. Em carta ao jornalista norte-americano John Paul Bocok, Stevenson explica que
The Hypocrite let out the beast Hyde - who is no more sexual than another, but who is the essense of cruelty and malice, and selfishness and cowardice: and these are the diabolic in men - not this poor wish to have a woman, that they make such a cry about.O verdadeiro mal advém, então, do hipócrita, não do lascivo. Vindo de quem vem, a declaração ganha mais força ainda.
O esforço interno, o confronto dialético entre o bem e o mal ou, ainda, a simples dualidade de caráter aparecerá muitas outras vezes nas histórias de Stevenson. Em The Suicide Club, o príncipe da Bohemia, acostumado às altas regalias de sua posição, tem como divertimento preferido misturar-se à multidão disfarçado de homem comum. Em Markheim, o personagem de mesmo nome é tentado pelo próprio demônio a continuar em sua vida criminosa, mas acaba desistindo. Em A Lodging for the Night, é a vez de ninguém menos que François Villon, poeta francês do século 15 e inveterado bandido, rever (ou fingir que revê) sua conduta nada louvável. A despeito do esforço empreendido pelos luminares modernosos da psicologia e da sociologia, a questão da natureza dual do homem ainda está, felizmente, por ser solucionada.
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