22 julho, 2006

A Panacéia Austríaca

In a country where the sole employer is the State, opposition means death by slow starvation. The old principle: who does not work shall not eat, has been replaced by a new one: who does not obey shall not eat.

- Leon Trótski
To the Socialists of all parties. É essa a dedicatória (que o autor afirma ser sincera) do livro The Road to Serfdom, do economista austríaco F. A. Hayek (1899-1992). Estamos em 1944 e Hayek pretende mandar uma mensagem a todos os socialistas, principalmente os da Inglaterra: socialismo gera, necessariamente, totalitarismo. Mostrar que o totalitarismo não é consequência funesta e acidental, mas sim desenvolvimento lógico e inescapável dos experimentos socialistas é o objetivo maior desse livro.

Primeiro esclarecimento: Hayek lida principalmente com a então corrente acepção de socialismo restrita à economia, isto é, socialismo para ele significa a tendência de convergir todo a manipulação econômica à figura central do Estado. O entendimento que hoje temos do termo é mais ligado à idéia de welfare state, o desejo de suprimir tanto quanto possível as desigualdades sociais. Segundo acreditavam (ou acreditam) muitos, essa supressão não seria possível sem a intervenção maciça (ou, por abuso de linguagem, planificada) do Estado.

Vale a pena parar um pouco e contemplar a transformação radical por que passaram determinados termos. A economia socialista passou a ser identificada pelo adjetivo planificada, como se o esforço sistemático de planejamento, empreendido em escala individual, fosse completamente estranho às práticas liberais herdadas do século 19. O próprio termo liberal já não pode ser usado sem risco de grande confusão: nos Estados Unidos, o grupo liberal nada tem que ver com a economia... liberal. O exemplo mais extravagante é o da palavra liberdade. John Stuart Mill, quando escreveu seu ensaio On Liberty, tinha em mente valores diametralmente opostos aos dos socialistas do começo do século passado, apesar de estes últimos, também eles, falarem ostensivamente em liberdade. Ora, por que criar novos termos quando se pode simplesmente desvirtuar termos já arraigados, de forma positiva, no imaginário popular? Enquanto J. S. Mill estava preocupado com a liberdade de iniciativa de cada indivíduo, a garantia da possibilidade de cada um desenvolver suas potencialidades sem que uma autoridade arbitrária lhe barre o caminho, os socialistas falam em liberdade no sentido de que o indivíduo não mais terá de se preocupar com questões econômicas: esses e outros "detalhes" ficariam por conta do todo-poderoso governo central.

Isso advém, conclui Hayek, de uma confusão, intencional ou não, entre liberdade e poder. Para nós, é perfeitamente concebível que um indivíduo tenha grande poder em suas mãos e, ao mesmo tempo, esteja em boa medida privado de suas liberdades individuais. Ainda que o plano socialista obtivesse sucesso em sua tentativa de mitigar disparidades sociais, teríamos cidadãos desprovidos da liberdade básica de mudar de emprego, de vez que essa mudança dependeria do interesse e do consentimento do Estado, do plano maior divisado para o bem de todos. Estamos aqui sendo condescendentes e admitindo que esse primeiro ideal, o da supressão das desigualdades, seja possível. Na prática, sabemos que ele não é. A ordenação de toda uma sociedade segundo um plano único exigiria uma hierarquização de valores tão exaustiva (quanto vale a contribuição de pastores em relação à dos operários, ou a dos comerciantes em relação à dos médicos?, como determinar o que é 'justo' para cada um?) que jamais poderíamos chegar a algo parecido em comum acordo. Conclusão óbvia: é necessário que uma autoridade coerciva tome as decisões. É essa a liberdade que nos oferecem: a de não termos que tomar decisões, apesar de termos de aceitar as do(s) outro(s).

Dado o caráter central e necessariamente autoritário do governo, muitos argumentam que o comunismo falhou na URSS e o nazismo na Alemanha porque as figuras alçadas ao poder eram inegavelmente desumanas. Ora, apesar de ser essa uma observação bem antiga (já não era novidade em 1944), não são poucos os que ainda acreditam nela. O grosso de nossos livros didáticos de História dá a entender que o destino da União Soviética teria sido completamente diferente caso Lênin não tivesse morrido tão cedo; e Trótski é tão louvado pelo que nunca fez (e que nunca faria) que já mereceu a alcunha de D. Sebastião da esquerda. Até mesmo Edmund Wilson, no To The Finland Station, traça, em parte por falta de informação disponível à época, uma imagem bem positiva de Lênin. Hayek é fulminante:
There are strong reasons for believing that what to us appear the worst features of the existing totalitarian systems are not accidental by-products but phenomena which totalitarianism is certain sooner or later to produce. Just as the democratic statesman who sets out to plan economic life will soon be confronted with the alternative of either assuming dictatorial powers of abandoning his plans, so the totalitarian dictator would soon have to choose between disregard of ordinary morals and failure.
Entende-se, assim, a afirmação de Orwell segundo a qual o desdobramento do comunismo na URSS teria sido essencialmente o mesmo com Lênin, Trótski ou Stálin (ou com qualquer outra pessoa que desejasse continuá-lo). Entende-se também por que Hitler, e não um camarada cheio de boas intenções chegou ao poder na Alemanha. Não houve má sorte: quem aceita levar as consequências do totalitarismo até o fim já abdicou, desde há muito, qualquer senso de moral com o qual possamos nos identificar, ainda que vagamente.

Outro erro bastante comum consiste em distanciar socialismo e nazismo. Mais uma vez, trata-se de erro que persiste até os dias de hoje; vemos aí, como exemplo, o so-called Livro Negro do Capistalismo, que nos faz o favor de confessar sua burrice ao creditar todas as mortes das duas guerras mundiais ao capitalismo. Basta recorrer à opinião dos próprios socialistas (ou coletivistas, ou comunistas, ou nazistas...): à época da primeira grande guerra, não eram poucos os teóricos socialistas que entendiam o conflito como um confronto entre a Alemanha coletivista e a Inglaterra individualista. Se é assim, as mortes são responsabilidade de um lado tanto quanto são do outro. Ninguém menos que Hitler, num discurso de 1941, afirmou que nazismo e comunismo são "essencialmente a mesma coisa". Outra evidência disso é o fato de que muitos fascistas eram ex-socialistas, incluindo o próprio Mussolini:
Everyone who has watched the growth of these movements in Italy or in Germany has been struck by the number of leading men, from Mussolini downward (and not excluding Laval and Quisling), who began as socialists and ended as Fascists or Nazis. And what is true of the leaders is even more true of the rank and file of the movement. The relative ease with each a young communist could be converted into a Nazi or vice versa was generally known in Germany, best of all to the propagandists of the two parties.
Há fortes motivos para acreditar que o pacto Germano-Soviético de 1939, que todo professorzinho de História adora creditar exclusivamente à conveniência das circunstâncias, reflete um entendimento bastante aprofundado entre os dois lados. A verdade é que nazismo e comunismo são manifestações de um mesmo ideário coletivista, que confia no solapamento das liberdades individuais e na concentração de poder para atingir seus fins, que são, independentemente de quem as lidera, autoritários e deficientes de qualquer norte moral inteligível à civilização que convencionamos chamar ocidental.

Também seria o caso de acabar com o mito de que o liberalismo defenderia um Estado inoperante. Essa idéia é tão arraigada que Meira Penna sentiu a necessidade de nos advertir que o termo socioliberalismo não passa de uma tautologia: a intervenção estatal, desde que controlada de maneira a não invadir a soberania individual, é, sim, prevista e recomendada pelo liberalismo. Naturalmente, Hayek fala disso também. The Road to Serfdom é um dos poucos livros que mereceriam o título de leitura obrigatória em qualquer país. É o tipo de livro que evita toda uma biblioteca de erros.