24 janeiro, 2006

Esse Mundo (Chato) Chamado João

Grande Sertão: Veredas completa 50 anos de publicação em maio próximo e o jornalista Daniel Piza acaba de publicar, em homenagem, um longuíssimo artigo (ou pelo menos foi essa a impressão que tive) sobre João Guimarães Rosa, confirmando a idéia de que os comentadores de um autor conseguem, sim, torná-lo mais chato do que já era originalmente.

Quando um dos muitos comentadores de Shakespeare indagou Is Hamlet crazy, or only pretending to be?, Oscar Wilde responderia com Are Shakespeare's commentators crazy, or only pretending to be? A diferença com Guimarães Rosa é que ele próprio começou a chatice. Em carta a João Condé, comentando a exegese espiritual que culminaria com a publicação dos contos de Sagarana, Rosa afirma que
Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições - no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é tempero.
Confesso que fiquei muito contente ao ler esse comentário; vi que se desenhava uma oportunidade de alardear um trecho de Raymond Queneau que cito sempre que possível: "O clássico que escreve sua tragédia observando certo número de regras que conhece é mais livre que o poeta que escreve o que lhe passa pela cabeça e é escravo de outras regras que ignora." (Citado por Italo Calvino em seu Seis propostas para o próximo milênio.) Já posso até imaginar a resposta dos fãs de Rosa: "Mas Rosa não escreve 'o que lhe passa pela cabeça'; muito pelo contrário: ele construiu uma linguagem em que há regras bastante rígidas e que são, todas elas, fundamente conhecidas e dominadas por ele, já que ele mesmo as criou."

Pois sim. Mas Rosa revolucionou a linguagem, não o sentimento literário, apesar de querer se desfazer de todos os "conceitos e tradições", espaciais e temporais. O sertão de Rosa não pretende (nem pode) ser mais que o mar de Joseph Conrad, muito bem estudado há mais de 100 anos. E aqui somos interpelados por mais uma das chatices roseanas: a universalização do sertão, martelada incansavelmente por todos os críticos, de tal maneira que já se tornou impossível escrever o que quer que seja sobre Guimarães Rosa sem repetir, de boca cheia e olhar misterioso, a gloriosa máxima: O sertão de Guimarães Rosa é universal. Todos sabemos que era essa a intenção; resta saber se houve êxito e, se admitirmos que houve (o que de fato não é injusto), investigar se esse êxito é tal que justifique o pedestal a que é comumente alçado, aos berros, o escritor mineiro.

Outro detalhe particularmente aborrecido na literatura de Rosa é o gosto pela alegoria óbvia, invariavelmente tida como estupenda associação imagética. Dá-nos exemplo disso (exemplo também citado por Piza) a primeira novela do volume Manuelzão e Miguilim, Campo Geral, em que Miguilim descobre ter problemas de visão apenas quando lhe dão um par de óculos; a partir daí, o menino passa a pertencer a um mundo mais nítido, clara referência a um suposto crescimento espiritual. Impossível não lembrar, nesse contexto, a alegoria criada por Clarice Lispector (a Guimarães Rosa de saias, em termos de chatice) no celebérrimo conto Amor, parte do também celebérrimo volume Laços de Família: a protagonista (Ana, se me não engano), logo após ter um espécie de epifania sobre sua posição servil e passiva dentro de casa, deixa cair no chão uma caixa de ovos ao sair do ônibus, símbolo do desabrochar de uma nova pessoa. Belíssimo.

É por essas e outras que o bom contista de Sagarana acaba por se tornar uma das personalidades mais intragáveis da literatura brasileira. Como diria Paulo Francis, a respeito da famigerada linguagem de Rosa: "É bonito, mas é chato." Tanto que, condescendendo ao famoso exercício lúdico de descrever nosso inferno particular, tenho o seguinte em mente: Guimarães Rosa, montado num burrinho pedrês, lendo Grande Sertão: Veredas em voz alta. Na íntegra. Cercado por intelectuais tupiniquins que tentam, desesperadamente, interpretar a essência última de cada palavra. Chega!