05 maio, 2006

Infância


Volto a Graciliano Ramos depois de uns quatro anos, dessa vez para ler Infância, memórias que vão desde as mais remotas recordações da meninice até o esboço dos primeiros escritos literários. Álvaro Lins - e nao só ele - costumava dizer que esse é o texto mais bem acabado de Graciliano. Confesso que não consigo perceber com facilidade essa gradação, principalmente quando o referencial são textos que, para mim, sempre representaram o supra-sumo do bem escrito: Angústia e S. Bernardo.

Nada obstante, não duvido que ela exista (a confirmação disso requereria uma releitura do resto da obra), de vez que essas memórias, ou fragmentos de memórias, protagonizadas pelo menino Graciliano, servem de guia para o entendimento da visão de Graciliano Ramos, o escritor. Toda sua obra parece remontar ao hercúleo esforço de entender o mundo, e isso se mostra com uma obviedade ululante na constante estupefação do menino ante as novidades que se lhe apresentam. Nada mais natural, então, que o surgimento dessa espécie de cartilha: uma exposição minuciosa das ferramentas que lhe possibilitaram construir toda uma literatura, na esperança, talvez, de que o leitor, armado dessas informações, pudesse acompanhá-lo ou auxiliá-lo na investigação.

Impossível não lembrar, por ocasião do episódio narrado no capítulo Um incêndio, de um dos tais novelistas russos (en passant: devia ser um de seus preferidos): Tchekhov. No conto Um acontecimento, deste último, a indignação infantil perante a indiferença generalizada dos adultos é a mesma. No caso de Graciliano, os filhotes devorados são substituídos por uma negra que morre num incêndio, por ter tentado salvar uma imagem de Nossa Senhora. Ao narrar o acontecimento e a impressão medonha que lhe infligira a visão do cadáver desmembrado e deformado, o menino obtém dos adultos não mais que um assentimento desinteressado: "Não me puniram, quiseram transformar aquele horror num fato ordinário."

É da percepção do supostamente ordinário que surge o aspirante a escritor. Sente dificuldades tremendas ao tentar ler o barão de Macaúbas: não por não ter jeito para a leitura, como não se cansa de supor, mas por perceber, entre ele e o barão, incompatibilidades literárias irreconciliáveis, antes mesmo, quem sabe, de saber o que seria uma incompatibilidade. Somos levados a acreditar nisso por uma confissão que surge logo no início do volume:
Legou-me [meu avô] talvez a vocação absurda para as coisas inúteis. (...) Gastamos uma eternidade no arranjo de ninharias, que se combinam, resultam na obra tormentosa e falha. (...) Trabalhador caprichoso e honesto, procurou os seus caminhos e executou urupemas fortes, seguras. Provavelmente não gostavam delas: prefeririam vê-las tradicionais e corriqueiras, enfeitadas e frágeis. O autor, insensível à crítica, perseverou nas urupemas rijas e sóbrias, não porque as estimasse, mas porque eram o meio de expressão que lhe parecia mais razoável.
O neto fez o mesmo: perseverou em suas ninharias, insensível à crítica. As ninharias eventualmente se combinaram em romances, resultando numa obra que dificilmente poderíamos considerar falha, ainda que tormentosa. Nessa busca diária por tudo que é rijo e sóbrio, inútil ou não, surgia um escritor. Depois de Machado de Assis, o maior que o Brasil já teve.