— Ouve, Maria, a nossa
(não, não te assustes!) é uma luminosa
tarefa: retecer
o pequeno clarão que abandonaram,
o lume que anda oculto pela treva!
Porque irás conceber!
Porque a mão, desejosa
e tosca, que O tentara
reter, ainda que leve,
desfez-se ao toque, assim como uma vez
tocado o sopro se desfaz a avara,
a dura contração do peito ansiado...
Mas a haste, o jasmim despetalado,
é tudo o que ainda resta
dos canteiros do céu aqui na terra,
que um seco vento cresta
e uma longa agonia dilacera.
No entanto a morte há de morrer se tu quiseres,
ó gota concebida
bendita entre as mulheres
para que houvesse vida
outra vez, e nascesse desse fundo
obscuro do mundo,
o ninho incompreensível do teu ventre.
Não, não toques ainda
nem a fímbria do manto nem o centro
do mistério que anima a tua túnica:
aguarda, ó muito séria, a ave mansa
e recebe em teu corpo de criança
a Verônica única,
a enxurrada de pétalas te abrindo.
Em tumulto reunidas,
as cores da perdida Primavera
vão retornar, virão
numa enchente de asas, aluvião,
púrpura, sempre-viva, nascitura
estranheza do amor da criatura,
constelação descendo ao rosto teu:
é Ele, é O que reúne o coração
e o grande anel da esfera,
o fogo, a língua ardendo, o incêndio vivo,
a coluna de luz, o capitel que se perdeu...
Que eu
venho anunciar apenas a um esquivo,
humílimo veludo, a frágil chama
que há de crescer em ti, que hás de ser cama
ao parto do Perfeito, e hás de ser cântaro
e fonte e ânfora e água,
hás de ser lago
em que as sombras se afogam, que naufragam
no imenso, ó jovem branca como um lenço;
hás de conter a lágrima
do Infinito, o Seu vulto
e os tumultos da luz na travessia
entre a dádiva, a perda e a renúncia:
quando de um certo dia
cheio de luz amarga
em que serás enfim a sombra esguia
que O deu à luz e que O assistiu morrer...
Atravessa, ó Maria,
os abismos do ser,
ouve este estranho anúncio
e deixa-te invadir para colher,
mais fundo que a razão
e o corpo, o sopro cálido, o prenúncio
da mais viva alegria:
entreabre-te ao clarão
da visita suave,
mas terrível, terrível, deixa a ave
do imenso sacrifício te ofender.
Ó pétala intocada,
hás de sofrer
intensa madrugada
e num lago de luz como afogada
hás de durar suspensa
entre a graça imortal e a dor imensa.
Mas canta, canta agora
como a fonte borbulha, como a agulha
atravessa o bordado,
canta como essa luz pousa ao teu lado
e te penetra e tece a nova aurora,
a nova Primavera e a tessitura
do ramo que obedece e se oferece
para o mistério e pela criatura.
Canta a alucinação,
o toque enfim possível dessa mão
que há de colher para perder e ter
o infinito que nasce do deserto
e a semente que morre se socorre
tudo o que no estertor tentava ser.
Canta a canção do lírio e do alecrim,
essa canção que és e que na treva,
na escuridão da carne, andava perto
da imensidade que te invade. E assim
como o imenso te ampara,
ó voz tão clara
que consolas e elevas,
vem, desperta,
matriz da eternidade e d'O sem-fim,
ó mãe de Deus, canta e roga por mim
Bruno Tolentino (1940-2007)
(não, não te assustes!) é uma luminosa
tarefa: retecer
o pequeno clarão que abandonaram,
o lume que anda oculto pela treva!
Porque irás conceber!
Porque a mão, desejosa
e tosca, que O tentara
reter, ainda que leve,
desfez-se ao toque, assim como uma vez
tocado o sopro se desfaz a avara,
a dura contração do peito ansiado...
Mas a haste, o jasmim despetalado,
é tudo o que ainda resta
dos canteiros do céu aqui na terra,
que um seco vento cresta
e uma longa agonia dilacera.
No entanto a morte há de morrer se tu quiseres,
ó gota concebida
bendita entre as mulheres
para que houvesse vida
outra vez, e nascesse desse fundo
obscuro do mundo,
o ninho incompreensível do teu ventre.
Não, não toques ainda
nem a fímbria do manto nem o centro
do mistério que anima a tua túnica:
aguarda, ó muito séria, a ave mansa
e recebe em teu corpo de criança
a Verônica única,
a enxurrada de pétalas te abrindo.
Em tumulto reunidas,
as cores da perdida Primavera
vão retornar, virão
numa enchente de asas, aluvião,
púrpura, sempre-viva, nascitura
estranheza do amor da criatura,
constelação descendo ao rosto teu:
é Ele, é O que reúne o coração
e o grande anel da esfera,
o fogo, a língua ardendo, o incêndio vivo,
a coluna de luz, o capitel que se perdeu...
Que eu
venho anunciar apenas a um esquivo,
humílimo veludo, a frágil chama
que há de crescer em ti, que hás de ser cama
ao parto do Perfeito, e hás de ser cântaro
e fonte e ânfora e água,
hás de ser lago
em que as sombras se afogam, que naufragam
no imenso, ó jovem branca como um lenço;
hás de conter a lágrima
do Infinito, o Seu vulto
e os tumultos da luz na travessia
entre a dádiva, a perda e a renúncia:
quando de um certo dia
cheio de luz amarga
em que serás enfim a sombra esguia
que O deu à luz e que O assistiu morrer...
Atravessa, ó Maria,
os abismos do ser,
ouve este estranho anúncio
e deixa-te invadir para colher,
mais fundo que a razão
e o corpo, o sopro cálido, o prenúncio
da mais viva alegria:
entreabre-te ao clarão
da visita suave,
mas terrível, terrível, deixa a ave
do imenso sacrifício te ofender.
Ó pétala intocada,
hás de sofrer
intensa madrugada
e num lago de luz como afogada
hás de durar suspensa
entre a graça imortal e a dor imensa.
Mas canta, canta agora
como a fonte borbulha, como a agulha
atravessa o bordado,
canta como essa luz pousa ao teu lado
e te penetra e tece a nova aurora,
a nova Primavera e a tessitura
do ramo que obedece e se oferece
para o mistério e pela criatura.
Canta a alucinação,
o toque enfim possível dessa mão
que há de colher para perder e ter
o infinito que nasce do deserto
e a semente que morre se socorre
tudo o que no estertor tentava ser.
Canta a canção do lírio e do alecrim,
essa canção que és e que na treva,
na escuridão da carne, andava perto
da imensidade que te invade. E assim
como o imenso te ampara,
ó voz tão clara
que consolas e elevas,
vem, desperta,
matriz da eternidade e d'O sem-fim,
ó mãe de Deus, canta e roga por mim
Bruno Tolentino (1940-2007)
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