Há dois mil anos, o homem tem algo radicalmente novo, que não chega a possuir de todo e sim por partes, com desamor, abandonos, infidelidades; algo que está perante nós como algo que é preciso conquistar. Algo, não se esqueça, que está diante de nossa liberdade sem forçá-la: a perspectiva cristã.
Durante as aulinhas de religião no colégio eu ouvia, com muita frequência, a expressão 'boa nova' em referência à novidade cristã no mundo. É bem compreensível que um menino de 10 anos (mais interessado em jogar bola ou jogar giz nos outros) não veja muito de especificamente 'bom' nisso, mas que ele também não veja nada de 'novo' é prova de como o cristianismo ainda é parte integrante de mentalidades que se querem secularizadas. O que era radicalmente novo é hoje habitual e óbvio, universal.
Assim como Hayek dizia que os confortos gerados pelo liberalismo minaram sua própria existência (a partir de questionamentos que só se tornaram possíveis graças, é claro, ao liberalismo), assim também o homem moderno aprendeu a absorver uma herança cristã no momento mesmo em que se esforça para difamá-la e para declarar-se completamente independente dela. Seria ocioso repetir aqui as evidências da presença religiosa em comunidades supostamente secularizadas; são resquícios que teimam em não desaparecer, ainda que já tenham perdido boa parte de seu significado original. Se não fosse de nosso feitio achar que toda a história da humanidade representa uma via ascendente cuja culminância é nosso próprio umbigo, essa heróica sobrevivência do ideário religioso significaria algo mais que a simples inércia dos velhos hábitos.
Falando do cristianismo em particular, é bem-vindo o esforço do filósofo espanhol Julián Marías (1914-2005) no sentido de refrescar nossas memórias quanto à perspectiva cristã tradicional. Nesse livrinho,
A Perspectiva Cristã, um de seus últimos (favor evitar a edição brasileira), Marías se concentra no que há de radicalmente novo, revolucionário mesmo, na doutrina cristã.
Nada do que há de originalíssimo no cristianismo nos aparecerá como tal se não estivermos dispostos a imaginar o mundo sem sua contribuição, o que já é tarefa bem difícil desde há muito. Sabemos que não se encontra no monoteísmo essa grande novidade; o judaísmo está aí para provar que a idéia de um criador único não era nova. Mas, quanto à 'substância' desse criador:
Desde o Gênese já era Criador, mas agora não só não haverá pluralidade de nomes como também "Deus" será um nome próprio, um nome pessoal. Além de Criador, é Pai, Pai comum de todos os homens; a unicidade de Deus e sua paternidade são correspondentes à fraternidade de todos os homens por serem filhos de Deus, não apenas "semelhantes", mas irmãos, sem distinção nem privilégio.
Como sói acontecer, a princípio pode parecer que não há nada de muito novo aqui. A necessidade e o 'bem' inerente a uma convivência harmoniosa adviria da circunstância inarredável de sermos 'semelhantes', não havendo, portanto, a necessidade de chegarmos ao ponto de nos enxergar como 'irmãos'. Ocorre que por mais que se queira mostrar nossa semelhança do ponto de visto biológico (ou qualquer outro), o fato é que são as nossas diferenças as que sempre ficam em primeiro plano. Nossa história é um imenso catálogo de conflitos que não puderam ser evitados a despeito de nossa tão alardeada similitude. A noção que hoje temos de respeito à vida alheia, por mais trivial e
of course que possa parecer, não tem outra origem senão a constatação de que somos algo mais que seres com grande semelhança física e, de quando em vez, comportamental.
Tudo isso é de fato muito novo, e radical. Tão mais radical porque o
status de irmão, de criatura do mesmo criador, é conferido a todo e qualquer ser humano, não apenas aos 'fiéis'. E não haveria como ser diferente, já que qualquer desvio representaria nada menos que um supremo desrespeito à diversidade que, se estamos de acordo com a perspectiva cristã, tem uma origem única, a nossa mesma origem. Chegamos à primeira grande consequência prática da novidade cristã: a vida humana passa a ser sagrada.
É bastante comum ouvirmos falar da intransigência da Igreja ou de qualquer posicionamento que se diga religioso. Chega-se ao ponto de estabelecer uma relação de sinonímia entre religião e inflexibilidade, intransigência, negacionismo ou anacronismo. Se é verdade que isso se verifica aqui e ali, seria o caso de apelar para a autoridade do cristianismo como aliado, visto que nada poderia ter o direito de abominar esse estado de coisas mais que o cristianismo:
A idéia de uma perfeição inexequível, mas ao mesmo tempo "proposta" como alvo e meta desejáveis, a esperança de um conhecimento pleno de Deus, prometido na outra vida mas mencionado como algo que se pode e deve tentar - credo ut intelligam, fides quaerens intellectum -, é uma atitude que mobiliza o homem para buscar, tantar, indagar, ensaiar. A sucessão incessante de estilos artísticos, formas literárias, sistemas intelectuais, formas políticas, pode ser interpretada como uma das consequências da perspectiva cristã.
O grifo acima - buscar, tentar, indagar, ensaiar - é meu e deixa claro a perfeita concordância (mais, a rigorosa indissolubilidade) entre ciência e religião. Esse princípio também destrói de vez qualquer das alegações propostas no parágrafo anterior; muito pelo contrário, não nos deve admirar o fato de a ciência, as artes e as instituições políticas terem se desenvolvido com vigor especial nas regiões afetadas direta ou indiretamente pelo cristianismo. Qualquer restrição a essa liberdade criativa, ainda que perpetrada sob os auspícios de um discurso cristão (como não deixou de ocorrer), é nada menos uma infidelidade à perspectiva original. Chegamos, então, à segunda grande consequência prática do cristianismo: a necessidade de (e a liberdade para) um processo de aperfeiçoamento - ou de evolução, se quiserem - que não termina nunca.
A própria condição de criatura (com as palavras de Marías: uma empresa, um processo em andamento, um ser imperfeito no sentido etimológico da palavra) conferida ao ser humano já pressupõe a necessidade da melhoria e do refinamento, mudanças cuja plenitude será alcançada num outro mundo.
Resta falar da terceira e última grande contribuição prática do cristianismo: a noção de responsabilidade pessoal. Isso é consequência direta da idéia de um Deus pessoal e infinito: sendo pessoal e infinito, o amor divino chega a nós pessoalmente, instâncias individuais ainda que imperfeitas, e não a um grupo amorfo qualquer. É comum de nossa parte querer conferir um caráter puramente moral à noção de pecado, mas ele corresponde, dentro da perspectiva cristã, a uma quebra de acordo, acordo firmado entre seres inteligentes. É bem verdade que à medida que se vai descartando a idéia do pecado, introduz-se uma atenuação da consciência moral: imaginar que essa consciência possa ter origem em conceitos tardios e largamente manipuláveis como 'liberdade', 'democracia', 'igualdade' é, quando pouco, excessivamente problemático.
Caráter sacro da vida humana; liberdade para explorar e melhorar; responsabilidade pessoal. Isso tudo soa familiar? Somos todos cristãos, ateus e agnósticos inclusive.