15 março, 2007

Uma Herança Preguiçosa

Acho que poderíamos dizer, sem muito medo de errar, que Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, é o livro mais citado e menos lido por intelectuais brasileiros. É o tipo do livro que costuma ser citado como argumento cumulativo; faz sempre bem tascar uma referência a algo (ou alguém) com reputação posivitamente estabelecida. É de se espantar: o livro tem pouco mais de 200 páginas e é de leitura agradável.

Sabe-se que não costuma ser lido por quem o cita graças à recorrente confusão com a expressão 'homem cordial', mas chegaremos a isso em tempo. De início interessa apontar a distinção feita por Sérgio Buarque entre povos ibéricos e nórdicos:
Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos [ibéricos] é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. Sua atitude normal é precisamente o inverso da que, em teoria, corresponde ao sistema do artesanato medieval, onde se encarece o trabalho físico, denegrindo o lucro, o "lucro torpe".
Desde já reconhecemos, nesse comportamento avesso ao trabalho disciplinado, o oposto do espírito capitalista a que se referia Weber. Desde já, também, reconhecemos em nós mesmos, brasileiros, a persistência desse traço tipicamente ibérico de nosso caráter. Pode-se argumentar que o brasileiro, hoje, até por precisão, está bem mais inserido na realidade do trabalho regular e monótono, mas essa inserção é visivelmente forçada. Há também o peculiar de que o trabalho físico continua a ser denegrido entre nós. A um jovem norte-americano qualquer, por mais abastado que seja, não lhe estranha possibilidade de trabalhar como cortador de grama, baby-sitter ou caixa de supermercado. O jovem brasileiro prefere o emprego de escritório, ocupação 'intelectual', ainda que ganhe menos de um terço do que ganha um fritador de hambúrgueres americano. Qualquer outra opção seria antes de mais nada humilhante. Prossegue Buarque:
É compreensível, assim, que jamais tenha se naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia.
Surge assim a oposição trabalhadores-aventureiros, sendo os hispânicos, como é claro, representantes do segundo grupo. O aventureiro aprecia o exótico, o lucro fácil e repentino, as regalias e títulos nobilitários acessíveis através do acúmulo de riquezas, enquanto que o trabalhador desenvolve uma moral que encara o trabalho como um fim em si mesmo: o acúmulo de dinheiro é apenas mais uma indicativa de que o ofício em questão, por ser lucrativo, deve ser exercido com ainda mais cuidado e rigor. É evidente que (como o próprio Buarque faz questão de lembrar) esses tipos 'puros' só existem no campo das idéias, mas servem como parâmetros para situar o caráter nacional num contexto mais amplo.

A índole mais aventureira (e por isso mesmo mais indolente) do brasileiro tende a minar qualquer tentativa mais extensiva de estabelecer uma hierarquia rígida, seja no ambiente de trabalho ou dentro de casa. O herói brasileiro, o exemplo a ser seguido, é o indivíduo que obtém sucesso rapidamente, de preferência dum só golpe, numa tacada de gênio. Olhamos com certo desprezo para a obediência servil do pequeno empregado respeitador das hierarquias, que ascende os degraus da notoriedade com uma paciência quase ascética. Diferentes versões desse desprezo são visíveis nos mais variados ambientes: na universidade, inteligente é quem, com um mínimo de esforço, alcança a nota necessária para a aprovação. Qualquer dedicação que a exceda é nada mais que isso: excedente e sinceramente injustificável. Já o militarismo é de todo visto com maus olhos pelos brasileiros.

Outra consequência disso é que até mesmo o sentimento racista, entre nós, não parece ter sido genuinamente incorporado como certamente o foi em povos mais ao norte:
De qualquer modo, o exclusivismo "racista", como se diria hoje, nunca chegou a ser, aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam a reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos. Muito mais decisivo do que semelhante exclusivismo teria sido o labéu tradicionalmente associado aos trabalhos vis a que obriga a escravidão e que não infamava apenas quem os praticava, mas igualmente seus descendentes.
Assim, Buarque chega à conclusão de que o escravo era principalmente aviltado não por ser negro, mas por ser, oras, escravo, e por se ocupar, como é claro, dos serviços que lhe eram destinados. Os hagiógrafos esquerdosos de Buarque gostam de ignorar esse detalhe, mas é uma consequência lógica inevitável para quem aceita as premissas do hispânico aventureiro e 'cordial'. O negro (ou preto, expressão utilizada no livro mas que não nos é mais dado repetir), desde que consiga perceber essas peculiaridades, será apenas mais um entre tantos. A cordialidade (e aqui chegamos, finalmente, ao homem cordial) do brasileiro admite de bom grado a proeminência social do negro.

A confusão relativa ao termo 'homem cordial', título do quinto capítulo do livro, parece ter nascido, segundo nos conta o professor Bolívar Lamounier, de uma querela entre Cassiano Ricardo e o próprio Buarque. Nas palavras do autor da expressão (tomada a Rui Ribeira Couto):
[...] cabe dizer que, pela expressão "cordialidade", se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em "bondade" ou em "homem bom". Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.
Ricardo, num artigo-resposta que alcança as trinta páginas e que eu ousaria chamar ilegível, chega à conclusão de que o termo é inadequado e que mais correto seria substitui-lo por 'simpático'. Buarque, numa resposta de menos de três páginas, sentencia: Além disso acredito que nossa divergência se reduz em parte a uma questão de palavra. Divergência que, infelizmente, perpetuou o embaraçoso costume de associar o homem 'cordial' a um homem 'bom' ou simplesmente 'educado'. Vários intelectuais já fizeram a confissão involuntária de que não leram o livro ao fazer essa associação. Em realidade, a 'cordialidade' do livro é a própria languidez de que falávamos mais atrás: para Buarque, é ela a responsável pela dificuldade que nosso povo tem em estabelecer relações hierárquicas imparciais, indispensáveis em qualquer agrupamento social. O brasileiro quer que todos em volta (incluindo aí familiares, colegas e superiores no trabalho, o papa, o presidente e o reitor da universidade) sejam, antes de mais nada, amigos, ou que ao menos seja possível manter relações 'amistosas'.

A cordialidade brasileira parece ser um sintoma de preguiça. Assim como nos aborrece o ter de prestar reverências a algum superior (a própria palavra 'superior', aplicada a seres humanos, parece-nos inatural), procuramos maneiras rápidas e práticas de estabelecer e mostrar qualquer tipo de autoridade. O pensamento especulativo nunca foi um nosso forte, mas admiramos quem seja capaz de cunhar frases elaboradas e ostentosas, ainda que vazias. Lemos muito pouco, mas o diploma universitário é indispensável. Pouco importa se, no processo de obtenção do diploma, lemos menos ainda.