09 março, 2007

Intelectuais

O intelectual, na acepção moderna do termo, é uma criança à espera da salvação. O fenômeno não é novo: depois que desistiu da literatura, Tolstoi serviu de guru e líder espiritual para quem quer que fosse visitá-lo em Yasnaya Polyana. Transformou-se num 'intelectual' profissional. Das muitas encarnações do homem massa de Ortega, a mais irritante parece ser precisamente essa, a do intelectual sabe-tudo; o sujeito que, por ordem divina (ou infernal), deve ser ouvido com reverência sobre assuntos com os quais não têm a menor familiaridade. Crêem eles numa espécie de continuum mental que lhes assegura que competência em, digamos, literatura, é prova cabal de genialidade no comentário político ou na carpintaria.

Acabo de ver dois filmes que ilustram bem duas facetas periféricas do intelectual (ou político) profissional: o primeiro deles, o Interiors (1978) de Woody Allen, lida, intencionalmente ou não, com a chatice pura e simples. O resultado é que o próprio filme é insuportável. Num diálogo que durou 30 segundos (fiz questão de checar porque a primeira impressão foi de que durou 5 minutos), a personagem interpretada por Diane Keaton, com aquela carinha enjoada típica de poeta vegetariana, fala de como um de seus poemas, ao ser por ela reescrito para ser publicado numa revista, ficou excessivamente 'ambíguo'. E de como teria que reescrevê-lo uma vez mais. Para quem assiste ao filme (e para quem, como nós, não leu o poema), essa discussão tem o curioso particular de não significar absolutamente nada. Ao fim e ao cabo, a nossa única esperança é a de que ela venha, um dia, a trabalhar como garçonete, ou algo do tipo, para adquirir, quem sabe, algum senso de praticidade.

Alguns minutos depois a mesma personagem começa um bate-boca com o marido, também ele, ó céus, escritor. O marido está revoltado porque seu último livro não recebeu o devido reconhecimento da mídia. A reação imediata, como não poderia deixar de ser, é tomar um porre, gritar com a mulher, invejar o reconhecimento que a mulher tem, falar de como sua própria escrita perdeu o 'vigor', ou a 'originalidade', ou a 'modernidade', ou o 'encanto' que supostamente já teve. Além de tentar agarrar a cunhada, a atriz. Já a outra cunhada, cujo namorado é um agitador político que admira crianças que matam pela 'liberdade', vive uma crise existencial por não conseguir se expressar (seja através da fotografia ou da literatura) e acha que todo o talento da família foi herdado pela irmã (a poeta). A mãe, enquanto isso, está no hospital se recuperando de uma tentativa de suicídio: o marido a largou por uma gordinha serelepe.

Já estou rangendo os dentes só com a lembrança. Passemos para o seguinte. É o The Lost City (2005), dirigido e estrelado por Andy Garcia. É muito pouco provável que você tenha visto esse filme no cinema. Segundo me consta, ele só foi exibido, no Brasil, em algumas salas do Rio e de São Paulo, e ainda assim por poucas semanas. Entende-se logo o porquê: trata da revolução cubana e não retrata Guerava e Castro com muita simpatia. Cumpre ressaltar, e esse parece mesmo ser o aspecto mais interessante do filme, a facilidade com que a juventude é seduzida pela utopia revolucionária, ainda que haja quem os alerte para a besteira que estão prestes a fazer. Em dado momento, a namorada de Fico Fellove (interpretado por Garcia), já irremediavelmente envolvida com o castrismo, confessa-se perdida por 'nunca ter feito parte de algo tão importante'. Temos aí um traço característico do intelectual/político profissional: uma carência, a que me refiro através da expressão 'carência institucional', de fazer parte de qualquer clube, organização, instituição ou entidade que lhe forneça alguma ilusão de importância. Ele quer sempre 'reunir' pessoas, 'debater' questões, 'otimizar' processos, apesar de raramente sair do campo das abstrações. Em outras palavras, quer soar e parecer importante e ocupado.

Quando Wilde dizia que o maior defeito da juventude é querer ser útil ele devia ter isso em mente.