28 março, 2007

Um Ingrato

Em entrevista ao Fantástico de uma dessas semanas passadas, Roger Waters, ex-Pink Floyd, disse que não concorda com a maneira como o capitalismo se desenvolveu, dando a entender que vivemos numa espécie de concorrência selvagem e intrinsecamente injusta etc. Também não acha que Cuba indicaria um bom caminho, já que por lá não há liberdade de expressão (ainda bem que ele percebeu isso). "Deve haver uma terceira opção", pontificou ao final.

Resta saber se os habitantes do planeta onde vigora a tal terceira opção também pagariam entre R$ 140,00 e 500,00 para vê-lo em uma de suas apresentações ao vivo, como a do Morumbi do sábado último, que parece ter atraído quase 50 mil pessoas. E se se prontificariam, como nós terráqueos, a comprar mais de 40 milhões de cópias de um único disco de sua ex-banda, o The Dark Side of the Moon, lançado em 1973. O aspecto mais curioso do crítico empedernido do capitalismo é achar que o materialismo grosseiro, supostamente inerente ao sistema, só é repreensível nos outros. Waters poderia deixar de ser tão malcriado e ir criticar algo que não o beneficie direta e ostentosamente.

Isso nos leva à cruzada que Waters tem empreendido contra George W. Bush. Em seus shows pela América Latina, Waters fez questão de escrever mensagens anti-Bush no porco inflável que sempre aparece lá pela metade da apresentação. Em São Paulo, pudemos ler um 'Bush, nós [brasileiros] não estamos à venda' - numa provável referência à floresta Amazônica (havia também um 'Save the Amazon!') -, ao que poderíamos candidamente responder que, se estivéssemos mesmo à venda, não haveria quem quisesse comprar. Numa música sua mais recente, Leaving Beirut, executada em todos os shows da última turnê, lemos:
Are these the people that we should bomb
Are we so sure they mean us harm
Is this our pleasure, punishment or crime
Is this a mountain that we really want to climb
The road is hard, hard and long
Put down that two by four
This man would never turn you from his door
Oh George! Oh George!
That Texas education must have fucked you up when you were very small
A música narra um episódio de quando ele, passeando por Beirut aos 17 anos, foi gentilmente recebido por uma família local depois que seu carro quebrou. Infelizmente, a boa educação de uma família libanesa, há quase 50 anos, parece ser evidência suficiente de que a guerra no Líbano foi um erro. A música parece ser destinada àqueles que ainda acham que no Oriente Médio só há selvagens sanguinários ou terroristas maquiavélicos. Para quem já tem mais de 8 anos e um raciocínio razoavelmente são, porém, não parece haver conexão lógica entre o episódio e a guerra de 50 anos depois, a qual, lembremos, foi dirigida contra um grupo terrorista que atormenta famílias libanesas como a descrita acima.

Outra faixa fixa em seu repertório é a The Fletcher Memorial Home, lançada pelo Pink Floyd (The Final Cut, 1983), mas de composição exclusiva sua. Um trecho:
And they can appear to themselves every day
On closed circuit T.V.
To make sure they're still real.
It's the only connection they feel.
"Ladies and gentlemen, please welcome, Reagan and Haig,
Mr. Begin and friend, Mrs. Thatcher, and Paisly,
"Hello Maggie!"
Mr. Brezhnev and party.
"Scusi dov'è il bar?"
The ghost of McCarthy,
The memories of Nixon.

[...]

Did they expect us to treat them with any respect?
They can polish their medals and sharpen their
Smiles, and amuse themselves playing games for awhile.
Boom boom, bang bang, lie down you're dead.
Seria o caso de perguntar: ele espera que respeitemos alguém que, além de jogar Thatcher e Brezhnev num saco só, só vê joguinhos de bang bang na presidência de, por exemplo, Reagan? O pai de Roger Waters morreu na II Guerra, de tal maneira que esse pacifismo tresloucado tem ao menos uma origem justificável. Origem apenas. Não parece justificável que alguém com tanta projeção midiática e influência popular insista em se manter tão embaraçosamente desinformado quanto ao que acontece em seu redor. As letras de Waters, que são, quando muito, divertidas e/ou medianas, tinham ao menos a vantagem de ser um pouco mais sutis até certo ponto de sua carreira. A partir do The Final Cut, cujo processo de composição muito sugestivamente não contou com o restante da banda, a panfletagem esquerdosa tomou conta de tudo. Waters faria um enorme favor aos seus fãs (e à humanidade) se comentasse apenas sobre o que entende: música.

22 março, 2007

Spartacus (1960)

Crasso, interpretado por Laurence Olivier, e Júlio César, por John Gavin:

Júlio César: [...] Rome is the mob.

Crasso: No! Rome is an eternal thought in the mind of God.

Júlio César: I had no idea you'd grown religious.

Crasso: That doesn't matter. If there were no gods at all, I'd revere them. If there were no Rome, I'd dream of her. That's what I want you to do.

21 março, 2007

The King's Wits

Samuel Taylor Coleridge observa que King Lear é a única obra mais séria de Shakespeare (com a possível exceção de The Merchant of Venice) cuja trama principal se desenvolve a partir de uma grande improbabilidade: Lear decide dividir seu reino igualmente entre as três filhas, mas, para satisfazer o orgulho real, dá a entender que herdará mais aquela que melhor mostrar, com palavras, o amor pelo pai. As duas primeiras, Goneril e Regan, com uma retórica vazia mas ostentosa, recebem seus terços respectivos, como já era de se esperar. Cordelia, por birra ou por achar que o coração não lhe chegava à boca, foi mais seca. Lear, enfurecido, resolveu deserdá-la:
Lear: [...] What can you say, to draw
A third, more opulent than your sister's? Speak.

Cordelia: Nothing my Lord.

Lear: Nothing?

Cordelia: Nothing.

Lear: Nothing will come of nothing, speak again.

Cordelia: Unhappy that I am, I cannot heave
My heart into my mouth: I love your Majesty
According to my bond, no more no less.

Lear: How, how Cordelia? Mend your speech a little
Lest you may mar your Fortunes.
Mas o que Coleridge também observa é que esse primeiro episódio é completamente desnecessário para explicar a subsequente desestruturação da família real. Subtrai-se a primeira cena e a peça continua com todo o seu sentido. Em verdade, no final da primeira cena mesma Goneril e Regan já começam a conspirar contra o pai, dando a entender que havia, afinal, motivo para decepção, só que não com Cordelia. O episódio inicial, apesar de servir de estopim para a decepção (que eventualmente o levaria à loucura) de Lear com as filhas, serve apenas como detalhe excêntrico, para alguns primeiro indício do colapso mental que acometeria o rei pouco mais tarde. As barbaridades perpetradas por Goneril e Regan nas próximas páginas, porém, dão verossimilhança à loucura de Lear, mesmo se aceitamos que ele estava completamente são no início. Ele mesmo percebe o mal que se avizinha:
Lear: [...] O most small fault,
How ugly didst thou in Cordelia show?
Which like an engine, wrench'd my frame of Nature
From the fix'd place: drew from my heart all love
And added to the gall. O Lear, Lear, Lear!
Beat at this gate that let thy folly in,
And thy dear judgement out.

...

Lear: O let me not be mad, not mad sweet heaven;
Keep me in temper, I would not be mad. [...]
A impressão que se tem é a de um embate com a loucura propriamente dita, um embate, seja dito de passagem, que não se pode ganhar. Gloucester percebe bem em que dificuldades se encontra quando sentencia: 'Tis the times' plague, when madmen lead the blind.

15 março, 2007

Uma Herança Preguiçosa

Acho que poderíamos dizer, sem muito medo de errar, que Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, é o livro mais citado e menos lido por intelectuais brasileiros. É o tipo do livro que costuma ser citado como argumento cumulativo; faz sempre bem tascar uma referência a algo (ou alguém) com reputação posivitamente estabelecida. É de se espantar: o livro tem pouco mais de 200 páginas e é de leitura agradável.

Sabe-se que não costuma ser lido por quem o cita graças à recorrente confusão com a expressão 'homem cordial', mas chegaremos a isso em tempo. De início interessa apontar a distinção feita por Sérgio Buarque entre povos ibéricos e nórdicos:
Um fato que não se pode deixar de tomar em consideração no exame da psicologia desses povos [ibéricos] é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho. Sua atitude normal é precisamente o inverso da que, em teoria, corresponde ao sistema do artesanato medieval, onde se encarece o trabalho físico, denegrindo o lucro, o "lucro torpe".
Desde já reconhecemos, nesse comportamento avesso ao trabalho disciplinado, o oposto do espírito capitalista a que se referia Weber. Desde já, também, reconhecemos em nós mesmos, brasileiros, a persistência desse traço tipicamente ibérico de nosso caráter. Pode-se argumentar que o brasileiro, hoje, até por precisão, está bem mais inserido na realidade do trabalho regular e monótono, mas essa inserção é visivelmente forçada. Há também o peculiar de que o trabalho físico continua a ser denegrido entre nós. A um jovem norte-americano qualquer, por mais abastado que seja, não lhe estranha possibilidade de trabalhar como cortador de grama, baby-sitter ou caixa de supermercado. O jovem brasileiro prefere o emprego de escritório, ocupação 'intelectual', ainda que ganhe menos de um terço do que ganha um fritador de hambúrgueres americano. Qualquer outra opção seria antes de mais nada humilhante. Prossegue Buarque:
É compreensível, assim, que jamais tenha se naturalizado entre gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobilitante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia.
Surge assim a oposição trabalhadores-aventureiros, sendo os hispânicos, como é claro, representantes do segundo grupo. O aventureiro aprecia o exótico, o lucro fácil e repentino, as regalias e títulos nobilitários acessíveis através do acúmulo de riquezas, enquanto que o trabalhador desenvolve uma moral que encara o trabalho como um fim em si mesmo: o acúmulo de dinheiro é apenas mais uma indicativa de que o ofício em questão, por ser lucrativo, deve ser exercido com ainda mais cuidado e rigor. É evidente que (como o próprio Buarque faz questão de lembrar) esses tipos 'puros' só existem no campo das idéias, mas servem como parâmetros para situar o caráter nacional num contexto mais amplo.

A índole mais aventureira (e por isso mesmo mais indolente) do brasileiro tende a minar qualquer tentativa mais extensiva de estabelecer uma hierarquia rígida, seja no ambiente de trabalho ou dentro de casa. O herói brasileiro, o exemplo a ser seguido, é o indivíduo que obtém sucesso rapidamente, de preferência dum só golpe, numa tacada de gênio. Olhamos com certo desprezo para a obediência servil do pequeno empregado respeitador das hierarquias, que ascende os degraus da notoriedade com uma paciência quase ascética. Diferentes versões desse desprezo são visíveis nos mais variados ambientes: na universidade, inteligente é quem, com um mínimo de esforço, alcança a nota necessária para a aprovação. Qualquer dedicação que a exceda é nada mais que isso: excedente e sinceramente injustificável. Já o militarismo é de todo visto com maus olhos pelos brasileiros.

Outra consequência disso é que até mesmo o sentimento racista, entre nós, não parece ter sido genuinamente incorporado como certamente o foi em povos mais ao norte:
De qualquer modo, o exclusivismo "racista", como se diria hoje, nunca chegou a ser, aparentemente, o fator determinante das medidas que visavam a reservar a brancos puros o exercício de determinados empregos. Muito mais decisivo do que semelhante exclusivismo teria sido o labéu tradicionalmente associado aos trabalhos vis a que obriga a escravidão e que não infamava apenas quem os praticava, mas igualmente seus descendentes.
Assim, Buarque chega à conclusão de que o escravo era principalmente aviltado não por ser negro, mas por ser, oras, escravo, e por se ocupar, como é claro, dos serviços que lhe eram destinados. Os hagiógrafos esquerdosos de Buarque gostam de ignorar esse detalhe, mas é uma consequência lógica inevitável para quem aceita as premissas do hispânico aventureiro e 'cordial'. O negro (ou preto, expressão utilizada no livro mas que não nos é mais dado repetir), desde que consiga perceber essas peculiaridades, será apenas mais um entre tantos. A cordialidade (e aqui chegamos, finalmente, ao homem cordial) do brasileiro admite de bom grado a proeminência social do negro.

A confusão relativa ao termo 'homem cordial', título do quinto capítulo do livro, parece ter nascido, segundo nos conta o professor Bolívar Lamounier, de uma querela entre Cassiano Ricardo e o próprio Buarque. Nas palavras do autor da expressão (tomada a Rui Ribeira Couto):
[...] cabe dizer que, pela expressão "cordialidade", se eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções apologéticas a que parece inclinar-se o sr. Cassiano Ricardo, quando prefere falar em "bondade" ou em "homem bom". Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.
Ricardo, num artigo-resposta que alcança as trinta páginas e que eu ousaria chamar ilegível, chega à conclusão de que o termo é inadequado e que mais correto seria substitui-lo por 'simpático'. Buarque, numa resposta de menos de três páginas, sentencia: Além disso acredito que nossa divergência se reduz em parte a uma questão de palavra. Divergência que, infelizmente, perpetuou o embaraçoso costume de associar o homem 'cordial' a um homem 'bom' ou simplesmente 'educado'. Vários intelectuais já fizeram a confissão involuntária de que não leram o livro ao fazer essa associação. Em realidade, a 'cordialidade' do livro é a própria languidez de que falávamos mais atrás: para Buarque, é ela a responsável pela dificuldade que nosso povo tem em estabelecer relações hierárquicas imparciais, indispensáveis em qualquer agrupamento social. O brasileiro quer que todos em volta (incluindo aí familiares, colegas e superiores no trabalho, o papa, o presidente e o reitor da universidade) sejam, antes de mais nada, amigos, ou que ao menos seja possível manter relações 'amistosas'.

A cordialidade brasileira parece ser um sintoma de preguiça. Assim como nos aborrece o ter de prestar reverências a algum superior (a própria palavra 'superior', aplicada a seres humanos, parece-nos inatural), procuramos maneiras rápidas e práticas de estabelecer e mostrar qualquer tipo de autoridade. O pensamento especulativo nunca foi um nosso forte, mas admiramos quem seja capaz de cunhar frases elaboradas e ostentosas, ainda que vazias. Lemos muito pouco, mas o diploma universitário é indispensável. Pouco importa se, no processo de obtenção do diploma, lemos menos ainda.

09 março, 2007

Intelectuais

O intelectual, na acepção moderna do termo, é uma criança à espera da salvação. O fenômeno não é novo: depois que desistiu da literatura, Tolstoi serviu de guru e líder espiritual para quem quer que fosse visitá-lo em Yasnaya Polyana. Transformou-se num 'intelectual' profissional. Das muitas encarnações do homem massa de Ortega, a mais irritante parece ser precisamente essa, a do intelectual sabe-tudo; o sujeito que, por ordem divina (ou infernal), deve ser ouvido com reverência sobre assuntos com os quais não têm a menor familiaridade. Crêem eles numa espécie de continuum mental que lhes assegura que competência em, digamos, literatura, é prova cabal de genialidade no comentário político ou na carpintaria.

Acabo de ver dois filmes que ilustram bem duas facetas periféricas do intelectual (ou político) profissional: o primeiro deles, o Interiors (1978) de Woody Allen, lida, intencionalmente ou não, com a chatice pura e simples. O resultado é que o próprio filme é insuportável. Num diálogo que durou 30 segundos (fiz questão de checar porque a primeira impressão foi de que durou 5 minutos), a personagem interpretada por Diane Keaton, com aquela carinha enjoada típica de poeta vegetariana, fala de como um de seus poemas, ao ser por ela reescrito para ser publicado numa revista, ficou excessivamente 'ambíguo'. E de como teria que reescrevê-lo uma vez mais. Para quem assiste ao filme (e para quem, como nós, não leu o poema), essa discussão tem o curioso particular de não significar absolutamente nada. Ao fim e ao cabo, a nossa única esperança é a de que ela venha, um dia, a trabalhar como garçonete, ou algo do tipo, para adquirir, quem sabe, algum senso de praticidade.

Alguns minutos depois a mesma personagem começa um bate-boca com o marido, também ele, ó céus, escritor. O marido está revoltado porque seu último livro não recebeu o devido reconhecimento da mídia. A reação imediata, como não poderia deixar de ser, é tomar um porre, gritar com a mulher, invejar o reconhecimento que a mulher tem, falar de como sua própria escrita perdeu o 'vigor', ou a 'originalidade', ou a 'modernidade', ou o 'encanto' que supostamente já teve. Além de tentar agarrar a cunhada, a atriz. Já a outra cunhada, cujo namorado é um agitador político que admira crianças que matam pela 'liberdade', vive uma crise existencial por não conseguir se expressar (seja através da fotografia ou da literatura) e acha que todo o talento da família foi herdado pela irmã (a poeta). A mãe, enquanto isso, está no hospital se recuperando de uma tentativa de suicídio: o marido a largou por uma gordinha serelepe.

Já estou rangendo os dentes só com a lembrança. Passemos para o seguinte. É o The Lost City (2005), dirigido e estrelado por Andy Garcia. É muito pouco provável que você tenha visto esse filme no cinema. Segundo me consta, ele só foi exibido, no Brasil, em algumas salas do Rio e de São Paulo, e ainda assim por poucas semanas. Entende-se logo o porquê: trata da revolução cubana e não retrata Guerava e Castro com muita simpatia. Cumpre ressaltar, e esse parece mesmo ser o aspecto mais interessante do filme, a facilidade com que a juventude é seduzida pela utopia revolucionária, ainda que haja quem os alerte para a besteira que estão prestes a fazer. Em dado momento, a namorada de Fico Fellove (interpretado por Garcia), já irremediavelmente envolvida com o castrismo, confessa-se perdida por 'nunca ter feito parte de algo tão importante'. Temos aí um traço característico do intelectual/político profissional: uma carência, a que me refiro através da expressão 'carência institucional', de fazer parte de qualquer clube, organização, instituição ou entidade que lhe forneça alguma ilusão de importância. Ele quer sempre 'reunir' pessoas, 'debater' questões, 'otimizar' processos, apesar de raramente sair do campo das abstrações. Em outras palavras, quer soar e parecer importante e ocupado.

Quando Wilde dizia que o maior defeito da juventude é querer ser útil ele devia ter isso em mente.

02 março, 2007

Crônicas da Vovó

A velhice é provavelmente o ideal mais romântico que cultivo e, a despeito disso ou talvez por isso mesmo, evito qualquer contato mais próximo com idosos. Meus avós paternos ainda são vivos mas nossos encontros são de tal maneira esparsos e superficiais que meus devaneios sobre a condição dos velhos não costumam ser afetados. Em verdade, meu avô raramente fala, apesar de ser exemplarmente saudável para um ancião de 86 anos. Não me sinto desconfortável ao confessar esse sintoma de indolência intelectual: ele só pode fazer mal a mim mesmo.

O primeiro e mais óbvio aspecto é o do acúmulo de conhecimento, a questão da experiência etc. e tal. Tudo isso é reconhecido popularmente, mas o fato é que não costumamos ter muita paciência com os coitados. Nada obstante ouvirmos o que têm a dizer com certa reverência mal disfarçada, parece existir o tácito consenso de que tudo quanto dizem é velharia e que só poderia ser válido, quando muito, na época em que eles mesmos eram jovens (ou seja, há mais de 50 anos), como se nossa capacidade cognitiva necessariamente sofresse uma espécie de congelamento (ou até regressão) quando passamos dos 70. Pode-se dizer que o espírito de nossa época é 'jovem': os jovens querem ser jovens e os velhos querem-no mais ainda. Talvez por isso eu os prefira calados.

Isso deve explicar o fato de tantos velhos quererem 'rejuvenescer' mentalmente. Ouve-se sempre aquela baboseira: D. Maria tem 80 anos, mas a mentalidade é de um garota. Pergunto eu: por que diabos D. Maria gostaria de ter a mentalidade de uma garota? Estudou, trabalhou, viajou, enfim, viveu por 80 anos apenas para ser violentamente jogada de volta ao próprio passado? Uma velha usando roupas curtas é tão ridículo quanto um adolescente jogando paciência o dia inteiro ou tomando remédio para artrite.

Voltando à questão do acúmulo de conhecimentos. O lado perigoso disso é que, realmente, a capacidade de mudanças drásticas parece estar entre as 'camadas' intelectuais mais jovens, o que não deixa de ser lógico. É como se tivéssemos de expulsar qualquer resquício de burrice antes que o processo de mero acúmulo tenha início. Se isso não for feito, haverá apenas dois caminhos possíveis: o primeiro é a consolidação e até a radicalização da burrice, um processo aparentemente sem volta (alguém ainda nutre esperanças de que Saramago ou até mesmo Chico Buarque, esse último ainda bem jovenzinho para os padrões desse post, venham a dizer coisa com coisa em matérias de política?); o segundo, que comparativamente seria uma benção, é o do arrefecimento geral, um declínio de qualquer entusiasmo, de tal maneira que a burrice, se não for diminuída, pelo menos permanecerá inconspícua.

Mas o mais fascinante da velhice (e esse é o aspecto verdadeiramente romântico da minha perspectiva) é a resignação, a serenidade dos que sabem envelhecer. Perde-se tudo: a família morre, os amigos morrem, até a força das pernas se lhes vai embora e eles permanecem (não por niilismo, quero crer) impassíveis e ciosos de sua própria desimportância, mas nem por isso menos orgulhosos. Os que sabem envelhecer devem encarar com um desprezo enorme a mania juvenil dos velhinhos modernos; esses últimos não só não entendem o mundo dos jovens como se julgam irremediavelmente atrelados a ele. O velho-jovem é o eterno estrangeiro, a stranger in a strange land.