02 abril, 2006

O Livro e a Palavra

Italo Calvino, na conferência entitulada Exatidão, terceira das cinco que formam o volume Seis propostas para o próximo milênio (editado no Brasil pela Companhia das Letras), escreve:
A linguagem me parece sempre usada de modo aproximativo, casual, descuidado, e isso me causa intolerável repúdio. Que não vejam nessa reação minha um sinal de intolerância para com o próximo: sinto um repúdio ainda maior quando me ouço a mim mesmo. Por isso procuro falar o mínimo possível, e se prefiro escrever é que, escrevendo, posso emendar cada frase tantas vezes quanto ache necessário para chegar, não digo a me sentir satisfeito com minhas palavras, mas pelo menos a eliminar as razões de insatisfação de que me posso dar conta. A literatura - quero dizer, aquela que responde a essas exigências - é a Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser.
Já Sócrates, na conclusão do Fedro, diálogo de Platão, afirma que Anyone who leaves behind him anything in writing and likewise anyone who takes it over from him supposing that such writing will provide something reliable and permanent would be a fool. Não deixa de ser curioso que o livro, ou o documento escrito, tenha sofrido uma inversão de papéis tão radical através dos tempos. Hoje, se queremos emprestar legitimidade real ou imaginária a seja o que for, vem-nos logo o impulso fazê-lo por escrito; temos a certeza de que o que foi escrito passa a ser imperecível.

É bem sabido que Sócrates não só não deixou nenhuma obra escrita como desprezava abertamente quem o fazia (lembremos que Tucídedes, seu contemporâneo, escreveu a História da Guerra do Peloponeso com o explícito intuito de legar algo de grande valia para a humanidade; uma possessão de todos os tempos). Que quer significar isso, além de uma demonstração de humildade? Que dizer, então, de Platão, discípulo seu, que decidiu ele próprio escrever, além de alçar seu mestre à posição de protagonista de boa parte de seus diálogos?

A verdade é que o mundo assim como o conhecemos perdeu o hábito de pensar. Não são só os preguiçosos ou os desinteressados; todos nós. Particularmente não conheço exceções. Percebe-se facilmente que o ato de pensar, que generalizo aqui para qualquer estado de análise ou contemplação, já se tornou um evento esporádico. Se fazemos uma pergunta de natureza não tão óbvia a quem quer que seja, recebemos um preciso pensar como resposta. Daí se infere facilmente que não é preciso pensar para responder a todas as outras. O pensador é necessariamente um excêntrico; põe-se a pensar por força de uma cadeia inusitada de eventos, algo que definitivamente não deveria acontecer todos os dias.

Para demonstração disso, basta ouvir uma conversa qualquer; não necessariamente a dos outros: as nossas servirão. Se nos alongamos por mais de 5 minutos num mesmo argumento, passamos a defendê-lo menos por vantagens inerentes a esse argumento que pela deselegância com que o nosso interlocutor se expressa. Depois de 5 minutos, já nem lembramos o que foi dito no início da conversa; precisamos recorrer, desesperadamente, à palavra escrita. E fazemos bem. Evitamos contradições as mais embaraçosas e, como lembra o Calvino, é-nos dada a oportunidade de emendar nossas frases tantas vezes quantas forem necessárias.

Se Sócrates quisesse testar ou examinar a solidez das minhas convicções através de um interrogatório, minha condição seria precisamente essa: mande as perguntas por e-mail.